JUSTIÇA CONSTITUCIONAL: O PROBLEMA DO PODER NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE



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Transcrição:

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL: O PROBLEMA DO PODER NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE LUÍS ANTÔNIO ROSSI. Advogado. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutorando em Direito pela PUC/SP. Professor titular da disciplina Introdução aos Estudos do Direito do Curso de Direito das Faculdades Integradas Padre Albino. Palestrante em diversas Faculdades de São Paulo Atual Coordenador do Curso de Direito das Faculdades Integradas Padre Albino. Resumo: O presente artigo é uma breve discussão e análise crítica acerca do Controle de Constitucionalidade: limites e dimensões. A relação entre Direito e Poder no Controle de Constitucionalidade. A relação entre Direito e a Política Palavras-Chave: Direito Constitucional; Controle de Constitucionalidade, Filosofia do Direito; 1

INTRODUÇÃO O presente artigo é uma crítica ao texto OS LIMITES DA JUSTIÇA CONSTITUCI- ONAL: A INVASÃO DO ÂMBITO POLÍTICO, de autoria de Marina Gascón Albellán, publicado no livro Argumentação e Estado Constitucional, da Editora Ícone (SP, 2.012, págs. 635/656), que reúne aprofundados estudos sobre textos de Filosofia Constitucional. Em referido texto a autora procura traçar uma linha divisória entre DIREITO e POLÍ- TICA, para delinear os limites da Justiça Constitucional e identificar uma possível invasão no âmbito político, especialmente acentuada nos atritos com o legislador democrático. Conclui Marina Gascòn Albellán, afinal, que tais colisões entre o legislador democrático e a Justiça Constitucional se fazem presentes, sobretudo em constituições materiais, enriquecidas de princípios abertos de justiça, que proporcionam um exacerbado exercício discricionário de poder, o que, ao ver da citada autora, resulta aceitável e administrável, desde que conjugado com um sistema de autocontenção da jurisdição constitucional, que permita a preservação das cercas que separam o juízo político e o de legalidade. Sempre tendo por norte o texto de referência, o objetivo deste estudo é examinar os elementos invocados pela autora para, a partir deles, apontar que a proposta elencada a partir da perspectiva analítica do texto base se insere numa construção neopositivista kelseniana que não aborda em profundidade a questão do PODER no controle de constitucionalidade e portanto na justiça constitucional. Capítulo 1 - A JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE O principal fundamento do neopositivismo para assegurar a necessidade do controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico pátrio repousa na necessidade de estabilização do sistema, a partir de um rígido controle que possa proporcionar a máxima proteção e incolumidade da Constituição Federal. A partir daí emergem todas as construções teóricas do controle de constitucionalidade, com o propósito de consagrar a supremacia da constituição através da justiça constitucional. Dentre as clássicas construções teóricas acerca do controle de constitucionalidade sobressaem dois importantes sistemas de justiça constitucional: o controle difuso e concreto e o controle concentrado e abstrato, residindo a diferença entre ambos no fato de que o primeiro visa a garantia dos direitos enquanto o segundo ocupa-se do controle do texto legal. 2

Adotado pelo direito norte americano, o controle difuso e concreto assenta-se na premissa do poder constituinte encarnado no povo, fora e acima dos órgãos estatais, que decide e estabelece por si mesmo e para si mesmo uma ordem política determinada. (in Marina Gascòn Albellán, Os Limites da Justiça Constitucional: a Invasão do Âmbito Político, 2012, Editora Ícone, SP, pág. 637). Delega-se, assim, ao poder judiciário, o mais neutro dos poderes, o controle difuso e concreto para a proteção dos direitos constitucionais, que pode ser invocada perante qualquer juiz, e, em última instância, a Suprema Corte (e por tal razão é difusa), e corresponderá a uma solução jurídica particular (e por tal razão concreta). Sustentado no modelo de justiça constitucional kelseniano, o controle concentrado e abstrato restringe a guarda da Constituição a uma Corte Constitucional (e por tal razão concentrado), despregada da jurisdição ordinária, cujo pronunciamento se dá estritamente no âmbito jurídico-constitucional, despregado das pessoas e dos interesses políticos envolvidos no caso concreto (e por tal razão abstrato). Ao abordar as razões e motivos originários do sistema de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade Marina Gascón Albellán sustenta no texto de referência: Interessa destacar, no entanto, porque é importante para o que se dirá depois, que o êxito destes objetivos requeria algo mais, desta vez com referência à própria ideia de constituição. Kelsen, na realidade, já visualizava os perigos que, para uma justiça constitucional, que quisesse ser racional e respeitosa com o legislador, representavam os preceitos constitucionais mais ou menos vagos ou ambíguos; e daí sua enérgica rejeição a este tipo de normas. Por isso, para esse autor, a constituição é antes de tudo uma norma organizativa e procedimental cujo objetivo consiste em regular a produção de normas gerais e que pode assim mesmo é verdade condicionar até certo ponto o conteúdo dessas normas, mas sem que esse condicionamento substantivo possa conceber-se em termo de um sistema de valores e princípios com vocação de plena eficácia, assim como acontece nas constituições contemporâneas. Simplesmente, o reconhecimento de um caráter puramente formal à Constituição garantia a possibilidade de um juízo racional, mas representava principalmente um segundo e definitivo ato de reconhecimento ao legislador. in Marina Gascòn Albellán, Os Limites da Justiça Constitucional: a Invasão do Âmbito Político, 2012, Editora Ícone, SP, págs. 638/639) Após pontuar os motivos que levaram Hans Kelsen ao desenho do modelo de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, Marina Gascón Albellán anota, no texto base deste trabalho, os extremismos dos modelos apresentados, para indicar uma tendência à unificação, justificada não só pelo fato do modelo difuso encontrar na Suprema Corte o órgão definidor das grandes questões constitucionais, mas também pela prática, no modelo concentrado, de um controle incidental de constitucionalidade praticados por todos os juízes. 3

E, em seguida, registra a citada autora que os limites da justiça constitucional, na perspectiva da unificação dos modelos (concentrado e difuso), se revelam pela separação entre o juízo de constitucionalidade das normas jurídicas e a decisão política expressa na lei, sendo a primeira exclusivamente afeta à justiça constitucional, e a segunda de competência exclusiva do legislador democrático, o que, na prática, segundo a própria autora, revela-se de difícil aplicação, especialmente porque: Assim acontece quando o juiz constitucional dita um pronunciamento interpretativo, mas também (e principalmente) quando dita um pronunciamento constitutivo que arrebata do legislador suas funções políticas; e o mesmo acontece quando o juiz ordinário, em seu papel de guardião (também) da Constituição e sob pretexto desse mesmo princípio interpretativo, distorce intoleravelmente o sentido da lei. Por outro lado, a intromissão da Justiça Constitucional no âmbito da política é propiciada muitas vezes pela indeterminação do próprio texto constitucional, no qual são frequentes cláusulas aberta e princípios materiais de justiça cuja interpretação é notavelmente discricionária. (in Marina Gascòn Albellán, Os Limites da Justiça Constitucional: a Invasão do Âmbito Político, 2012, Editora Ícone, SP, pág. 643) Estas constatações levam Marina Gascón Albellán a abordar, no texto base deste trabalho, as ocorrências mais relevantes nas quais se apresentam o que a autora denomina invasão do âmbito político, numa referência à transposição dos limites da justiça constitucional e intromissão na seara de competência do legislador democrático. Sugere a autora, em primeiro lugar, um exame à interpretação conforme e sentenças interpretativas, ou seja, interpretações plausíveis de um texto legal (interpretação confirme), que, quando distorcidas pelos juízes, revelam o exercício de funções políticas, e interpretações que não anulam o texto da lei na medida em que admitem alguma interpretação conforme a constituição (sentença interpretativa), que, quando se operam, significam o exercício de uma tarefa quase legislativa. Nesta mesma linha, Marina Gascón Albellán trata também das sentenças manipulativas, ou seja, uma decisão judicial pela qual se salva a constitucionalidade de uma norma jurídica, mesmo ciente de que o preceito normativa impugnado não se defende pela interpretação conforme nem tampouco pela sentença interpretativa, mas, mesmo assim, não se considera conveniente expungir o preceito do ordenamento jurídico, o que leva o julgador a manipular a interpretação, forçando as possibilidades de interpretação do texto. 4

As ocorrências identificadas no texto base deste trabalho levam Marina Gascón Albellán a concluir: Levando em conta que o parâmetro de controle que há de usar a jurisdição constitucional é uma constituição carregada de cláusulas abertas e princípios materiais de justiça de significado altamente conflituoso, parece que o único que caberia fazer é desenhar os mecanismos para conjurar os riscos de governo do juiz constitucional e em todo caso pedir da jurisdição constitucional um exercício de autocontenção; um self restraint que permita manter as saudáveis fronteiras entre o juízo de constitucionalidade, por um lado, e o juízo político e de legalidade, por outro. Só se esta saudável contenção se consegue, poderemos conciliar a exigência de garantir a efetividade da constituição com a de garantir uma política democrática, decidida conforme aos mecanismos de produção democrática legislativa. Naturalmente com isso não se pretende tirar nem um pouco de força vinculante à Constituição. Significa somente que a constituição, e especialmente sua parte material e programática, não oferece uma resposta unívoca a todos e a cada um dos casos ou conflitos que se possam apresentar, mas apenas uns condutos de autuação mais ou menos amplos dentro dos quais se desenvolverão tanto as instituições políticas quanto o operadores jurídicos. Por isso, talvez não seja demais insistir também na importância técnica, mas principalmente legitimadora que apresenta a argumentação no âmbito de uma jurisdição constitucional que, mais do que nenhuma outra, já de fazer uso de valores, princípios e, em geral, normas de conteúdo, substantivo coincidentes com postulados morais. (in Marina Gascòn Albellán, Os Limites da Justiça Constitucional: a Invasão do Âmbito Político, 2012, Editora Ícone, SP, págs. 655/656) O texto objeto de abordagem pelo presente trabalho, em suma, constata o descompasso entre a norma constitucional e a aplicação normativa da constituição, mas seu aprisionamento a uma abordagem neopositivismo o bloqueiam a uma reflexão mais aprofundada das problemáticas ligadas às normas constitucionais, sua interpretação e aplicação. 5

Capítulo 02. NORMA (CONSTITUCIONAL), INTERPRETAÇÃO E DECISÃO JURÍDICA A questão enfrentada no artigo em exame, qual seja, OS LIMITES DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL: A INVASÃO DO ÂMBITO POLÍTICO, de autoria de Marina Gascón Albellán, parece externar sua angustia na insuperável constatação decorrente da linha analítico-positivista que adota -, a partir da análise de casos concretos, de que há uma (às vezes substancial) variação entre o texto normativo constitucional e sua efetiva aplicação no deslinde de situações judiciais, o que leva a autora a engendrar hipóteses explicativas consubstanciadas num construção dogmática da interpretação (trata de interpretação conforme, sentença interpretativa e sentença manipulativa), para, timidamente, invocar ao final uma proposta de racionalidade assentada na argumentação, embora a própria autora reconheça a ineficácia desta proposta, que deverá contar com a boa vontade da autocontenção da justiça constitucional. Sob outra perspectiva metodológica, numa linha pragmática, a questão dos LIMITES DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL e a INVASÃO DO ÂMBITO POLÍTICO se desenha através de uma Teoria do Direito que identifica o fenômeno jurídico sistematizado composto de sintática (norma), semântica (fato) e pragmática (valor), em constante mutação decorrente das influências experimentadas de seu contato com elementos externos ao sistema. Superado o positivismo lógico centrado na norma (sintática), o Direito se manifestará a partir do consórcio de sintática, semântica e pragmática, manejados (interpretados) simultaneamente por operados que terão de adotar opções (exercício de poder) dentre as várias possíveis a serem encontradas a partir deste manejo. A hermenêutica, aqui, revela-se como ponte entre o teor normativo e sua efetiva aplicação, e esta ponte, exercitada por pessoas (operadores do direito), não se mostra desinteressada, mas, antes ao contrário, agarrada a uma condição existencial, conforme Martin Heidegger (Ser e o Tempo) e Hans-Georg Gademer (Verdade e Método, Petrópolis, Vozes), para os quais toda a compreensão é em si uma pré-compreensão, pois do compreender algo decorre a condição existencial daquele que compreende, seus valores, conhecimentos, visões de mundo. 6

Isto significa que a decisão jurídica, enquanto fenômeno de efetiva aplicação do Direito, se revela como um procedimento de poder, pois ao interprete caberá extrair da sintática, semântica e pragmática uma escolha dentre as interpretações possíveis, e esta escolha representará a decisão jurídica, impregnada da condição existencial do interprete a quem esta escolha tocou. Transpondo essa dinâmica para Justiça Constitucional e o Poder de Controle de Constitucionalidade, nota-se que a sintática, a semântica e a pragmática do Direito Constitucional não se apresentam livres da hermenêutica, e o exercício de poder de escolha da melhor interpretação constitucional repousa sobre a condição existencial daqueles que a operam, condição essa delineada com maestria pelo professor Márcio Pugliesi: Na verdade, uma complexa trama de instituições, órgão e aparelhos estatais de repressão às condutas instabilizadoras das relações sociais dinamicamente em transformação; valores das classes dominantes, direta ou indiretamente, veiculados pelos massmedia; a intrincada e indescritível malha de relações formais e informais de influência e poder e outros referenciais, liminar ou subliminarmente, apresentados aos sujeitos, fazem com que o estado de conhecimento dos súditos de um determinado poder, manifesto inclusive através de um ordenamento jurídico, apresente uma componente comum apta a fazê-los compor o jogo da sociedade de um modo fluido, sem crises imediatas e com expectativas de longo prazo. Os mecanismos educacionais com sua preponderante tarefa de reprodução contribuem, a par da possibilidade de uma ação crítica, mercê, inclusive, da conscientização de seu próprio papel conservador, para a produção de operadores do sistema aptos a contribuir para sua preservação e de faze frente aos reclamos da retroalimentação, principalmente, via reformas, em lugar de revoluções de resultado imprevisível face ao menor grau de controle possível de sua evolução. Tecnicamente se está diante de um processo descritível através a programação dinâmica, haja vista a previsibilidade, graças a um sistema codificado de ação do aparelho do Estado, elaborador e dispensador de Justiça, dos resultados de litispendências possíveis (há ações que são impossíveis para determinados sujeitos que, embora interessados, não reúnem condições processuais para compor a lide), constituindo uma quadro de segurança jurídica (in Por uma Teoria do Direito, SP: RCS Editora, 2005, págs. 162/163) É exatamente o caso das ações cujo objeto é o de preservar o controle de constitucionalidade. Reservado para poucos (poucos são os legitimados, assim como poucos serão os seus examinadores), este poder de controle, em nome de uma segurança jurídica, se apresenta, para o quadro supra desenhado (sintática, semântica e pragmática do Direito Constitucional, interpretado e aplicado pelo STF), através da condição existencial de cada um dos membros da Corte, revelados num substrato que não se mostra livre, mas sim reservado às condições linhas atrás anotadas pelo professor Pugliesi, tudo vinculado ao modo pelo qual o poder se manifesta. 7

Nessa conjectura, a abordagem dos limites da Justiça Constitucional e uma possível invasão do âmbito político passa necessariamente pelo exame das condições de poder ali externadas, o que, a rigor, remete mesmo a uma impropriedade da propositura, pois, sendo o poder o centro condicionante e diretivo da Justiça Constitucional, e exercitado na linha discricionária aflorada a partir das condições existenciais de quem o exercer, a Justiça Constitucional jamais poderá ser considerada em separado do âmbito político, eis que seu âmago é pelo âmbito político forjado, ou seja: Sendo uma política uma sequencia de decisões previamente escolhida entre as disponíveis em um processo determinístico e sequencial de decisões possíveis, isto é, aquele em eu o estado de coisas em uma certa data configure-se, para o sujeito, como fortemente dependente das condições iniciais (data precedente) e das decisões antecipadas ou tomadas para alcançar Conclusão A Constituição de 1988 revelou para o Judiciário um papel relevante e no que diz respeito à sua posição e à sua identidade na Organização dos Poderes e, portanto, ampliou o seu papel político e sua dimensão de Poder. Sua margem de atuação foi ampliada com a extensa constitucionalização de direitos conhecidos como fundamentais e catalogados como parte da dignidade humana. Dessa forma, a Constituição de 1988, sistema jurídico motriz da democratização, sinalizou para o Poder Judiciário um papel de condutor dos direitos humanos, o que resultou um alargamento em demasia de sua Competência Constitucional. O Judiciário passou a ser o protagonista da cena política pátria, acarretando uma ruptura da Divisão dos Poderes. As sentenças frequentemente invadem a competência administrativa e discricionária do Poder Executivo e, ademais, decisões superam a simples interpretação legislativa da norma, criando obrigações comparáveis às leis, ou seja, decisões que suprimem, outrossim, a competência do Poder Legislativo. Em face do cenário contemporâneo brasileiro, o controle de constitucionalidade pátrio transformou-se em palco do Poder Político e os argumentos jurídicos em debates que extrapolam a superação da lide constitucional. Em síntese, o modelo institucional conferiu ao Judiciário um papel de Poder relevante, legitimando a atuação pública da magistratura e transformando o palco judicial em um espaço de confronto entre as forças políticas do país. Destarte, o Controle de Constitucionalidade e os julgamentos do Supremo Tribunal Federal transformaram-se em decisões de caráter governamental e relevância política. 8

No entanto, sentenças manipulativas, ou seja, uma decisão judicial pela qual se salva a constitucionalidade de uma norma jurídica, mesmo ciente de que o preceito normativa impugnado não se defende pela interpretação conforme nem tampouco pela sentença interpretativa, mas, mesmo assim, não se considera conveniente expungir o preceito do ordenamento jurídico, o que leva o julgador a manipular a interpretação, forçando as possibilidades de interpretação do texto, transformado a técnica em discurso. O Direito em Política e a decisão em Poder. BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília, UnB, 2002 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito - Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2002 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo, Atlas, 2006 MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Argumentação e Estado Constitucional, São Paulo: Ícone, 2012 PUGLIESI, Márcio. Por uma Teoria do Direito, São Paulo: RCS Editora, 2005 9