Crimes motivados pelo preconceito: O aumento de ocorrências de estupro corretivo na África do Sul



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Transcrição:

Crimes motivados pelo preconceito: O aumento de ocorrências de estupro corretivo na África do Sul 2009

Conteúdo Apresentação Introdução O problema As vítimas Estudos de caso: Eudy e Pretty Por que isso está acontecendo? Falhas no sistema de justiça penal Conclusão 3 5 8 9 10 12 13 14

3 - Apresentação Apresentação A transição da África do Sul para a democracia e um quadro constitucional e de direitos humanos tem sido fonte de esperança e inspiração para milhões de pessoas, tanto dentro e como fora do país. Mas enquanto o país lida com o desafio de transformar promessa em realidade, ele vem sendo confrontado por inúmeros obstáculos, entre eles a violência baseada em gênero. Este relatório da ActionAid descreve alguns dos atos de violência mais chocantes sendo cometidos contra mulheres incluindo casos de estupro corretivo, em que homens estupram mulheres para curá-las do lesbianismo. Causa grande inquietação o fato de que, 15 anos após a instituição da democracia no país, esses tipos de crimes continuem ocorrendo. Nossa nova ordem constitucional se baseia no poderoso princípio que reconhece o valor e dignidade inerentes a cada pessoa a violência contra as mulheres em função de sua opção sexual viola esse princípio e ameaça o sistema promissor e animador, porém frágil, que instituímos. civil e cada indivíduo de nos erguemos em defesa tanto da constituição como dos direitos de todos. Crimes motivados pelo preconceito exigem ação decisiva e os responsáveis precisam responder por eles. O sistema de justiça penal precisa desenvolver mais estratégias efetivas neste sentido. Os muitos indivíduos que vieram à público compartilhar suas histórias neste relatório o fizeram parcialmente com a esperança de que seu testemunho irá conduzir a sociedade à ação. Uma dessas ações seria garantir que crimes motivados pelo preconceito fossem reconhecidos pelo sistema de justiça penal. Devemos fazer uso deste relatório como base para a conscientização pública e a reforma legal e, em última análise, para garantir que avancemos na promessa da constituição de reconhecer o valor e dignidade iguais de cada pessoa. Jody Kollapen Chair, da Comissão Sul-africana de Direitos Humanos Todos nós temos uma responsabilidade instituições como a Comissão de Direitos Humanos da África do Sul, a sociedade

Zakne foi ameaçada de estupro corretivo. Suas amigas Sizakele e Salome foram estupradas e mortas em 2007.

5 - Introdução Introdução A violência contra mulheres e meninas permanece constante em todo continente, país e cultura. Ela tem efeito devastador nas vidas das mulheres, nas suas famílias e na sociedade como um todo. A maioria das sociedades proíbe esse tipo de violência mas a verdade é que, muito frequentemente, ela é encoberta ou tacitamente perdoada. Ban Ki Moon, Secretária Geral das ONU Eles me dizem que vão me matar, que vão me estuprar, e que, depois de estuprada, eu serei uma garota. Eu serei uma garota hetero. Zakhe, 23, Soweto. Enquanto celebramos o Dia Internacional da Mulher em 2009, ao redor do mundo milhões de mulheres continuam a ser assassinadas, estupradas e agredidas impunemente. A ONU estima que pelo menos uma em cada três mulheres já foi agredida, coagida a fazer sexo, ou abusada ao longo de sua vida. A violência extrapola as fronteiras de classe, raça, idade e opção sexual. Causa lesões e mortes, mas também impede mulheres e crianças de terem acesso à educação e saúde, de trabalharem e de participarem em suas comunidades e na sociedade. Na África do Sul, nenhuma mulher está segura da violência. Cerca de 500 mil estupros, centenas de assassinatos e inúmeras agressões ocorrem a cada ano. Há previsões chocantes de que quase metade das mulheres sul-africanas será estuprada em algum momento de suas vidas. De cada 25 homens levados à julgamento por estupro na África do Sul, 24 não são presos. Esse recorde vergonhoso de dominação masculina e violência ajudou a instituir uma cultura cada vez mais brutal e opressiva, na qual mulheres são forçadas a se conformarem ao estereótipo de gênero ou sofrem as conseqüências. Como parte dessa opressão, o país agora está testemunhando uma onda de crimes que têm como alvo mulheres lésbicas, que são percebidas como representantes de uma ameaça direta e específica ao status quo. Essa violência geralmente se dá pelo estupro corretivo uma forma de castigar e curar as mulheres de sua opção sexual. No início de 2009, a ActionAid entrevistou 15 sobreviventes desses crimes e as organizações que trabalharam com elas. Elas nos contaram as suas histórias e as de suas amigas que não sobreviveram. Suas palavras formam a base deste relatório. Na escola, eu fui traída pelo meu melhor amigo. Ele me falou para ir até a casa dele para fazer um trabalho escolar, mas quando eu cheguei à casa, ele me bateu tão forte que eu caí, e ele me estuprou porque ele disse que eu precisava parar de ser lésbica. Depois disso, eu fiquei grávida e tive um bebê. Na segunda vez, minhas amigas do futebol e eu fomos sequestradas a mão armada e levadas para um local distante onde fizeram tudo que queriam conosco durante três dias. Nós contamos à polícia, mas o caso simplesmente desapareceu. Nada aconteceu porque eles todos acharam que nós havíamos merecido aquilo. Esses homens ainda estão caminhando por aí livremente. Nomawabo, 30, Limpopo, África do Sul.

6 - Introdução O trabalho da ActionAid com direitos das mulheres Conquistar os direitos das mulheres é a prioridade global da ActionAid e isso se reflete em todo nosso trabalho de campanhas e programas. Nós acreditamos firmemente que a erradicação da pobreza e da injustiça será impossível sem que a igualdade e direitos da mulher estejam garantidos. Para fazer isso de forma efetiva, nós temos que fazer um esforço para atacar a violência contra as mulheres. Junto com organizações parceiras ao redor do mundo, nós fazemos campanha por mudanças na lei e exigimos acesso à justiça; nós oferecemos serviços às sobreviventes da violência e apoiamos programas para o empoderamento das mulheres. Como mostra este relatório, muito frequentemente as mulheres são alvo de violência sexual, o que aumenta a probabilidade delas contraírem o vírus do HIV. A interseção da violência contra a mulher e o HIV é o foco da Women Won t Wait, uma coalisão internacional da qual a ActionAid faz parte. Opção sexual e direitos humanos Violações de direitos humanos motivadas pelo preconceito contra a opção sexual é um fenômeno global. Elas incluem a agressão sexual, o estupro, a tortura e o assassinato, além da negação de emprego, educação e outros direitos básicos. A discriminação contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) é baseada na idéia de heteronormartividade. Dominante na maioria das sociedades, a heteronormatividade afirma que a heterosexualidade é a única opção sexual normal, que somente relações sexuais ou maritais entre homens e mulheres são aceitáveis, e que cada sexo tem certos papéis naturais na vida, os chamados papéis de gênero. Em muitos lugares, mulheres e homens que transcendem essas normas ou desafiam esses papéis enfrentam discriminação e violência. Em 86 estados membros da ONU, a homosexualidade é ilegal, e em sete países ela é punida com a morte. A África do Sul é um dos únicos países no mundo a proibir explícitamente a discriminação em função da opção sexual em sua constituição, embora muitos outros países garantam os direitos de pessoas LGBT através da lei. No entanto, como demonstra este relatório, para que as pessoas LGBT possam usufruir de seus direitos, é essencial que esses direitos sejam promovidos, protegidos e garantidos pelo Estado. Em dezembro de 2008, a ONU criou a declaração sobre opção sexual e identidade de gênero. Até a redação deste relatório, sessenta e seis países haviam assinado a declaração, incluindo seis países da África. Os Estados Unidos, a Índia e a África do Sul estavam entre os países que ainda não haviam assinado.

Nomawabo sobreviveu à violência brutal. Ela foi estuprada por um amigo da escola aos 15 e, aos 17, abduzida e atacada por uma gangue de homens.

8 - O problema O problema Embora estejamos conscientes do fato de que crimes motivados pelo preconceito especialmente de natureza sexual são numerosos, isso não é algo que o governo sul-africano priorizou como um projeto específico. Declaração de Autoridade Judicial Nacional da África do Sul, Janeiro de 2009. A África do Sul dispõe de umas das constituições mais progressistas do mundo, assegurando igualdade para todos os cidadãos e proteção à discriminação em função de gênero, raça e opção sexual. Mas esses ideais são raramente traduzidos para a prática do cotidiano. O Ato de Igualdade, emitido em 2000, especificamente proíbe os chamados crimes de violência, cometidos contra pessoas simplesmente por elas serem identificadas como pertencentes a um determinado grupo. Embora em teoria isso inclua crimes em função da opção sexual, na prática os únicos casos trazidos à julgamento foram aqueles em função de raça e gênero. A falha na implementação das promessas constitucionais em defesa de lésbicas e gays, e um sistema legal e penal totalmente apático ao problema faz com que agressores raramente sejam levados à justiça. E uma cultura do estupro já está sendo transmitida para as gerações mais jovens de homens sul-africanos. No ano passado, um relatório da Comissão de Direitos Humanos da África do Sul expressou preocupação com o crescente fenômeno de estupros corretivos em escolas ao redor do país sendo cometidos por jovens garotos que acreditam que garotas lésbicas precisam ser estupradas para terem sua opção sexual corrigida. Grupos de apoio agora dizem que o estupro está se tornando o crime de ódio contra mulheres lésbicas mais difundido em municípios de toda a África do Sul. Um grupo de apoio à lésbicas e gays da Cidade do Cabo diz que está lidando com 10 novos casos a cada semana, e que esse número está aumentando rapidamente. E são as negras lésbicas que carecem de sistemas de apoio suficientes e já estão em desvantagem por conta da discriminação cultural, econômica e social que estão particularmente vulneráveis. Uma pesquisa de 2008 do grupo de apoio aos direitos gays Triângulo revelou que, enquanto 44% das lésbicas brancas do Cabo Ocidental viviam com medo de agressão sexual, a sensação de insegurança era a realidade de 86% de lésbicas negras no mesmo local. Todos os dias você sente como se uma bomba-relógio fosse explodir, você não tem liberdade de ir e vir, você não tem seu espaço para fazer o que bem quer, você está sempre com medo e sua vida sempre parece limitada. Como mulheres e lésbicas nós precisamos estar conscientes de que nós estamos em perigo, todas as mulheres estão em perigo. Phumla, Soweto, Joanesburgo.

9 - As vítimas As vítimas Em 7 de julho de 2007, os corpos de Sizakele Sigasa e Salome Massooa foram encontrados num campo em Meadowlands, perto do município de Joanesburgo onde viviam. Os assassinatos foram particularmente chocantes pela brutalidade dos ataques aos quais essas mulheres foram submetidas antes de morrerem. Ambas haviam sido estupradas por uma gangue e torturadas antes de serem amarradas com suas calcinhas e fuziladas na cabeça. Sizakele foi uma das primeiras mulheres em Meadowlands a viver abertamente como lésbica, e foi uma conhecida ativista pelos direitos das mulheres e dos gays e participante de campanhas relacionadas ao HIV. Na noite dos assassinatos, ambas as mulheres haviam bebido num bar local e, de acordo com testemunhas oculares, sofreram abuso homofóbico de um grupo de pessoas quando saíram para voltarem para casa. Quase dois anos depois de suas mortes, ninguém foi levado à julgamento pelo crime. A polícia inicialmente deteve e libertou três homens. Outro suspeito cometeu suicídio antes da polícia chegar para prendê-lo. O caso agora está efetivamente encerrado. Depois desses assassinatos, 27 grupos comunitários e pró-direitos de mulheres e gays, incluindo os parceiros da ActionAid People Opposing Women Abuse (POWA) e Treatment Action Campaign (TAC) se uniram para criar a campanha 07-07- 07, assim intitulada para marcar a data em que as mulheres foram mortas. A campanha clama por justiça para Sizakele e Salome e todas as mulheres que são alvos de crimes motivados pelo preconceito. Eles estavam do lado de fora de um bar. Um grupo de pessoas as estava incomodando e as chamando de moleques, mas Sizakele disse, não, não somos moleques, somos lésbicas, e aí elas se foram e nunca mais as vimos novamente. Tshidi, amiga de Sizakele Sigasa, Soweto. Apesar da inação da polícia, a coalisão está exigindo que as autoridades reexaminem o caso e conduzam uma investigação minuciosa e eficiente do assassinato, estupro e tortura dessas mulheres. Também está urgindo a polícia a trabalhar com membros da comunidade de Meadowlands depois de denúncias de que testemunhas que podem ter informações valiosas sobre o que ocorreu na noite dos assassinatos ainda não foram questionadas. Conforme explica Carrie Shelver, da POWA, nós sabemos que houve mais de um perpetrador nesse assassinato e, apesar disso, a polícia não segue outras pistas. Em 2006, Zoliswa Nkonyana, uma mulher de 19 anos de Khayelitsha, Cidade do Cabo, foi apedrejada até a morte por uma multidão do lado de fora de sua casa. O julgamento dos homens acusados pelo assassinato foi adiado oito vezes, tendo a primeira testemunha finalmente depondo em dezembro de 2008. O julgamento pelo estupro e assassinato brutais de Eudy Simelane, ex-jogadora de futebol da seleção da África do Sul, começou no mês passado.

10 - Estudo de caso: Eudy e Pretty Estudo de caso: Eudy e Pretty Eu conheci Eudy na escola primária e aí nós nos tornamos melhores amigas. Já nesse período nós percebíamos que éramos diferentes das outras garotas. Jogamos no meesmo time de futebol até os 18 ou 19 anos. Eudy era orgulhosa de quem era. Ela era uma jogadora de futebol nacional, ela sabia o que queria da vida. O fato dela ter sido morta daquele jeito, a brutalidade da coisa, para mim ainda é difícil de acreditar. Não é um tipo de assassinato comum em que alguém é esfaqueado e pronto. Houve um estupro. Houve ridicularização. Um grupo de pessoas veio e disse, então você acha que é um homem, então nós vamos ver. Que tipo de ódio essas pessoas podiam ter por ela quando ela não fez nada a não ser ser ela mesma? trabalho que eu estou realizando com [organização local] o Gender Equality Project (Projeto de Igualdade de Gênero) está tentando ajudar pessoas lésbicas e gays em comunidades, assegurar que elas não sejam negligenciadas, que elas se sintam livres para serem elas mesmas. Nós desenvolvemos programas educativos e tentamos trabalhar com a polícia para que lésbicas sintam que elas podem denunciar crimes motivados pelo preconceito e serem ouvidas. Pretty, 31, município de Kwa Thema, Joanesburgo. Logo que eu descobri o que havia acontecido com ela, eu fui ao campo onde tudo aconteceu, onde eles a estupraram e esfaquearam. Seu sangue e suas roupas ainda estavam por toda parte, porque a polícia havia deixado tudo lá. Eu nunca vou esquecer o pai dela de quatro limpando o sangue com suas mãos. Depois que você vê sua amiga estuprada e assassinada dessa forma você não pode evitar se sentir assustada todo o tempo. Muitas vezes eu fui agredida e insultada. Existe a ameaça do estupro sempre. Eu costumava tentar lutar quando eles nos atacavam, mas eu percebi que é inútil porque eu nunca serei fisicamente forte o bastante. Então eu decidi lutar de outras maneiras. O

Pretty era melhor amiga de Eudy, que foi brutalmente assassinada em função de sua opção sexual.

12 - Por que está acontecendo? Por que está acontecendo? Quando se perguntar por que as mulheres estão sendo estupradas e mortas em intensidade tão grande na África do Sul, você terá que olhar para a cultura machista, que busca oprimir as mulheres e as vê como meros seres sexuais. Então uma mulher lésbica se torna uma afronta absoluta a esse tipo de masculinidade. Carrie Shelver, POWA Um cara queria sair com minha namorada, então um dia ele me pegou com um grupo de seus amigos gangsters. Eles me levaram para um lugar abandonado onde me bateram com uma chave inglesa e fizeram o que queriam...todo o tempo eles me diziam que isso é o que acontece quando uma mulher finge ser um homem. Crescente cultura de misoginia e violência Estima-se que uma mulher seja estuprada a cada 26 segundos na África do Sul. Numa pesquisa realizada pela organização de apoio nacional CIET, quase 20% dos homens, quando questionados sobre suas opniões em relação ao estupro, afirmaram crer que a sobrevivente não só havia gostado da experiência como também a merecido. Sobreviventes de estupro corretivo entrevistadas pela ActionAid disseram que o abuso verbal antes e durante o estupro é centrado na idéia de ensinar uma lição e mostrar como ser uma mulher de verdade e como é o sabor de um homem de verdade. Em outras palavras, mulheres Tshidi, 31, Cidade do Cabo. que escolhem não se identificar como heterossexuais são vitimizadas por serem anormais por ousarem extrapolar o que suas famílias, comunidades e a sociedade em geral delimitam para elas. Tshidi (direita) e Pumeza namoram há dois anos. Ambas já foram atacadas e intimidadas.

13 - Falhas no sistema judiciário Falhas no sistema judiciário Nós tivemos que nos esconder porque temíamos por nossas vidas no meu município. Minha namorada teve que vir de Joanesburgo para a Cidade do Cabo por causa da violência que ela sofreu lá. Depois, aqui na Cidade do Cabo, dois homens arrombaram nossa casa, atiraram em nossa direção. Éramos ameaçadas diariamente. Nos sentimos como criminosas e covardes porque fugimos, mas eu não acho que estaríamos vivas se tivéssemos permanecido lá. Pumeza, 32, Khayetlitsha, Cidade do Cabo. Numa enquete com sobreviventes de crimes homofóbicos no Cabo Ocidental, 66% das mulheres disseram que não denunciaram o ataque porque não seriam levadas a sério. Dessas, 25% temia expor sua opção sexual à polícia e 22% temia sofrer abuso. Conforme explicou uma mulher, Quando uma mulher lésbica é estuprada, sua família e as pessoas da rua dizem que ela mereceu e que o estuprador mostrou a ela como é ser mulher. É mais fácil ficar calada. As mulheres que buscam justiça no sistema judiciário sofrem decepções. Só um em cada cinco casos de estupro é julgado, sendo que pouco mais de 4% resulta em condenação. Apesar de 31 assassinatos de mulheres lésbicas terem registrados desde 1998, até hoje só houve uma condenação. Grupos de direitos das mulheres como o POWA e a TAC relatam que é comum que casos sejam adiados múltiplas vezes antes de serem ouvidos por um juiz, e que alguns fracassam devido a má investigação e preparação insuficiente. Também vale a pena ressaltar que a lei de crime motivado por preconceito é interpretada de forma restrita nos tribunais como aplicável somente em função de raça e gênero. Quando a opção sexual é levada em conta, ela só é considerada como fator agravante no senteciamento. Ela não é considerada como parte da evidência. Na prática, isso significa que a justiça e a polícia não registram crimes motivados pelo preconceito contra a opção sexual ou nem coletam evidência desse aspecto do caso. Nenhum ou poucos recursos são investidos no combate a esse tipo de crime. A campanha 07-07-07 quer que o estupro corretivo seja reconhecido como crime motivado pelo preconceito contra mulheres lésbicas. E que, além da opção sexual ser identificada como fator agravante nesses casos, que a justiça fortaleça o Ato de Igualdade nesse campo. Além disso, a campanha pede que a opção sexual seja especificamente reconhecida como base para proteção pelo Projeto de Lei de Proibição de Discurso de Ódio. Aqui na África do Sul você tem juízes mandando mulheres para a cadeia por roubar pão para alimentar seu bebê, mas homens que estupram mulheres em grupo, que assassinam lésbicas, que batem em suas esposas até matá-las, esses andam por aí livremente. Tshidi, 31, Cidade do Cabo.

14 - Conclusão Conclusão Eu acho que a violência está piorando. Os corpos das mulheres se tornaram zonas de guerra. Se um homem te estupra, ele está tentando te destruir, te aniquilar da face do planeta. Eu quero que o meu trabalho alcance o maior número de jovens lésbicas possível porque muitas mulheres agora têm medo de sair do armário. Ter nossas próprias organizações é a única maneira de nos defender. O que estamos tentando dizer é que se trabalharmos juntas podemos começar a mudar atitudes. Mas no momento a violência é uma realidade do dia-a-dia com a qual temos que conviver. Phumi Mtetwa, Diretora do Projeto de Igualdade de Gays e Lésbicas em Joanesburgo. A violência contras as mulheres é um crime. Todas as mulheres, não importa a raça ou a opção sexual, têm o direito de viver sem medo e livre de preconceito, discriminação e violência. A onda de crimes motivados por preconceito contra lésbicas negras na África do Sul faz parte de uma epidemia de violência contra mulheres que está varrendo o país, fazendo pouco caso de uma das constituições mais progressistas do mundo e colocando as vidas e a segurança de milhões de mulheres em risco. Neste Dia Internacional da Mulher, a ActionAid clama pelo fim da guerra da África do Sul contra as mulheres, com as seguintes recomendações. Nos sentimos como criminosas e covardes porque fugimos, mas eu não acho que estaríamos vivas se tivéssemos permanecido lá. Pumeza

15 - Conclusão O governo sul-africano deve: --Apoiar a constituição sul-africana na proibição da discriminação contra pessoas em função da opção sexual, atacando, inclusive, a crescente onda de violência contra mulheres lésbicas. --Demonstrar seu comprometimento para enfrentar o problema, assinando a declaração de opção sexual e identidade de gênero da ONU que condena a violência, discriminação, exclusão, estigmatização e preconceito em função da opção sexual e da identidade de gênero. --Julgar todos aqueles que cometem violência contras as mulheres. --Fazer do ataque à violência sexual uma prioridade nacional para o sistema judiciário e alocar recursos adequados para investigações, bem como para o incentivo e o treinamento adequado para a polícia e o judiciário. --Reconhecer os crimes motivados pelo preconceito contra lésbicas e transexuais como uma categoria específica de crime, com apoio dos recursos necessários para investigar e levar esses crimes à julgamento. --Incluir a opção sexual como base para a proteção contra o discurso de ódio no Projeto de Lei de Proibição do Discurso de Ódio. --Alocar recursos para serviços adequados para sobreviventes de violência sexual, incluindo profilaxia pós-exposição para prevenir a transmissão de HIV e a contracepção. --Garantir que serviços específicos para atendimento a portadores de HIV estejam disponíveis e acessíveis para comunidades lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT). --Combater a discriminação de gênero e a violência contra mulheres, inclusive através de medidas de empoderamento econômico e de programas de educação comunitária. A comunidade internacional deve: --Reconhecer a violência contra as mulheres como a violação mais difundida dos direitos humanos e uma questão de segurança chave. --Priorizar e agir em prol da garantia da segurança de mulheres, combatendo o problema da violência contra as mulheres em todas as suas manifestações.