1 Introdução Os transtornos por uso de substâncias psicoativas e infrações criminais associadas são questões de alta complexidade, interrelacionadas e abordadas na nova lei de número 11.343, sancionada no dia 23 de agosto de 2006. 7 Tal diploma legisla sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre drogas, as atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de dependentes e usuários, crimes, penas, repressão à produção não autorizada e tráfico ilícito de drogas. A nova lei determina uma mudança de paradigma, promovendo a abordagem do usuário e dependente de substâncias psicoativas pelo sistema de saúde pública. Sua entrada em vigor levou à ebulição de opiniões desfavoráveis ao tratamento político-criminal dispensado ao usuário, erigindo discussão controversa a respeito de possível descriminalização e despenalização do porte de entorpecentes para uso próprio. Este artigo visa discutir as principais questões referentes a nova abordagem legal do porte de drogas pelo usuário ou dependente 8. Transtornos por uso de Substâncias Psicoativas Substâncias psicoativas têm sido usadas pela maioria das culturas desde a préhistória e durante séculos serviram a funções individuais e sociais, que incluem seu uso em rituais e cerimônias religiosas e funções medicinais. 1 O avanço do conhecimento sobre os efeitos nocivos associados ao uso de substâncias psicoativas levou a um crescente aumento da preocupação por parte da comunidade da área de saúde a respeito do assunto. Concomitantemente houve aumento das pesquisas a respeito das abordagens diagnósticas e terapêuticas biopsicossociais, superando o tratamento exclusivamente jurídico desta conduta. Transtornos por uso de substâncias, dependência e abuso de substâncias, além dos transtornos mentais induzidos pelo uso de substâncias, que incluem transtornos psicóticos e de humor, intoxicação e abstinência, atualmente são listados pelo manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, DSM-IV, como transtornos relacionados a substâncias. 4 O DSM-IV classifica o abuso como um padrão mal-adaptativo de uso de substâncias, manifestado por conseqüências adversas recorrentes e significativas relacionadas ao uso repetido da substância. Os efeitos nocivos podem envolver comprometimento psicológico (heteroagressividade), social (brigas, faltas no emprego), físico (acidentes) ou biológico. 5 Para o DSM-IV, a característica principal da dependência é a presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos indicando que o indivíduo continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos relacionados a ela. Existe um padrão de auto-administração repetida que geralmente resulta em tolerância, abstinência e comportamento compulsivo de consumo de droga. 6 Legislações anteriores A progressiva percepção dos efeitos nocivos das drogas ao bom funcionamento do indivíduo e da sociedade como um todo levou a uma progressiva criminalização do seu uso. No final do século XIX, casos de suicídios envolvendo grandes quantidades ingeridas de opiáceos foram explorados pela imprensa. No Brasil até 1830, a regulamentação do uso de drogas era feita através das Ordenações Filipinas que
2 proibiam guardar e vender diversos remédios, inclusive o ópio. O primeiro código penal da República, de 1890, aplicava multas àqueles que vendessem ou usassem substâncias consideradas venenosas. A lei federal n o 4.294 de 1921 aplicava medidas contra os vendedores ilegais de entorpecentes, mas não ao consumidor. 2,3 O diploma anterior ao atual que efetivamente regia a aplicação de penas aos portadores de drogas para uso próprio, Lei 6.368/76, mantinha a cominação de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa aos infratores. 2 A nova Lei de Drogas A nova Lei surge como uma medida visando promover a atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, sem descriminalizar ou despenalizar a conduta, ampliando a responsabildade do sistema de saúde na recuperação do infrator. 16 A medida central da mudança é a exclusão de penas privativas de liberdade, além de uma determinação jurídica quanto ao tratamento. Os artigos 27 a 30 da nova lei, em seu terceiro título, capítulo III, tratam da definição de crime e das penas referentes ao porte de drogas para consumo pessoal. Aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo drogas para consumo pessoal será submetido às seguintes penas: advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços às comunidades e medida de comparecimento a programa ou curso educativo 7. O novo diploma não avança com nenhuma estratégia de descriminalização, deixa de imprimir um caráter intimidador nas sanções previstas para as condutas associadas ao uso. A posse de drogas passa a ser tratada como ilícito sui generis, não se impondo a ela pena privativa de liberdade ou multa, e sim medidas judiciais. Incorrese assim, no risco das penas adquirirem caráter meramente simbólico, sendo questionada a efetividade da advertência aplicada pelo juiz, assim como a imposição de medida educativa. 9 Tais penas serão aplicadas pelo prazo máximo de cinco meses ou, no caso de reincidência, 10 meses. Aqueles que semeiam ou cultivam plantas destinadas à preparação de substância psicoativa estão sujeitas às mesmas penas. Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. Para garantir o cumprimento das medidas educativas o juiz poderá submeter o agente a admoestação verbal e multa. O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator acompanhamento, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado. Implicações para o sistema de saúde pública A lei 11.343 clama por uma melhor estruturação dos programas e cursos educativos para a atenção adequada aos infratores. Tudo leva a crer que os juizes encontrarão enormes dificuldades para, a curto prazo, criar programas de prestação de serviços à comunidade e programas educativos nos moldes exigidos pela lei. Deste modo, será mais freqüente a transação da pena de advertência, implicando isto na prática de uma política jurídica verdadeiramente despenalizadora. 9 Promoção da abordagem do usuário pelo sistema de saúde pública.
3 A promoção da abordagem do usuário de drogas pelo sistema de saúde pública promete benefícios tanto para o infrator como para a sociedade como um todo. Evidências sugerem que a abordagem exclusivamente pela perspectiva jurídica possui amplas limitações. Diversas pesquisas coincidem na afirmação de uma associação entre transtornos do uso de substâncias psicoativas e criminalidade. Adicionalmente, o ambiente carcerário aparece como fator estimulante da continuidade do uso de drogas, sendo que para cada ano a mais que se passa na prisão a chance de usar cocaína aumenta em 13%. 11 Assim sendo, evidências indicam que o tratamento do usuário de drogas pela via da criminalização institucional só contribui para construir o indivíduo maior infrator. 11 Embora seja a grande maioria das infrações penais sancionadas com pena de prisão (retenção, detenção e prisão simples), uma política criminal orientada no sentido de proteger verdadeiramente a sociedade terá de restringir a pena restritiva de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir ação criminógena cada vez maior no cárcere. 12 Esforços devem estar voltados também para a reinserção dessas pessoas ao convívio da família e de toda sociedade. 10 Esta medida está distante da realidade brasileira, pois existem poucos estabelecimentos de saúde especializados no tratamento de substâncias psicoativas. 10 Para isto, a nova Lei instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), que tem como objetivos prescrever medidas para prevenção do uso indevido de drogas, atenção e reinserção social dos usuários e dependentes, e ainda estabelece normas para repressão à produção ilegal e ao tráfico 10. O grande risco fica sendo o da impossibilidade de real aplicação da legislação, ficando os avanços previstos exclusivamente como um ideal, o que não é incomum em nosso país. 3 Justiça Terapêutica e o acompanhamento do usuário A Justiça Terapêutica foi implantada no Brasil primeiramente no Rio Grande do Sul, surgindo da necessidade de tratar as pessoas que praticam pequenos delitos e ao mesmo tempo são usuários ou dependentes, e fazendo com que os mesmos não precisem mais cometer delitos tanto por causa do seu abuso quanto para comprar a droga. 13,14 O nome Justiça Terapêutica advém do conceito de justiça, que engloba os aspectos do Direito, legais e sociais, e do termo terapêutica, que diz respeito à ciência médica, define tratamento e reabilitação de uma situação patológica. 15 A justiça terapêutica oferece ao sujeito a solução do seu problema legal evitando a prisão, e oferece uma solução para seu problema de saúde disponibilizando atendimento profissional especializado. 14 Essa proposta diminui a reincidência tanto criminal como o uso/abuso de entorpecentes, e conseqüentemente reduz o custo social de se manter um cárcere já que evita o aprisionamento do infrator, estimula também o senso de responsabilidade e almeja a ressocialização. 13,14 Em relação ao tratamento proposto, determinado pela equipe de saúde que avalia o infrator, não ocorre qualquer interferência do Juiz. O que acontece entre o juiz e a equipe de saúde é uma troca de informações com objetivo de analisar os resultados e a possibilidade de manter o infrator sob tratamento. Este tratamento pode ser feito por cursos específicos e palestras sobre o consumo de substâncias psicoativas,
4 através de instituições privadas, ou ainda por grupos de auto-ajuda como os Narcóticos Anônimos e os Alcoólicos Anônimos. No entanto, a rede pública deveria oferecer o tratamento para todos os infratores, porém não tem estrutura e instituições suficientes. 13 Discussão A mudança de paradigma na legislação tratada neste texto demonstra a constatação da inefetividade da abordagem pela lei anteriormente em vigor. O judiciário sempre se voltou para a repressão do uso de substâncias químicas, deixando uma lacuna na questão biopsicossocial do problema. A cominação de pena restritiva de liberdade ao portador de drogas ilícitas contribuía, não para uma diminuição do consumo de drogas, mas para o aumento da criminalidade associada na referida população. A crescente disseminação das drogas e a criminalidade associada já apontavam para a necessidade de uma aliança entre o legislativo e o sistema de saúde pública, na intenção de promover uma abordagem mais adequada do porte de drogas por usuários e dependentes químicos e o bem-estar social. De fato é grande o risco de o sistema de saúde pública não corresponder adequadamente à sua crescente responsabilidade na abordagem do infrator dependente de drogas, considerando-se o contexto atual deste setor no Brasil. Destarte estariam os dependentes e usuários de drogas correndo o risco de uma ainda maior despenalização, na ausência de uma abordagem legal associada a uma postura negligente e imprudente pelo sistema de saúde. Assim, maior poderia ser o risco deste problema atingir proporções ainda mais amplas. Quanto à advertência sobre os efeitos das drogas, devido aos seus diversos efeitos, o ideal seria que um profissional da saúde capacitado fizesse a exposição ao sujeito em questão 10. O usuário ou o dependente sabe, na maioria das vezes, dos males provocados pelas drogas, no entanto dispõe de sua saúde e volição, e faz opções de vida que nem sempre estão de acordo com determinado padrão ético, logo, muitas vezes essas penas não surtirão o efeito desejado. 9 Sabe-se, entretanto, que abordagens meramente informativas tem efeitos limitados sobre a mudança do comportamento do usuário. O conceito amplo de educação, como promovedora de um aperfeiçoamento amplo das condutas humanas, deve ser o direcionador dos programas e cursos previstos na lei. Esta visão deve ser disseminada, englobando abordagens psicoterápicas e farmacoterápicas, potencializando a chance de promoção da abstinência, fator importante para a reinserção dos infratores na sociedade. Conclusão A atual lei antidrogas traz a possibilidade de grande benefício na abordagem tanto daqueles que fazem uso e abuso quanto daqueles que são dependentes de substâncias psicoativas. Continua a definir a posse de drogas para consumo pessoal como crime, assim como mantem as penas, embora suavizadas, enfatizando seu caráter educativo e modificador de conduta em detrimento de uma abordagem punitiva. Para realização destes avanços será necesária uma enorme ampliação dos recursos ofertados pelo sistema de saúde pública. Caso contrário criar-se-á um vazio na abordagem dos dependentes, esquecidos tanto pela legislação, incapaz de efetivar a aplicação daquilo que prevê, como pela saúde pública, carente de estrutura física e de pessoal qualificado para desempenhar sua missão.
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