PERVERSÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA. Uma Psicopatologia Possível? Cindia Da Silva



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Transcrição:

PERVERSÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA Uma Psicopatologia Possível? Cindia Da Silva "Perversão na Primeira Infância Uma Psicopatologia Possível?" é uma produção monográfica que tem como propósito pensar se a perversão, em seu caráter psicopatológico, se restringe a um sujeito constituído ou pode ser encontrada na clínica infantil, mais precisamente em crianças em fases anteriores ao Complexo de Édipo. O percurso pelo qual tal temática é desenvolvida baseia-se em quatro pressupostos teóricos, que configuram o quadro perverso, articulados com uma história clínica infantil, sendo eles: A perversão se distingue da neurose por se manifestar através de ato e não por meio de fantasias. A perversão está colocada em relação com o Complexo de Édipo. A perversão é uma defesa contra a psicose. A recusa é o movimento privilegiado na perversão diante da ameaça de castração. Dentre as reflexões teóricas que o estudo percorre, convém destacar: Transportar os pressupostos citados do contexto de um sujeito constituído para o de um sujeito em constituição; Da criança como ser perverso polimorfo à perversão infantil; Descrição do cenário edípico no qual a perversão infantil emerge; A gênese da perversão infantil deslocada dos finais do Complexo de Édipo para a impossibilidade de adentrá-lo, estando colocada em tempos anteriores ao Édipo. Cindia da Silva 294 95 36 6191 88 47 INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE CURSO DE PSICANÁLISE PERVERSÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA Uma Psicopatologia Possível? Cindia Da Silva Seminário: Perversão Profº Flávio C. Ferraz São Paulo 2001

INTRODUÇÃO No decorrer deste ano com o estudo das perversões foi possível ir configurando teórica e clinicamente o quadro perverso. Porém, ao associá-lo com a clínica infantil, a complexidade, que já não era pouca, se acentua, pois as âncoras que auxiliam no diagnóstico se afrouxam ou precisam de outros acréscimos para se sustentarem. Falo de pressupostos que são comuns a vários estudiosos, tais como: - A perversão se distingue da neurose por se manifestar através de ato e não por meio de fantasias. - A perversão está colocada em relação com o Complexo de Édipo. - A perversão é uma defesa contra a psicose. - A recusa é o movimento privilegiado na perversão diante da ameaça de castração. A dificuldade em pensar tais afirmações na clínica infantil é decorrente de que estas postulações se referem a um sujeito constituído. Então, como pensar a perversão em um sujeito em constituição? O que faz com que certos mecanismos psíquicos percam sua função estruturante e assumam um caráter patológico? Este é o ponto principal que norteará este estudo. Assim, como facilitador à nossa reflexão, creio que uma forma para pensar tal temática seja dialogar também com uma história clínica, além dos constructos teóricos. PERVERSÃO INFANTIL? Daniel é trazido para o contexto analítico por manifestar atuações corporais que põe em risco sua integridade física e emocional em situações de frustração. Dentre estas atuações o que mais se destaca é o bater partes do corpo; bate a cabeça várias vezes no chão; o braço no box do banheiro ou parede; ou ainda arranha as orelhas até extrair sangue. Daniel tem apenas 3 anos. Evidentemente a primeira pergunta que todo analista se faz nesta hora é o que significa para Daniel tal sintomatologia? E porque esta forma de sintoma? Ou ainda, isto pode ser considerado um sintoma? Partindo do pressuposto de ser um sintoma psíquico, já que haviam sido descartadas as possibilidades de um quadro orgânico, por que Daniel precisa expressar suas angústias e conflitos por meio de atos e não através de seu brincar, ou na relação com o outro, ou ainda em sua linguagem? Assim, caímos na primeira afirmação que apresentei sobre a perversão, a de que se diferencia da neurose pela dificuldade de representar de modo fantasioso sua dimensão psicossexual, precisando ser atuada. Freud em uma de suas formulações a respeito da perversão relata a necessidade da atualidade em fatos que esta tem, sendo decorrente da impossibilidade da corrente genital da sexualidade impor-se perante as demais em virtude de uma fixação, ocorrida na infância, que elevaria uma corrente prégenital à condição de eixo organizador da vida sexual. Pensar nesta organização da libido em termos de pré-genitalidade envolve retomar a concepção

freudiana da criança como ser perverso-polimorfo. Aqui as diversas correntes da sexualidade coexistem sem um eixo organizador que as aglutine e subordine em torno de si. Desse modo, o que difere a sexualidade infantil daquela do perverso é o fato de que na criança tudo é apenas potencialidade. Como diz Ferraz: "... Nenhum eixo organizador, tirânico, dominou a cena sexual. No adulto perverso, ao contrário, a sexualidade está definida e cristalizada: um eixo pré-genital preside a vida sexual, tão despoticamente quanto a genitalidade o faz na vida sexual "normal"." Se é a pré-genitalidade que implica o destino perverso, então possivelmente no momento de tais vivências, dependendo da intensidade e dinâmica que forem experienciadas, deve haver distinção do que é potencialidade perverso polimorfa infantil do que já são traços perversos, seja pela intensidade com que se manifestem ou pela forma atípica em sua apresentação. McDOUGALL faz considerações significativas quanto a este campo e menciona: "... A observação clínica nos leva a constatar que a criança destinada a uma solução perversa da sexualidade raramente conheceu na infância a masturbação normal. Esta é sempre manual, e isso desde os primeiros meses de vida. Em certos pacientes, um hiato entre a mão e o sexo parece ter sido instituído bem precocemente; assim, a criança corre o risco de se ver desde cedo levada a inventar outras formas de fazer viver eroticamente o seu corpo. A pesquisa de Spitz com respeito ao que ele chama de "genital play" dos nasciturnos é bastante instrutiva. Quando há uma perturbação na relação precoce com a mãe, o jogo com os orgãos genitais é substituído por balanços do corpo, violentos movimentos de cabeça, ou jogos com os excrementos. Aí se encontra um campo de pesquisa inexplorado que diz respeito às raízes precoces da perversão sexual. Pode-se já falar da masturbação "pervertida" ou "desviada" de seu objetivo normal, que é a busca do prazer genital. Assim, o "desvio" primário que fundamenta a sexualidade humana pode ser dificultado desde seu início em certas crianças que, por isso mesmo, correm o risco de se verem forçadas a inventar uma neo-sexualidade a fim de poderem guardar intactos os limites do corpo, de poderem possuir um corpo erógeno, e finalmente, de poderem proteger esse corpo contra o retorno sádico primitivo em que o auto-erotismo se vê transformado em auto-agressividade. Um dos triunfos da sexualidade perversa seria então a erotização dessa pulsão mortífera." Seria este o caso de Daniel? A auto-agresividade que manifesta pode ser indicativa de uma masturbação pervertida? Estaria enfrentando dificuldades em poder guardar intacto os limites de seu próprio corpo ou ainda de construir um corpo erógeno? O relato da mãe com relação aos cuidados corporais de Daniel são permeados por esquecimentos e ausências ou intensa presença. Menciona que apesar de não poder amamentá-lo, pela ausência de leite, sempre valorizou demais estes momentos, de forma que Daniel se adaptou bem à mamadeira, mas desenvolveu rituais para tomá-las. Quer que suas mamadeiras sejam sempre passadas pela terceira grade do berço, toda fechada, para que ele tenha o trabalho de abri-la e somente depois ingerir seu conteúdo, sem contar, que já determinou previamente que cor tem que ser a mamadeira. Se algo deste ritual for quebrado, eis a cena auto-agressiva presente. Daniel só toma banho se um dos pais tomarem junto, de preferencia a mãe, caso contrário sua higiene pessoal ficará para o dia seguinte ou o contato que terá com o corpo será o de ataque. Seus hábitos de defecação, difíceis de acontecerem pela séria constipação intestinal que possui, é um dos poucos momentos que Daniel quer privacidade, mas é invadida pelos pais ao vê-lo gemer de dor, de modo a assistirem seu

sofrimento bem de perto, justificando que a presença deles é o modo que encontram de demonstrar que ele não está só, que estão juntos neste momento difícil. Apesar de ter um quarto, seu berço fica no quarto dos pais, e até os dois anos e meio aceitava dormir nele, depois disso somente no meio dos pais e atualmente já não há mais espaço para o pai, que constantemente se desloca para um colchão na sala. Desse modo, pensar em como se dá a formação de um corpo erógeno e suas peculiaridades é também pensar em conflitiva edípica. Assim, que panorama de relações intersubjetivas é este que Daniel está inserido e que norteará suas vivências edípicas? Seria de fato um ambiente que pouco possibilita a apropriação corporal? Sem esta apropriação corporal estaria Daniel fadado a lidar com sua sexualidade de forma perversa? Desembocamos então, na segunda afirmação com relação a perversão: que a gênese da perversão está ligada ao Complexo de Édipo. Creio ser desnecessário resgatar as contribuições que fundamentam a relação da perversão com o Complexo de Édipo, pois tanto Freud, em diversos de seus escritos, possibilita tal conclusão (tais como: "Uma criança é espancada", "O problema econômico do masoquismo", "O fetichismo" e outros..) como demais autores que tomam a perversão por estudo, acabam por colocar os hiatos que Freud teria deixado em aberto com relação ao assunto. Considero de maior relevância para este estudo pensar que Complexo de Édipo é esse que o futuro perverso se depara e se debate? Que papel desempenham as figuras parentais e que triangulações são possíveis nesta hora? Se é que há relações triangulares, ou o que há é a proeminência da figura materna? A clínica da perversão apresenta como cenário edípico figuras parentais antagônicas, de um lado, uma mãe adorada, idealizada que se torna cúmplice de seu filho na exclusão paterna a ponto de acabar por favorecer a sexualidade desviante daquele a quem engolfou em seu desejo, e de outro, um pai que é um misto de fraqueza e ausência, submetido à figura materna, pouco podendo oferecer enquanto interditor da relação mãe-filho, quem dirá servir como modelo identificatório de masculinidade. McDOUGALL aponta que este cenário também pode ser encontrado em outras clínicas que não a da perversão e faz outros acréscimos: "Ora, o casal parental a mãe adorada, o pai desprezado não é o apanágio dos que reinventam a sexualidade humana. Essa nova sexualidade e essa nova cena primitiva, que comportam um caráter de verdade para o Eu do indivíduo, não se explicam não só unicamente pelas frustrações diante do Édipo, nem pela necessidade de se protegerem dos investimentos libidinais e narcísicos. Diz-se frequentemente que por trás de toda perversão se escondem desejos bissexuais; mas essas aspirações de se ter os órgãos e os privilégios dos dois sexos existem também nos amorosos heterossexuais e se constituem numa dimensão importante de sua relação. Nos neuróticos, essas aspirações são uma fonte fértil de sintomas. Nos indivíduos "perversos", seria mais certo dizer-se que essa bipolaridade nas identificações sexuais é angustiante e proibida. Eles não puderam identificar-se nem com um nem com o outro sexo. Em seu lugar, há uma identificação factícia, mais próxima de uma caricatura que de uma identidade ( caricatura da feminilidade nos travestis, ou do pai "viril" nas práticas sado-masoquistas etc.). Se há então um "a menos" nesse nível, há também um "a mais" no que as crianças destinadas a uma sexualidade perversa ouviram e compreenderam. Há sempre uma busca de sentido, considerada urgente para cúmulo de discurso lacunar, o discurso parental com respeito ao sexo e ao corpo, os dele e os do sexo oposto, um discurso afinal sobre a sexualidade dos próprios pais."

Como não podia deixar de ser, os pais de Daniel respondem ao perfil dos pais descritos na clínica das perversões. As particularidades neste caso remontam a uma mãe que apesar da paralisia parcial de uma de suas pernas, manifesta em todas demais áreas sua onipresença sobre a figura paterna. Sua posição financeira, que além de ser superior à do marido, possibilita financiar-lhe projetos profissionais que são pouco sucedidos, o colocando como devedor. O imóvel onde moram, além de ser da mãe, já era seu domicílio antes da união com o pai de Daniel e cujas modificações muito pouco ocorreram com sua chegada, o que o faz sentir-se estrangeiro em seu próprio lar, relatando desconhecer o que existe em determinadas partes da casa. Tudo o que diz respeito as atividades de Daniel cabe a mãe selecionar, custear e organizar; como escola, médicos e outros. Quanto a figura paterna sua ausência na presença vai além de sair muito cedo para trabalhar e retornar quando Daniel já está dormindo. Diz respeito a impossibilidade de si colocar como um dos condutores destas vivências, já que relata sempre ocupar o lugar de passageiro enquanto a mãe dirige o carro até o destino do passeio, pois o carro está adaptado a ela, devido a sua deficiência física na perna. Se é inegável que estamos diante da proeminência da figura materna, seria pertinente pensar que é justamente contra isso que Daniel se debate em seus ataques corporais? McDOUGALL ao falar da formação de um corpo erógeno aponta não só para a evolução do autoerotismo, mas também para a relação deste com um Édipo precoce e com a sexualidade materna. Cita que a possibilidade da criança se libertar do corpo materno depende muito da expectativa da mãe em fazer tal concessão. Além disso, complementa de modo claro e ilustrativo, as consequências das dificuldades neste processo, que merecem ser resgatadas: "... certas mães não permitem nenhuma introjeção precoce da imagem delas, não toleram nenhum substituto para elas junto ao filho; são as mães que oferecem seu corpo em lugar de um espaço no qual a criança possa encontrar seus primeiros substitutos auto-eróticos e construir um certo capital narcísico; essa situação corre o risco de criar uma das doenças "psicossomáticas" da primeira infância (Fain, 1974) os nasciturnos insones que não podem dormir a não ser nos braços maternos. Outros, ao impedirem por violências físicas toda e qualquer manifestação do auto-erotismo normal (talvez em razão de uma angústia com respeito ao controle de suas próprias pulsões sexuais), também podem provocar na criança a doença "psicossomática" do merecismo, um tipo de perversão auto-erótica precoce, que pode colocar em risco a vida da criança." E, mais: "... Se a criança, apesar desses cortes entre o corpo e o espírito, entre a mão e o sexo, luta apesar de tudo para se religar a seus órgãos genitais, deve inventar outros movimentos e outras zonas de excitação retenção das urinas, jogos com as matérias fecais, coceira incessante pelo corpo, procura da dor, batidas com a cabeça a fim de tornar vivo o corpo, suas funções e seus limites, na ausência do objeto. Naqueles que se tornam inovadores eróticos, o auto-erotismo infantil normal já existe possivelmente bem antes da crise edipiana. A distância que se instalou entre o indivíduo e o seu sexo dá a medida da mesma distância que existe entre a representação narcísica de si mesmo e a representação de sua identidade sexual. Num certo sentido, poderíamos dizer que a busca erógena e auto-erótica dessas jovens crianças visa a convencê-las de que estão vivas, e capazes de existirem separadas do Outro...."

O caso de Daniel pode ser uma ilustração desta forma de aprisionamento materno? Mesmo que isto se sustente, avalio que a figura paterna joga este mesmo jogo, não só por aceitar passivamente o lugar de terceiro excluído, mas também contribuindo de maneira silenciosa para que tal cenário pouco se altere. Afinal, sair do lugar de testemunha deste amor secreto entre mãe e filho implica em se haver com a sua própria sexualidade, e principalmente com uma pseudo heterossexualidade. As fantasias dos pais de Daniel, quanto as possíveis causas de suas crises, retratam suas posições neste cenário triangular, e as singularidades pertinentes a história de cada um. A mãe teme que as brincadeiras entre Daniel e o pai de modo que trocam de papéis, em que Daniel fica no lugar do pai, fazem com que ele acredite que não é só uma brincadeira, o levando a determinar regras e impondo suas vontades em outros momentos, e por consequência não aceitando mais o lugar de filho, o qual lhe cabe. Já o pai, ciente da falta de dados de realidade que possam alicerçar sua hipótese com relação ao que desencadeou as crises de seu filho, relata que teme que Daniel tenha sido molestado sexualmente, seja pela empregada ou pelo primo adolescente que também reside com eles. Assim, adentramos na sexualidade deste casal, que pouco podem vivenciá-la, como eles próprios mencionam, já que Daniel está sempre no meio deles. Lugar este que foi destinado a Daniel antes mesmo de sua concepção: "Queríamos um bebê para dormir no meio da gente" (sic) Possivelmente tais relações, remontam a história de união deste casal. Decidiram relacionar-se e morar junto decorrente do acordo que fizeram na primeira vez que se encontram (encontro este que ocorreu numa praia deserta em que cada um havia viajado só e com o propósito de ficar só). O acordo é o de priorizarem sempre a individualidade de cada um, cada qual continuará com sua forma de ser e agir apesar de viverem juntos. Na medida que este pai e esta mãe pouco se apresentam como casal, como um par, como poderá haver espaço para um terceiro? As relações nesta família estão fadadas a serem sempre relações duais? Conseguirá Daniel sair da relação dual narcísica mãe-bebê e adentrar na conflitiva edípica, que implica uma triangulação? Seu processo de sexuação obterá como resultado uma discriminação sexual e o erigir de uma identidade ou culminará na falência egóica dos psicóticos? Afinal, em que contexto estamos? Da perversão ou da psicose? Estaria olhando o caso de Daniel por lentes invertidas? Em uma de suas crises, (desencadeada por desejar um balão colorido em uma festa de aniversário que a princípio lhe foi negado por não ser o momento de recebê-lo, mas que, com o intermédio da mãe conseguiu o balão, porém era um balão cor-de-rosa o qual rejeitou e requisitou um balão azul e diante do não batia a cabeça ao chão violentamente) Daniel foi levado a um hospital infantil onde recebeu o diagnóstico de psicose e sendo orientado a buscar análise infantil. Creio que chegamos no momento de pensar a relação entre a perversão e a psicose. McDOGALL utilizando-se do termo de Phyllis Greenacre fala em psicose focal, referindo-se ao polo psicotizante da sexualidade perversa, sendo isto possível a partir do conceito de divisão do Eu. Além disso, aponta que a sexualidade perversa é o "positivo" da neurose e o "negativo" da psicose, e a distingue dos sintomas neuróticos e psicóticos pelo agir claramente erotizado que esta manifesta, em lugar de elaboração psíquica. Assim, menciona que a criação de uma perversão sexual representa uma

tentativa de autocura de conflitos internos. E explicita essas delimitações da seguinte maneira: "Esquematicamente, poderíamos dizer que a neurose testemunha uma defesa frustrada contra as pulsões libidinais e que a psicose testemunha uma defesa frustrada contra as pulsões sádicas. Uma luta pela sexualidade, a outra pela vida. Se a primeira se distingue por uma tentativa de composição com a angustia de castração, a segunda é dominada pelo medo de que o Eu exploda, com riscos de passagens ao ato violentas ou de impulsões suicidas. A construção de uma perversão representa um esforço para fazer face aos perigos dos dois lados e sempre por meio do ato. A angustia de castração, bem como as angustias de despedaçamento e de morte devem se tornar lúdicas, como um desafio aos dois; e esse jogo deve ser erotizado. Para provar que tudo o que suscita a angústia de castração é inoperante, há uma exigência de gozo; para provar que tudo o que suscita a violência sádica não é perigoso, há uma exigência de reparação. É o mesmo que dizer que o ato deve manter essas ilusões fundamentais. "As implicações econômicas podem assim se resumir: aquela que conseguiu criar uma neorealidade sexual e colocá-la em ato, encontrou uma maneira contornada de resolver a problemática edipiana evitando a elaboração da angústia de castração, e encontrou ao mesmo tempo uma maneira contornada de resolver a problemática da alteridade e da megalomania infantil evitando a elaboração da posição depressiva." Diante da evidência de que a perversão é uma defesa contra a psicose, em que o ato se apresenta como eixo organizador, possibilitando que a angústia de despedaçamento e de castração seja evitada, estamos diante da recusa como mecanismo predominante e organizador do psiquismo, porém em uma configuração psicopatológica. Sabemos que este mecanismo defensivo (recusa) está presente no ser humano desde tenra infância, e possui um aspecto edificante, porém é possível pensá-lo nesta proporção patológica num sujeito ainda em constituição? Poderíamos então falar em perversão infantil? Silvia Bleichmar, ao repensar o originário e o infantil em Freud, em sua obra A Fundação do Inconsciente, faz considerações importantes que podem melhor subsidiar a idéia de perversão infantil. Ela lança mão em determinado momento ao modelo da sexualidade pulsional para questionar a ausência de perversões na infância. Relata que o "polimorfismo perverso infantil" que é considerado como o protótipo da sexualidade pulsional infantil, não só por sua origem se dar nos primeiros tempos de vida, mas porque seu destino será alterado na medida em que se produza a evolução psicossexual da criança. Assim, os destinos da pulsão não são, em verdade, apenas destinos das pulsões como tais, mas sim de suas derivações na medida em que se constitui a tópica psíquica. Designa então, quatro movimentos como destinos sequenciais, e que dependem tanto dos movimentos presididos pelo recalcamento como da organização que a libido encontra a partir de sua instalação, sendo eles: volta contra a própria pessoa, transformação no contrário, recalcamento e sublimação. Desse modo, aponta como sendo o processo de estruturação da tópica que define os destinos pulsionais, já que a pulsão só vai em busca da descarga. Os obstáculos que se antepõem à essa descarga é que levarão a movimentos de complexização defensiva que desembocam nos processos fundantes da tópica psíquica. Apesar de extensivo creio ser de suma importância adentrarmos um pouco mais sobre esta relação entre a posição tópica do prazer pulsional com a clivagem do aparelho psíquico que Bleichmar propõe, para que, de fato, fique fundamentado seu posicionamento quanto a perversão infantil. Ela relê Freud de forma ilustradora deste seu pensar:

"Rapidamente se homologa, a partir da "disposição perversa polimorfa", infância com polimorfismo perverso. No entanto, pode ser estabelecida uma diferença a esse respeito. Freud enuncia-a da seguinte maneira em Três ensaios da teoria sexual: "Foi possível, então, afirmar que a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão. Em vista do que se viu agora ser a grande disseminação de tendências à perversão, fomos levados à conclusão de que a disposição para as perversões é uma disposição original e universal da pulsão sexual humana [...] esperávamos poder mostrar a presença desta disposição original na infância. Entre as forças que restringem a direção tomada pela pulsão sexual demos ênfase à vergonha, à repugnância, à piedade e as estruturas da normalidade e da autoridade construídas pela sociedade". Sublinhamos "disposição", já que com diferença de poucas páginas Freud afirma: "... sob a influência da sedução [ efetiva, não generalizada, mesmo que a sedução generalizada possa em certos casos tomar um caráter perverso no sentido psicopatológico do termo] as crianças podem tornar-se perversas polimorfas, e podem ser levadas a todas as espécies possíveis de irregularidades sexuais. Isto demonstra que uma aptidão para elas existe inata na disposição das crianças [ou seja, a partir do fato de que nos objetos sexualizantes originários isto esteja à disposição]". Esta disposição originária a leva a diferenciar o exercício do prazer pulsional nos momentos de constituição do sujeito, antes da instauração do recalcamento originário, e a perversão como destino já não da pulsão e sim do próprio sujeito, quando as condições de sua criação, que o submetem ao adulto, o levam nessa direção: "Homologar o infantil ao perverso é perder de vista que a perversão é uma categoria psicopatológica que implica em uma falha na estruturação do recalcamento, no sepultamento do auto-erotismo, não uma etapa de constituição psicossexual da infância." E conclui afirmando que o infantil, enquanto inseparável do pulsional, alude a um modo de inscrição e de funcionamento do sexual, e por conta disso, o infantil é inseparável dos tempos de constituição do inconsciente, e seu estatuto está determinado pela ligação, nos primeiríssimos tempos de vida, de uma sexualidade destinada ao recalcamento, ou seja, destinada a seu sepultamento no inconsciente. Desse modo, estamos diante da constatação de que podemos pensar em perversão infantil como entidade psicopatológica, porém abandonando a concepção de que sua gênese esteja relacionada a falha do recalcamento nos tempos finais do Complexo de Édipo, e sim que, se há algum cenário edípico, este é de exclusiva propriedade das figuras parentais, ficando o sujeito impossibilitado de adentrar em tal conflitiva. Por este prisma, Stoller talvez devesse ter sido o autor privilegiado neste estudo, já que, fundamenta a perversão por essa via, como descreve Ferraz no breve historial que faz da obra do autor: "... para Stoller, a perversão é o resultado de uma determinada dinâmica familiar que, induzindo medo, força a criança a evitar o enfrentamento da situação edípica, na qual, todavia, ela já se encontra imersa. O desfecho do conflito edípico não seria, portanto, a dissolução do mesmo pela via do recalcamento, mas sim a sua evitação, o que adiaria ad infinitum seu desfecho, mantendo-o suspenso...." Assim, voltando a Daniel, se pensarmos que as amarras materna, fazem acreditar ser ele detentor do desejo materno, continuarem direcionadas neste mesmo sentido, pouco haverá espaço para desfazer sua ilusão e poder dar outro rumo as suas pulsões sexuais. Portanto, a perversão se já não o é, creio que, invariavelmente virá a ser o seu destino.

IMPASSE ANALÍTICO Talvez questionem vocês que a análise infantil possa ter um papel importante neste tipo de clínica, já que, como frisei várias vezes, estamos diante de um psiquismo em formação, porém particularmente no caso de Daniel, temo que isso seja insuficiente. Refiro-me ao impasse que nos encontramos em seu processo analítico. Após alguns meses em que Daniel aceita o trabalho de análise - pois inicialmente negava-se de maneira imperiosa - a orientação de pais, que era até então a única via de acesso, passa a ocupar um segundo plano neste processo, o que culmina numa invasão materna. Diante do desejo da mãe de ocupar este espaço analítico, novamente irrompe a resistência de Daniel e só então este desejo se torna explicito. Então, que destino dar a essa análise? Sucumbir ao desejo materno e tornar-se sua analista, vislumbrando ser esse o caminho para a melhora de Daniel, mas ciente de que isto implica não só em pactuar com a invasão em sua análise, mas também em continuar colocando-o como um apêndice desta mãe? Ou interromper o processo - já que a mãe se nega tanto a levá-lo contrariado às sessões como em procurar outra analista para ela - na tentativa de demarcar uma separação/castração, mesmo sabendo que isto não será suficiente para mudanças significativas? O caminhar desta história, por enquanto, termina aqui e faço votos que tanto Daniel como seus pais encontrem um bom destino para dar à ela, de preferência um que vá de encontro com a citação de Roberto Shinyashiki em seu livro Pais e Filhos Companheiros de Viagem: "Você é filho de sua mãe Mas não é ela Você é filho de seu pai Mas não é ele Você é continuação da criança que um dia foi Mas não é ela Você é pai/mãe de seu filho Mas não é ele Deixe o passado no seu lugar E encontre um jeito de ser você" REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEICHMAR, S, A Fundação do Inconsciente, Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. FREUD, S, Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, 1905, Obras Completas. FERRAZ, F.C. Perversão, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000. McDOUGALL, J, Teatros do Eu, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992. SHINYASHIKI, R, Companheiros de Viagem, São Paulo, Ed. Gente,1992