João Luís Cardoso. Fig. 13 Ossário 1: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso.



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Transcrição:

Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus João Luís Cardoso Fig. 13 Ossário 1: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. Fig. 14 Ossário 2: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284 271

João Luís Cardoso Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus Fig. 15 Ossário 2a: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. Fig. 16 Ossário 44: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. 272 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284

Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus João Luís Cardoso Fig. 17 Ossário 33a: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. Fig. 18 Ossário 33: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284 273

João Luís Cardoso Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus Fig. 19 Ossário 22a: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. Fig. 20 Ossário 22: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. 274 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284

Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus João Luís Cardoso Fig. 21 Ossário 11: localização na área escavada e respectivo registo gráfico e fotográfico. Foto de J. L. Cardoso. 3.2. Estruturas Removido o piso cimentado que constituía o chão da ala sul do claustro, a limpeza do terreno permitiu evidenciar alinhamentos de blocos de calcário, heterométricos e irregulares, afastados entre si de 0,50 a 0,70 m, perpendiculares à parede do claustro, já atrás referidos (Fig. 12). A finalidade destes alinhamentos, de início pouco clara, parece ter sido a de garantir o apoio às traves de madeira onde assentavam as tábuas corridas de um soalho ali instalado, relacionável com reconstrução desta ala do claustro, na segunda metade do século XVIII, com sucessivos arranjos ao longo de todo o século XIX, em resultado das adaptações funcionais verificadas no espaço correspondente, até à sua substituição, no século XX, pelo chão de cimento conservado até agora. Com efeito, podem ser atribuídos a consertos do soalho em finais do século XIX, ou mesmo à sua remodelação, os achados arqueológicos mais modernos: fragmentos de azulejos de finais do século XIX de tipo neo-hispano-árabe, da Fábrica Rafael Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, e uma moeda do reinado de D. Luís. Alguns materiais de carácter laboratorial, mais antigos, são conotáveis com a actividade do Institutoo Maynense, ali instalado por iniciativa de Frei José de Jesus Mayne, na segunda metade do século XVIII e depois mantido pela Academia das Ciências de Lisboa, ao longo de boa parte do século XIX. A segunda estrutura identificada (que se estendia, sob a anterior, por toda a área escavada) corresponde aos já também mencionados septos de alvenaria ortogonais, definindo alvéolos rectangulares, destinados a sepulturas, com o comprimento interno aproximado de 1,80 m por 0,70 m de largura. Trata-se de construção robusta e cuidada. Os respectivos muros têm espessuras constantes, cerca de 0,30 m em média (embora o muro longitudinal seja mais espesso que os transversais), e superfícies internas cuidadosamente alisadas, rebocadas de argamassa fina de cal e areia. REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284 275

João Luís Cardoso Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus São estruturas de épocas claramente distintas. Como se referiu, a primeira pode relacionar-se com a reutilização do claustro conventual como espaço de ensino (Instituto Maynense), no final do século XVIII e em boa parte do século XIX, enquanto a segunda remonta à construção do próprio claustro e ascender à primeira metade do século XVII. Data desta época a mais antiga moeda encontrada, do reinado de D. João IV. Aliás, a estrutura e dimensões do espaço, compartimentado por septos ortogonais, condicionou a própria disposição das lajes tumulares numeradas e respectivas esquadrias envolventes, conservadas nas alas norte e poente. 4. Aspectos tafonómicos; considerações sumárias sobre o espólio antropológico e arqueológico No que respeita ao espólio recolhido na Camada 1, sobressai o material humano, que, em sintonia com o modo anárquico como se distribuída no interior da referida camada, se revelou muito heterogéneo quanto a nível etário, sexo e raça, pois alguns restos apontam para alguma das escravas negras de que há notícia (informação de M. Telles Antunes decorrente do estudo antropológico em curso). As marcas de estalamento das caixas cranianas, acompanhadas pela sua deformação e modificação das paredes ósseas, com alteração da cor, dada a existência de manchas acastanhadas, são com- Fig. 22 Conjunto de pequenos artefactos e ecofactos recolhidos nas crivagens sistemáticas das terras, correspondentes à Camada 1 (conchas, ossos diversos, restos de peixes, faianças portuguesas, e fragmentos de cachimbos) e à Camada 2 (contas de rosários, de osso, vidro, cornalina, elementos de cruzes amovíveis e alfinetes). Foto de J. L. Cardoso. 276 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284

Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus João Luís Cardoso Fig. 23 Fragmentos de cachimbos de caulino e de barro recolhidos na Camada 1. Em cima: exemplar holandês seiscentista, com estampilha de flor-de-lis sobre a haste; ao centro: exemplar inglês, produção de Bristol, com arranque do fornilho e a marca IP no pedúnculo, de finais de seiscentos a meados de setecentos e exemplar inglês, com haste decorada e idêntica cronologia; em baixo, exemplar de fabrico possivelmente da região de Lisboa, conservando a boquilha (classificações do Mestre João Pimenta, a quem se agradece). Foto de J. L. Cardoso. Fig. 24 Conjunto de fragmentos de madeira carbonizada, resultantes dos incêndios recolhidos na Camada 1. Foto de J. L. Cardoso. REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284 277

João Luís Cardoso Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus Fig. 25 Crânio com marcas de fogo e estalamentos térmicos. Foto de J. L. Cardoso. patíveis com o calor, em resultado dos incêndios que sobrevieram ao mega-sismo (Fig. 25). Tais incêndios, materializados na área escavada pela recolha de abundantes restos de madeiras carbonizadas (Fig. 24), foram acompanhados pela queda de blocos e de traves dos edifícios, que estariam na origem das referidas manchas acastanhadas, em consequência de hemorragias exo- ou endocranianas. A queda de pedras do alto dos edifícios vitimou também muita gente. Um crânio de criança conservou um estilhaço de calcário aguçado, que atravessou o osso frontal, sendo causa suficiente de morte (informação do Prof. M. Telles Antunes). Desta forma, é lícito associar a realidade objectivamente observada, à catástrofe sísmica de 1755, com os incêndios sobrevenientes, que afectaram restos mortais expostos ao calor das chamas, como os que agora se identificaram (Antunes & Cardoso, 2005). Aliás, a realidade descrita é compatível com o próprio modo de formação da referida camada, onde os restos humanos se distribuem de forma generalizada, de mistura com materiais arqueológicos com cronologias compatíveis com a época do cataclismo; há marcas indubitáveis de predação. Foi possível obter in situ peças esqueléticas de coleópteros necrófagos, reforçando a interpretação supra, por corresponderem a organismos que se desenvolvem em corpos expostos, em processo de putrefacção. Associados, recolheram-se inúmeros restos de animais consumidos que documentam, tal como os fragmentos de materiais de construção encontrados, incluindo abundantes restos de azulejos do período joanino, a rapidez com que se formou o depósito, à custa de entulhos removidos das zonas mais afectadas da cidade, inadvertidamente misturados com os restos humanos a que se pretendia dar sepultura. Com efeito, tudo indica inumações expeditas, efectuadas num espaço de tempo em geral curto, de vítimas de acções traumáticas, incluindo fogo, retiradas dos escombros acumulados em diversos locais da cidade. Não se trata de enterramentos primários: os 278 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284

Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus João Luís Cardoso cadáveres estariam esqueletizados quando os restos ósseos foram deslocados, o que explica o estado de dissociação observado. Em suma: o modo e o tempo de formação do depósito, a par das evidências observadas nos restos humanos, com uma distribuição etária que corresponde em geral à de indivíduos em pleno vigor físico (informação de M. Telles Antunes) leva a atribuir o conjunto da C.1 a vítimas do terramoto de 1755. Os restos foram trazidos até ao local onde foram depositados, constituindo camada contínua, nalguns casos formando verdadeiro ossuário, após perda da quase totalidade das partes moles, em consequência de decomposição e predação, esta última devida à acção de carnívoros diversos, com destaque para os cães vadios, a par de ratazanas (também se identificou a presença do gato doméstico). A importante contribuição doméstica na formação deste depósito encontra-se expressa, além dos materiais arqueológicos adiante sumariamente descritos, pela existência de restos alimentares, consubstanciados em ossos de mamíferos, restos de peixes, de crustáceos e de moluscos marinhos comestíveis, como o burrié, o mexilhão e o berbigão, entre outros (Fig. 22). No que concerne às patologias observadas numa análise preliminar dos restos ósseos, avulta o elevado número das patologias dentárias. É grande a incidência de degradação e de perdas dentárias em vida, com remodelação óssea. É, naturalmente, desconhecida a identidade das vítimas cujos restos foram recolhidos. Tratar- -se-ia de mortos que não foram reclamados pelos familiares, também falecidos ou desaparecidos na catástrofe ou que, por terem estado demasiado tempo enterrados nos escombros se tornaram irreconhecíveis? Não é possível dar resposta a esta pergunta, apesar de se saber terem perecido no conjunto edificado do Convento de Jesus vinte e uma pessoas, sendo dois homens e dezanove mulheres (Sousa, 1928); conhece- -se, também, o nome de algumas das vítimas da Freguesia das Mercês, a que pertence o Convento de Jesus, bem como o seu estatuto social, tendo sido sepultadas no referido Convento (Sousa, 1928). Esta realidade é, contudo, claramente insuficiente para justificar os milhares de restos recolhidos, correspondentes a várias centenas de indivíduos: considerando que a área não escavada, mas onde se sabe existirem restos análogos, é cerca de três vezes superior àquela que foi investigada, pode concluir-se que o número de indivíduos estimado ascenderá entre um e dois milhares. Tal significa que o espaço conventual dos frades franciscanos, semidestruído pelo desmoronamento ocorrido no mês de Janeiro de 1756, terá sido utilizado como necrópole colectiva de muitos dos mortos recolhidos em diversos pontos da cidade, o que explica as características do depósito, particularmente a sua heterogeneidade, incluindo a mistura Fig. 26 Conjunto de fragmentos de faianças portuguesas da 2ª. metade do século XVII/1ª. metade do século XVIII provenientes da Camada 1. Foto de J. L. Cardoso. REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284 279

João Luís Cardoso Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus com materiais arqueológicos díspares: Cuidar dos vivos, enterrar os mortos, a célebre ordem do Marquês de Pombal, aplica-se bem à realidade observada. Ao contrário, a Camada 2 corresponde à parte inferior dos alvéolos funerários onde se procedeu à tumulação normal de cadáveres em posição de decúbito dorsal, como atrás se referiu. Ao nível dos espólios arqueológicos exumados, o contraste entre os materiais recolhidos na Camada 1 e na Camada 2 é igualmente notório. Com efeito, larga maioria dos objectos provenientes da Camada 1 corresponde a materiais de construção, com destaque para fragmentos de tijolos, de tijoleiras e de telhas de canudo, conjuntamente com azulejos figurativos azuis e brancos, da primeira metade do século XVIII (informação do antiquário Senhor Manuel Leitão, que se agradece), a par de escasso azulejos mais antigos, de coloração azul, destinados a forrar paredes com conhecida técnica do enxaquetado, atribuíveis aos finais do século XVI, 1.ª metade do século XVII. Os materiais de uso doméstico encontram-se representados por abundantes fragmentos de faianças portuguesas compatíveis com a referida cronologia, do século XVII/ 1.ª metade do século XVIII, decorados com motivos bem conhecidos da época, aplicados a pratos e a outros recipientes de uso comum: trata-se dos padrões a azul cobalto e manganês, designados por pérolas, faixa barroca e aranhões (Fig. 26). Recolheram-se, nesta camada, outros objectos que merecem desde já ser destacados: moedas, classificadas por M. Telles Antunes, de D. João V (dois exemplares de vintém de prata, sem data, cuja cunhagem se iniciou em tempo e D. Pedro II e continuada depois; e dois exemplares de 5 réis, de cobre); fragmentos de cachimbos ingleses e holandeses, de caulino e barro (sendo, neste material, um exemplar de imitação provavelmente portuguesa), classificados por João Pimenta. De entre os classificáveis, destaca-se exemplar holandês seiscentista, com estampilha de flor-de-lis sobre a haste; e um exemplar inglês, produção de Bristol, com arranque do fornilho e a marca IP no pedúnculo, de finais de seiscentos a meados de setecentos; e, por último, um exemplar inglês, com haste decorada e idêntica cronologia (Fig. 23). Outros restos documentam actividades artesanais: é o caso de diversas placas de osso, perfuradas circularmente, para a extracção de rodelas aproveitadas para o fabrico de botões, de que se conservam alguns exemplares. Na parte mais superficial deste depósito, encontraram-se materiais mais modernos, de que se destacam os seguintes: fragmentos de objectos de laboratório provavelmente utilizados nas aulas de Química dos finais do século XVIII ou já do século XIX, que ali se professavam, no âmbito do funcionamento do Instituto Maynense; duas balas de mosquete, de chumbo, cuja cronologia é compatível com tal época, uma delas com marcas de impacto (balas idênticas produziram-se desde o século XVIII, segundo informação do senhor R. Daehnhardt, para mosquetes e pistolas), talvez relacionadas com os combates de 1838 ali mesmo ocorridos; diversos numismas, classificados por M. Telles Antunes: de D. Maria e Pedro III (5 réis de cobre, de 1778); e de D. João, Príncipe Regente (5 réis de cobre, de 1813); enfim, devem mencionar-se fragmentos de azulejos neo-hispano-árabes, da Fábrica de Rafael Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, dos finais do século XIX, compatíveis com a data de uma moeda de 5 réis de D. Luís (1882), que testemunham as derradeiras obras efectuadas no claustro, cerca de 1885, para a ampliação da Biblioteca do Curso Superior de Letras, que se sabe ter sido ali instalada. Ao invés, os materiais provenientes da Camada 2 relacionam-se directa e exclusivamente com os indivíduos sepultados ao longo do século XVII e até à catástrofe sísmica. Como já atrás se disse, recolheram-se solas de sapatos ou de sandálias (Fig. 27), que calçavam os inumados; contas de rosário e cruzes amovíveis, de osso torneado (Fig. 22), de pasta vítrea, cerâmica, âmbar e cornalina, a par de 280 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284

Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus João Luís Cardoso Fig. 27 Sola de sapato ou de sandália, correspondente a inumação da necrópole conventual, correspondente à Camada 2. Foto de J. L. Cardoso. Fig. 28 Cruz de madeira com embutidos e porção do correspondente rosário, proveniente de inumação da necrópole conventual, correspondente à Camada 2. Foto de J. L. Cardoso. Fig. 29 Conjunto de medalhas religiosas ( verónicas ), provenientes das inumações efectuadas na necrópole conventual, correspondente à Camada 2. Foto de J. L.Cardoso. REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284 281

João Luís Cardoso Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus uma cruz de madeira com embutidos de madrepérola, associada a contas rosário, igualmente de madeira (Fig. 28); inúmeras medalhas religiosas ( verónicas ) dos séculos XVII e XVIII) (Fig. 29); colchetes, relacionados com vestes talares; fivelas metálicas, de cintos e, eventualmente, de sapato; enfim, inúmeros alfinetes relacionados com o amortalhamento dos cadáveres (Fig. 30), bem como taxas e pregaria que revestiria o interior dos ataúdes de madeira, que completam o conjunto dos achados mais notáveis ou abundantes. Uma moeda de D. João IV (meio real de cobre), é, atendendo à cronologia, compatível com o nível inferior de tumulações, seguido o uso pagão de fazer acompanhar o morto com uma moeda, para pagamento da barca de Caronte. Fig. 30 Alfinetes destinados ao amortalhamento dos cadáveres, relacionados com as inumações da necrópole conventual correspondente à Camada 2. Foto de J. L. Cardoso. 5. Conclusão A intervenção arqueológica efectuada no claustro do antigo Convento de Jesus, sede provincial da Ordem Terceira de S. Francisco, actual edifício onde se encontra instalada a Academia das Ciências de Lisboa, teve início em uma acção preventiva, destinada a registar e recolher, nas melhores condições, os testemunhos que, ocasionalmente, se vieram a evidenciar no decurso das obras de beneficiação, com substituição dos pavimentos nas alas sul e oriental do claustro do conjunto edificado, a cargo da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Ao longo dos quase seis meses que durou a intervenção de campo, foi possível identificar uma parte da necrópole conventual, instalada nas quatro alas do claustro, cujo centro é ocupado por notável cisterna, concluída em 1725. Na parte explorada, verificou-se a existência de uma estrutura septada de alvenaria argamassada, formada por paredes de alvenaria ortogonais, as quais definiam alvéolos de planta quadrangular, onde sucessivos corpos foram inumados, em decúbito dorsal, por vezes com os braços flectidos e cruzados sobre o peito, acompanhados de rosários e de medalhas religiosas ( verónicas ). Trata-se de inumações de frades pertencentes ao próprio Convento, bem como de habitantes das vizinhanças do edifício conventual, e ali tumulados, como era norma na época. A duração desta necrópole deve situar-se ao longo de todo o século XVII e até ao ano do terramoto. Contudo, foi a parte superior da sequência estratigráfica, correspondente à deposição de uma camada ossífera sobre as sepulturas conventuais justamente aquela que motivou o início dos trabalhos efectuados que forneceu elementos de maior interesse. Com efeito, trata-se de depósito pouco consolidado, contendo, em desordem, milhares de restos humanos, ainda que se observe a organização, em alguns sítios, das peças por critérios anatómicos, de mistura com materiais de construção muito fragmentados (tijolos, tijoleiras, azulejos), restos de alimentação 282 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284

Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus João Luís Cardoso (mamíferos e conchas) e artefactos de uso comum, com destaque para as faianças portuguesas do século XVII/1.ª metade do século XVIII, moedas e restos de cachimbos ingleses, holandeses e portugueses, da mesma época. Os crânios ostentam frequentes deformações e estalamentos, atribuídos à acção do calor, bem como frequentes alterações de cor, resultantes de hemorragias endoe exo-encefálicas. Um deles, de criança, conserva ainda um estilhaço de calcário cravado no frontal, suficiente para lhe ter provocado a morte, certamente caído da frontaria de um edifício derruído. Tais testemunhos, a par da natureza e características do depósito onde se encontram embalados, correspondem certamente a testemunho o primeiro que se publica de forma tão evidente e completa do terramoto de 1 de Novembro de 1755, a que sobreveio a derrocada de edifícios e a multiplicação de incêndios, durante vários dias. Em consequência da tragédia, os restos mortais dos milhares de vítimas, foram removidos nos dias, meses e até anos seguintes, para diversos espaços sagrados da cidade, como era o caso do claustro deste edifício conventual, de mistura alguns entulhos das derrocadas. Aqui, foram espalhados, ao longo das alas sul e nascente do referido recinto, certamente aquelas que mais sofreram com o abalo; com efeito, são as únicas onde se não conservaram as lajes que, originalmente, forravam o respectivo piso, cobrindo as sepulturas conventuais. A contabilização dos restos potencialmente ainda conservados nas áreas não escavadas, faz crer estar-se perante efectivos entre um e dois mil indivíduos. Na parte mais superficial do referido depósito, encontraram-se restos dos finais do século XVIII, inícios do século XIX. Data dessa época a colocação de um soalho de tábua corrida, ao longo da ala sul do claustro, apoiado em traves transversais cuja posição se encontra denunciada pelos alinhamentos de blocos de calcário subjacentes, ainda conservados. Trata-se de um nova modalidade de utilização do espaço, denunciada pela recolha de fragmentos de materiais de laboratório de química, talvez testemunho da instalação do Instituto Maynense, no final do século XVIII, compatível com o achado de numismas da mesma época e da primeira metade do século seguinte. Por fim, certos materiais, do último quartel do século XIX, constituem indício de nova remodelação, destinada à ampliação da biblioteca do Curso Superior de Letras; duas balas de chumbo, uma delas com marcas de impacto nítidas, poderão testemunhar a acção de 1838, que opôs o exército aos revolucionários arsenalistas. Estes testemunhos constituem, pois, um acervo importante de documentação sobre a história de Lisboa, iniciando-se na época do convento e terminando apenas nos alvores do século XX, perpassando alguns dos acontecimentos mais notáveis da vida da capital, com natural destaque para os testemunhos antropológicos e arqueológicos que sem dúvida constituem uma das mais relevantes provas materiais da catástrofe de 1 de Novembro de 1755. Os numerosos estudos de carácter pluridisciplinar em curso contribuirão certamente para produzir novos conhecimentos até agora insuspeitos sobre aquele acontecimento, com base nos restos recuperados na escavação arqueológica realizada. Enfim, o interesse patrimonial e científico dos testemunhos evidenciados não foi descurado: o acesso visual do sector com maior interesse da área escavada foi mantido, substituindo-se, para o efeito, o pavimento de lajes aparelhadas de calcário, previsto no projecto inicial, por uma estrutura de ferro na qual se apoiou um conjunto de painéis de vidro resistente, conservando-se, como testemunho, uma coluna estratigráfica com a sequência identificada. Deste modo, o edifício passará a conter mais um elemento importante para o conhecimento da sua história, que o mesmo é dizer, da história da cidade de Lisboa. REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284 283

João Luís Cardoso Resultados das escavações arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de Jesus NOTAS * Este trabalho corresponde, com pequenas alterações, ao relatório apresentado pelo signatário ao ex-instituto Português de Arqueologia (Cardoso, 2006) e à comunicação apresentada ao colóquio realizado na Academia das Ciências de Lisboa sobre o terramoto de 1755, no dia 26 de Fevereiro de 2007. ** Académico de Número da Academia Portuguesa da História Professor Catedrático da Universidade Aberta arqueolo@univ-ab.pt BIBLIOGRAFIA ANTUNES, M: T.; CARDOSO, J. L. (2005) - Testemunhos do terramoto de 1755: novos elementos obtidos em escavações na Academia das Ciências de Lisboa (notícia preliminar). Olisipo. Lisboa. Série III. 22-23, pp. 73-82. CARDOSO, J. L. (2006) - Relatório dos trabalhos arqueológicos realizados no claustro do antigo Convento de Jesus, em Lisboa, entre Junho de 2004 e Dezembro de 2004. Relatório não publicado apresentado ao Instituto Português de Arqueologia. Lisboa. SOUSA, F. L. P. de (1928) - O terramoto do 1.º de Novembro de 1755 em Portugal e um estudo demográfico. Vol. III: distrito de Lisboa. Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal. 284 REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 11. número 1. 2008, pp. 259-284