UMA PIZZA CHAMADA DESEJO. por. Rodrigo Ferrari. Versão final 02/09/2011



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Transcrição:

UMA PIZZA CHAMADA DESEJO por Rodrigo Ferrari Versão final 02/09/2011 rodrigoferrari@gmail.com (21)9697.0419

Iluminados, no fundo do palco, BLANCHE e o. O Médico veste um jaleco branco, estetoscópio, óculos e chapéu. Blanche, lânguida, está com um vestido simples de alças finas. É a cena final de Um Bonde Chamado Desejo. O Médico está agachado, segurando Blanche. Ela volta o rosto para o Médico e o fita com uma súplica desesperada. Ele sorri. (tirando o chapéu) Senhorita Dubois- Ele a levanta gentilmente, amparando-a com seu braço. BLANCHE (agarrando-se a seu braço) Seja o senhor quem for. Eu sempre dependi da bondade de desconhecidos. A luz se apaga deixando os dois no breu. O entra, num plano à frente. Ele carrega uma pequena estatueta dourada. Agora apenas ele está visível no lado direito do palco. Ele aplaude (ou tenta aplaudir, já que numa das mãos está a estatueta). (para a plateia) Que cena! Uma interpretação primorosa da nossa sempre diva: Clara Meirelles! O Apresentador estica o braço e faz um gesto com a mão. É a deixa para entrar. Clara é a atriz que interpreta Blanche. O Apresentador aplaude Clara que entra (vestindo outra roupa que não a de Blanche e com uma peruca). O Apresentador faz gestos para que a plateia a aplauda também. Clara se coloca ao lado dele, no centro do palco. Ambos estão virados para a platéia. O apresentador entrega a estatueta para Clara, que a recebe e a mostra para a plateia. O Apresentador aplaude. (CONT D) Como foi interpretar um papel tão cobiçado como o de Blanche Dubois em Um Bonde Chamado Desejo?

2. Quando o diretor me chamou pra atuar nessa peça maravilhosa, o texto do Tennesse, ele me deu toda a liberdade. E o elenco, o figurino, todos foram ótimos. Clara aponta algumas pessoas na plateia. (CONT D) Tanta atriz de peso concorrendo comigo. Foi uma surpresa enorme ganhar esse prêmio. Não esperava. (ela tira um pequeno papel do sutiã) Eu fiz uma lista. Tanta gente pra agradecer. Não queria esquecer de- No meio da platéia, o se levanta, vociferando. É o mesmo ator que acabou de interpretar o Médico. Veste um blazer e mastiga um palito no canto da boca. Vocês só podem estar de sacanagem! Isso é palhaçada! À medida em que fala, ele sai de sua fileira e vai caminhando até o palco. (CONT D) Não é possível que uma atuação pífia dessas ganhe um prêmio. Nem mesmo esse. Meu senhor, por favor, volte para a sua cadeira. O Espectador sobe ao palco. Que minha cadeira? Só vim aqui pela pizza. E nem tô mais com fome. Olha aqui, meu senhor. Teatro é coisa séria. Séria? (vira-se pra plateia) Vocês viram aquela cena. O texto. Cortaram muita coisa. Não dá pra chamar isso de sério. Na saída, se quiserem, eu mostro pra vocês.

3. Não é bem assim. Quer dizer, é. Mas a ideia de tirar uns personagens foi do autor desse esquete. E a iluminação não me valoriza, cansei de falar isso. (falando mais baixo, pro Espectador) E cá entre nós, esse papo de diretor que dá liberdade pra ator é falta de pulso mesmo. E tem os outros atores que não ajudam, fica tudo nas minhas costas. O médico mesmo. Como se pode terminar uma peça dessas com um médico tão insosso? Clara desaba a chora. Puxa, sem pedir, o lenço do bolso do blazer do Apresentador. Calma. Também não é assim. (pro Apresentador) Eu tive uma aulas no tablado quando era pequeno, sabe? Minha mãe vivia dizendo que eu levava jeito. (pra Clara, novamente) Então eu sei quando vejo um ator. Um ator de verdade. Clara enxuga as lágrimas. (CONT D) Não é todo mundo que tem esôfago pra ser ator. Quer ver? (aponta para alguém da platéia) Você. Quer vir aqui em cima e mostrar como a Clara deveria atuar na peça? Não, né? E você? (volta-se novamente para Clara) Tá vendo? Você é especial. Não deixa que digam o contrário. É você que dá vida ao texto. A esse texto, inclusive. O Espectador para, pensa e aponta para o chão. Ele é firme, mas sereno. Deita. (CONT D) Atônita, Clara deita. (CONT D) Não, não, pensando bem: fica de pé.

4. Ela se levanta rapidamente. (CONT D) Blanche está transtornada, fora de si, em pé. Doente dos nervos, ok? (para Clara) Vamos, eu sou o médico. Eles estão muito próximos. Clara não parece se importar. Médicos geralmente não mastigam palitos de dente enquanto atendem suas pacientes. Isso aqui não é mais um palito de dente. Isso aqui agora é um objeto cênico. (improvisa) É, é, é aquela espátula para afastar a língua dos pacientes. O Espectador pega o palito e o coloca na língua de Clara, olhando lá pra dentro. (CONT D) Diga aaaa. Aaaaa. Clara enojada. Mas está deleitada ao mesmo tempo. Ela está mais Blanche agora do que atuando na peça Um Bonde Chamado Desejo. (CONT D) Já que estamos nessa intimidade toda, posso pelo menos saber o seu nome? (cortando) Seguranças! Cadê os seguranças? Sem seguranças, esqueceu? Esse esquete só pode ter no máximo três atores e nós três já estamos no palco. (tendo uma ideia) Aproveita que você tá em pé e faz a enfermeira. Na peça original tinha uma enfermeira. Tiraram a enfermeira da cena? (MORE)

5. (CONT'D) (pra plateia) Que adaptação foi essa? Acho que foi a tal limitação de três atores por esquete. Não reclama porque ou era a enfermeira ou era você. (para o Espectador) Mas é até bom assim, os atores estão pedindo uma fábula. Qualquer atorzinho se acha. (afetada) Construção de personagem. A Fátima Toledo é que tá certa. Tem que destruir ator. O Espectador tira a peruca de Clara e dá pro apresentador que a coloca. Taí, você faz a enfermeira. O Apresentador coloca a peruca. O Espectador tira seu blazer e fica de camisa rosa. Vê a camisa do Apresentador, que é branca. (CONT D) (pro Apresentador) Tira essa camisa. (desabotoando) Mas e eu-? O Espectador já tirou a sua e está desabotoando a do Apresentador. Eles trocam de camisa. Agora o Espectador está de camisa branca e o Apresentador, meio que travestido de Enfermeira, de peruca e camisa rosa. (ainda pro Apresentador) Muito bem, agora você fica aqui. Sabe o texto? (pra plateia) Um chapéu? Alguém tem um chapéu? E óculos. O AUTOR entrega um chapéu [aparição hitchcokiana]. (CONT D) Vamos lá. Todos em suas marcas?

6. Clara, agora como Blanche se volta com violência e arranha a enfermeira. O Apresentador imobiliza os braços dela. Blanche solta um grito rouco e cai de joelhos. ENFERMEIRA Estas unhas precisam ser cortadas. O Médico entra no aposento, a Enfermeira olha para ele. ENFERMEIRA (CONT D) Camisa de força, doutor? Só se for necessário. O Médico e Blanche executam as ações à medida em que o Apresentador as vai narrando. (para a plateia) O Médico tira o chapéu. Sua voz é gentil e tranquilizante, enquanto ele se dirige a Blanche e se agacha em frente a ela. Quando ele fala o nome dela, seu terror desaparece. Os pálidos reflexos desaparecem das paredes, os gritos e ruídos inumanos desaparecem, e a voz rouca de Blanche se acalma. Senhorita Dubois. (ainda narrando) Ela volta o rosto para ele e o fita com uma súplica desesperada. Ele sorri e em seguida fala para a enfermeira. Não vai ser necessário. BLANCHE (debilmente) Peça a ela que me largue. (para a enfermeira) Largue-a. A enfermeira a solta. Blanche estende as mãos na direção do médico. Ele a segura gentilmente e a levanta, amparando-a com seu braço.

7. BLANCHE (agarrando-se a seu braço) Seja o senhor quem for. Eu sempre dependi da bondade de desconhecidos... Pausa. O Espectador/Médico vira, entusiasmado, pra plateia e depois pros atores. Muito melhor, vocês não acham? Muito mais carga dramática. Mas é que na primeira vez não tinha enfermeira. Eram menos atores... Ah, então quer dizer que quanto mais ator, melhor a peça? Tróia foi um filmaço. Os 300 também, é isso? Aquelas batalhas são tudo computação gráfica. Você esteve divina, Clara. O Médico a abraça e a rodopia. Que loucura. E eu nem sei o seu nome. Pra te agradecer. O Espectador vai falar, mas ela coloca o dedo nos seus lábios, impedindo-o. (CONT D) Não, não fale. Seja o senhor quem for. Eu sempre dependi da bondade de desconhecidos. FIM