DA INIBIÇÃO AO CHISTE: O CURTO-CIRCUITO DO PRAZER 1



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Transcrição:

DA INIBIÇÃO AO CHISTE: O CURTO-CIRCUITO DO PRAZER 1 Vera Lopes Besset [EBP/UFRJ No capítulo VII do Seminário V, Lacan fala da preparação do chiste, exemplificando-a a partir da preparação que ele próprio efetuara ao contar a história do Upa, cavalinho e a do At. Afirma que com essa preparação se produz o Outro. Diz, em seguida: É seguramente o que se chama em Freud, Hemmung, inibição. i Mas, de que inibição se trata aí e de que Outro, produzido no contexto do chiste? Encontramos indicações sobre o Outro, logo no capítulo introdutório do citado Seminário. Nele, Lacan afirma: só há sujeito na referência a esse Outro, pois não há verdadeiro sujeito que se sustente, a não ser aquele que fala em nome da palavra. ii Lugar do código, companheiro da linguagem, é preciso que ele efetivamente exista: Um só é suficiente para que uma língua esteja viva. Basta que haja alguém que possua o código, que o entenda: Podemos ainda continuar a fazer chistes numa língua quando somos os únicos que a possuímos. iii Pois bem, essas referências nos trazem o já conhecido em termos de teorização lacaniana sobre o grande Outro, lugar do código, sede da palavra. O próprio autor assinala isso, sublinhado que o Outro é dito lugar da palavra, desde o Seminário III, sobre as psicoses iv. Entretanto, aqui Lacan se refere à existência necessária do Outro, o que nos fornece uma pista sobre a produção que estaria em jogo no chiste. Voltaremos esse ponto mais adiante, pois ele nos parece fundamental para entender o processo mesmo do chiste, especialmente no que concerne o tempo de preparação, onde se trataria da inibição. Sobre isso, prossigamos. Lacan é claro, refere-se à conceituação freudiana, ao falar em inibição. Mas, nos perguntamos: qual? Ela não parece coincidir, à primeira vista, com a teorização de 1926, desenvolvida em Inibição, sintoma e angústia e trabalhada com Lacan no seu Seminário sobre a angústia. v Verifiquemos, todavia, o que diz o texto de Freud. Nele, a inibição é 1 Texto publicado em Maia, M.A., Almeida, W.A. O Seminário: as formações do inconsciente de Jacques Lacan Autores, Obras e Conceitos. Rio de Janeiro: Papel Virtual Ed., 2000, p. 107-118.

2 definida como a limitação de uma das funções do eu, entre elas, a sexual, a de alimentação, a de locomoção e de trabalho vi. É difícil conceber de que forma uma inibição dessa ordem estaria em jogo no momento de preparação ao chiste e na produção do Outro. Nossa questão continua, ainda, em aberto. Consultemos a obra sobre os chistes, ponto de partida da reflexão lacaniana sobre o tema e deixemo-nos guiar por seu autor em nossa busca. Há toda uma série de referências à inibição ao longo da primeira parte desse livro. Podemos resumir rapidamente o que contém: no processo do chiste, há uma inibição a cancelar, ao mesmo tempo em quem formula o chiste e naquele que o ouve; essas inibições em um e outro, se correspondem; o prazer ligado à explosão de riso, exclusiva daquele que ouve, é proporcionado por uma energia psíquica de súbito liberada, a mesma que servia, no ouvinte, a manter a inibição no lugar; enfim, para que o chiste se dê é indispensável desviar a atenção do ouvinte, evitando induzir nele qualquer trabalho de reflexão ou um pensar sério, como diz Freud. Vejamos, com mais detalhes e com apoio das referências escolhidas e organizadas para os propósitos desse estudo, o que se encontra nos escritos freudianos sobre o tema. No quarto capítulo do livro dos chistes, intitulado O mecanismo do prazer e a psicogênese do chiste, ao examinar o caso dos chistes que chama de tendenciosos, Freud afirma: No chiste tendencioso, o prazer é o resultado da satisfação de uma tendência que de outro modo seria interceptada. Somente no caso em que esse impedimento à satisfação se dá por um obstáculo interno é que se produz um forte efeito de riso. vii Nesse caso, a resistência interna é vencida com o auxílio do chiste e a inibição é cancelada. viii Trata-se aí do cancelamento de uma inibição pré-existente, especifica o autor. Mais adiante, no capítulo intitulado Os motivos do chiste. O chiste como processo social especifica as relações entre o riso e o prazer, no chiste. No riso estão postas as condições para a livre descarga de uma energia psíquica empregada até então como investimento. Embora nem toda risada seja indício de prazer, sempre o é a risada do chiste. Mas, o riso só ocorre no ouvinte. ix Riso que vem validar o chiste, fazê-lo existir como tal. Mas, de onde viria a energia psíquica para esta risada, se pergunta Freud. Conclui que o ouvinte ri com o montante de energia psíquica liberado pelo cancelamento do investimento da inibição; por assim dizer, ri esse tanto. x Isso só é possível, pondera Freud, porque tanto 2

3 no estabelecimento da inibição tanto quanto em sua manutenção, existe um dispêndio de energia psíquica. Dispõe-se assim, em termos de energia, a relação entre inibição e chiste: esse ganho de prazer corresponde ao dispêndio psíquico economizado. xi O autor afirma, ainda que:...a economia da despesa relativa à inibição ou à supressão parece ser o segredo do efeito de prazer dos chistes tendenciosos e se transmite ao mecanismo dos chistes inocentes. xii Especifica, ainda que essa economia se liga a fato da compulsão exercida pela crítica se tornar menos pesada. xiii Em vários momentos, essa idéia é reiterada: Os chistes tendenciosos exibem a principal característica da elaboração do chiste a de liberar prazer pelo afastamento das inibições- mais claramente que quaisquer outros dos estágios do desenvolvimento dos chistes. xiv E, ainda:...os chistes tendenciosos devem superar duas espécies de inibição a que se opõe ao próprio chiste e a que se opõe a seu propósito-, sendo as alusões e deslocamentos bem qualificados para possibilitar essa última tarefa. xv O autor é bastante claro sobre o caráter que rege o trabalho do chiste: a liberação de prazer pela eliminação das inibições. Entre elas, o autor situa o recalque, que define deste modo: a operação de excluir do se tornar-consciente tanto as moções que sucumbem a ela quanto seus retornos. xvi Até aqui, a indicação é clara: o conceito de inibição com o qual Freud lida nessa teorização sobre os chistes, envolve uma concepção de economia psíquica bastante específica. A referência à energia nos remete, de pronto, aos textos iniciais de sua obra, especialmente ao Projeto. Neles, a inibição é colocada como uma forma de repressão e, mesmo, de recalque; é algo que atinge a representação, sufocando-a, enfraquecendo-a, impedindo-a de associação por rechaço da consciência. Vejamos. Em Un caso de curación por hipnosis, datado de 1892-93, Freud relata o caso de uma mulher que só conseguiu amamentar seus bebês mediante tratamento hipnótico. Na explicação do mecanismo psíquico de tal perturbação, o autor postula a existência de representações ligadas um afeto de expectativa: farei isto ou aquilo, os desígnios, ou isto ou aquilo acontecerá comigo, expectativas, no sentido estrito. xvii Em oposição a elas, se manifestariam as representações penosas contrastantes, que colocam o intento como irrealizável, por sua dificuldade mesmo ou por incapacidade da própria pessoa. Uma pessoa sã, diz Freud, as sufocaria e inibiria, as excluiria da associação xviii, em contraste com a 3

4 neurótica que lhes daria bastante atenção. Na histeria, indica o autor, a representação penosa contrastante está aparentemente inibida, mas persiste de forma inconsciente e se manifesta como vontade contrária, por via da inervação corporal. Em outro texto, datado de 1892-94, Freud afirma que nos delírios histéricos estão presentes as representações e impulsos {Antrieb} de ação que a pessoa desconsiderou e inibiu, geralmente com grande empenho psíquico. xix Essa descrição se aproxima daquilo que o autor mais tarde define como recalque. Se não, vejamos o que diz em 1893 sobre os ataques histéricos: Se o histérico quer esquecer uma vivência, rechaça de si, inibe e sufoca violentamente um intento ou uma representação, por isto mesmo esses atos psíquicos caem dentro do estado da consciência segunda, exteriorizam desde então seus efeitos permanentes, e a recordação deles retorna como ataque histérico. xx (grifo nosso) Um pouco mais tarde, na carta 52 xxi, a inibição é vista como incidindo sobre o fluxo de excitação do aparelho psíquico, pois se trata de uma inibição da descarga de desprazer. Nesse texto, Freud faz conjecturas sobre a gênese de um aparelho psíquico estratificado, que se faria a partir de um reordenamento dos traços mnênicos, de uma retranscrição destes. Nesse sentido, afirma que Cada reescritura posterior inibe a anterior e desvia dela o processo excitatório. Quando essa reescritura, ou tradução falta a excitação tramita segundo as leis e os caminhos válidos para o período psíquico anterior. Essa falta de tradução, denominada recalque, é determinada pela defesa contra o desprazer ligado a uma possível reescritura. Defesa que se justifica a partir de um modelo específico de funcionamento psíquico, que se encontra desenvolvido no Projeto de Psicologia, escrito em 1895. No aparelho aí proposto, a função primária do sistema de neurônios é a descarga de energia, efetuada em conexão com os mecanismos musculares, que o deixa isento de estímulos. xxii Nesse contexto, o intuito do eu, organização do sistema psi xxiii, é se liberar de seus investimentos pelo caminho da satisfação. Assim, exerce influência na repetição de vivências de dor e de afetos através da inibição. Ao investir um neurônio contíguo, o eu propicia uma modificação do percurso de Q n, por uma espécie de facilitação temporária das barreiras-contato entre eles. Esse investimento colateral é uma inibição do curso de Q n, obtido com o auxílio de um mecanismo que oriente a atenção do eu. xxiv Isso é fundamental, pois uma grande quantidade de afeto provoca a inibição do curso do 4

5 pensamento. Afeto é definido, nesse texto, como uma elevação de Q n em psi por liberação repentina de energia. Refletir é uma atividade do eu que demanda tempo e não pode se realizar com intensas Q n em nível de afeto. xxv Isto porque o trabalho de pensar se dá por um deslocamento de pequenas Q n. Assim, para que o processo de pensamento se dê sem entraves, o eu não deve permitir nenhum desprendimento de afeto. Para tanto, a melhor ferramenta de que dispõe é o mecanismo da atenção. xxvi Atenção que é definida como um mecanismo que leva o eu a seguir as percepções e exercer influência sobre elas. Mas, sobre o quê se exerce a atenção do eu nesse processo de pensamento do qual Freud nos fala? É o próprio autor que nos informa: Dentro do eu impera a tensão do apetite e como conseqüência é investida a representação do objeto amado (representaçãodesejo). A atenção psíquica é o investimento dos mesmos neurônios que são portadores do investimento-percepção, que tem como modelo a vivência de satisfação, tão importante para todo o desenvolvimento, e suas repetições, os estados de apetite, que se desenvolveram como estados de desejo e estados de expectativa. xxvii Assim, a atenção do eu se volta para as representações de um determinado objeto, objeto amado, representação [do] desejo e parece se conjugar à inibição, que está a serviço da evitação do desprazer. Esse processo de pensamento parece se distinguir do que Freud chama de pensar sério, em seu livro sobre os chistes. Voltemos a ele. Investigando as relações entre a economia de energia e o prazer encontrado nos chistes, o autor aborda um grupo de chistes que denomina jogos de palavras. Nesses, a técnica consistia em acomodar nossa postura psíquica ao som e não ao sentido da palavra, em colocar a representação-palavra {Wortvorstellung} (acústica) mesma no lugar de seu significado dado por relações com as representações-coisa-do-mundo {Dingvorstellung}. Isso representaria uma economia de trabalho psíquico, segundo o autor, que identifica esse mesmo processo em estados patológicos dos adultos e, normalmente, nas crianças: Também na criança, habituada a tratar, entretanto, as palavras como coisas, percebemos a inclinação a buscar um mesmo sentido em unidades fonéticas iguais ou semelhantes, o que é fonte de muitos erros que provocam risada nos adultos. xxviii Esses jogos de palavras usados nos chistes permitem que passemos de um círculo de representações a outro distante, através do uso da mesma palavra ou de palavra 5

6 semelhante. Para explicitar, Freud nos remete a um exemplo de chiste, que vai do círculo da cozinha ao da política. xxix Acrescenta que quanto maior a distância entre os ditos círculos de representação ligados pelo curto-circuito causado pelo chiste, maior o prazer que este último provoca. Afirma, então, que esse é um meio de enlace que o pensar sério desestima e evita cuidadosamente. Eis que nos aproximamos do que Lacan chama de preparação do chiste. Vejamos o que Freud tem a dizer sobre isso. Embora o termo preparação não figure de forma explícita em seu trabalho, há toda uma elaboração sobre o que chama de estado prévio ao chiste, distinto desse, que seria a piada, o gracejo, o cômico. Na piada, assinala Freud, não há criação. Lacan concorda com isso, relacionando a criação do chiste ao funcionamento da cadeia significante e ao lugar desse Outro, que se trata, justamente aí, de aí produzir. Distinto do chiste, o cômico pode estar presente em seu processo, como condição: O que se requer é abrir passo ao ganho de prazer do jogo, porém cuidando, ao mesmo tempo, de fazer calar o veto da crítica, que não permite que sobrevenha o sentimento de prazer. Nela, a satisfação advém por possibilitar o que a crítica proíbe. Desde o começo, sua operação consiste em cancelar inibições internas e em reabrir fontes de prazer que elas haviam tornado inaccessíveis;. xxx Na preparação do ouvinte para o chiste, Freud insiste em que não se pode levá-lo a pensar, ou seja, a fazer um gasto de trabalho de pensamento. Para isso: As alusões do chiste têm que ser chamativas; as omissões, fáceis de completar; ao despertar o interesse do pensar consciente se impossibilita, geralmente, o efeito do chiste. Eis uma indicação sobre o tipo de pensamento está em jogo no chiste: ele se passa a nível do inconsciente. Como tal, para Lacan, exige a referência ao Outro, lugar do código. Para esse autor, o valor de mensagem do chiste se liga ao funcionamento da cadeia significante, em seu enlaçamento com o discurso. Para que isso aconteça, é preciso que se iniba o pensar sério, como nos indica Freud? Ao se debruçar sobre o efeito do chiste sobre quem o escuta, Freud aborda os processos psíquicos do sujeito a quem ele ocorre:... para entender o chiste, são mais significativas as operações que ele consuma na vida psíquica de quem o faz ou, para dizê-lo de maneira correta, daquele a quem ele ocorre. Note-se que Freud não fala de alguém que faz o chiste, mas alguém a quem ele ocorre. Assim, o chiste é bem algo que se passa no sujeito, mas não depende de um ato voluntário, ou consciente, seu. O autor supõe que o 6

7 processo psíquico incitado no ouvinte é cópia daquele que sobrevém em seu criador. Explicita: Ao obstáculo externo que deve ser superado no ouvinte corresponde um obstáculo interno no chistoso. No criador do chiste, ao menos uma expectativa do obstáculo externo, diz Freud, existiu préviamente, como uma representação inibidora. xxxi Para Lacan, na preparação para o chiste é preciso acomodar o Outro a um objeto. Trata-se de obter uma certa fixação do Outro... Mas, não é necessário que isso se relacione a inibições próprias a um sujeito, informa, indicando que não se refere a inibições das funções do eu, que podem se tornar sintomáticas xxxii. O que importa, acrescenta, é que um certo objeto ocupe o Outro, nesse momento preciso. Com isso, obtém-se a solidificação imaginária do Outro, que leva à imobilização do Outro xxxiii, permitindo a passagem do chiste. xxxiv Eis a explicação do autor: Digamos que, em sentido contrário à metonímia de meu discurso, trata-se de obter uma certa fixação do Outro enquanto que ele mesmo discorrendo sobre um certo objeto metonímico. De uma certa maneira, é qualquer um. xxxv Qualquer um, desde que seja um objeto substituto do objeto que concerne o sujeito que ocupa o lugar daquele que ouve o chiste, supomos. Podemos pensar que na preparação do chiste, a atenção do eu deve se voltar para esse objeto metonímico ou para, em termos freudianos, a representação-desejo do objeto amado, desde sempre perdido. Um objeto que concerne esse Outro, o concerne em termos de seu desejo, talvez disso dependa sua produção, no contexto do chiste. Ainda sobre o tema da preparação, Lacan nos remete ao que Freud denomina fachada do chiste. Descreve-a: essa fachada desvia a atenção do Outro pelo caminho por onde vai passar o chiste, fixa a inibição em algum lugar para deixar livre, em outro, o caminho por onde vai passar a palavra espirituosa. xxxvi Mas, fixar a inibição poderia ser entendido, nos termos do Projeto, inibição do curso de Q n? Trata-se, de todo modo, em ambos os casos, de recorrer ao auxílio de algo que possa agir sobre a atenção do eu, nas palavras de Freud. Essa fachada é apontada por esse autor como um dos recursos para que as condições de riso no chiste estejam garantidas. Sabemos que a produção do chiste depende do riso do ouvinte. A fachada serve para distrair a atenção, oferecendo na expressão do chiste algo que a cative, de sorte que, entretanto, possa consumar-se imperturbada a liberação do investimento inibidor e sua descarga. As fachadas 7

8 silogísticas, segundo Freud, cumprem, de maneira notável, o fim de reter a atenção colocando uma tarefa. Nem bem começamos a refletir sobre o defeito que possa ter essa resposta e já rimos. Isso ocorre também no caso dos chistes com fachada cômica, onde a comicidade faz as vezes de auxiliar na técnica do chiste. xxxvii Em resumo, esse são recursos, entre outros, que procuram essa distração da atenção, desejável para o curso automático do processo chistoso. Esse desvio da atenção daquele que ouve é essencial para o chiste, pois O riso é, justamente, o resultado de um processo automático somente possibilitado pelo afastamento de nossa atenção consciente. xxxviii A referência ao inconsciente está aí claramente posta, um inconsciente contraposto ao consciente, é verdade. Estávamos aí na primeira tópica. Todavia, o aceno se podemos dizer assim ao inconsciente lacaniano não está ausente, já que a esse ouvinte do chiste Freud atribui o lugar terceiro no processo. Ao estudar as condições subjetivas xxxix requeridas para o chiste, o autor se vale do exemplo retirado da obra de Heinrich Heine, o chiste familionário. Sempre intrigado com o fato do riso não acometer quem formula o chiste, mas somente o outro que ouve, Freud se pergunta qual é, nesse contexto, o papel desse outro. Para investigá-lo, toma como referência o cômico, distinguindo-o do chiste, e coloca duas pessoas em jogo em tal processo: a pessoa que o formula e a que é objeto dele, pessoa objeto xl. Pode haver uma terceira pessoa, a quem a piada é contada, mas isso não é indispensável. Posso mesmo rir sozinho de uma piada que formulei, afirma. O chiste, ao contrário, depende de uma outra pessoa a quem comunicar seu resultado. Esta pessoa, no entanto, não tem o mesmo lugar que a pessoa objeto do cômico, mas corresponde à terceira pessoa, ao outro da comicidade. xli A dependência, no chiste, de uma pessoa a quem comunicar o chiste, se explicita melhor, indicando a função de sanção do Outro, apontada por Lacan. É Freud quem afirma: Pareceria que na zombaria se transfere à outra pessoa a [tarefa de] decidir se o trabalho do chiste cumpriu sua tarefa, como se o eu não se sentisse seguro de seu juízo sobre ele. Continua, reafirmando a necessidade de haja um terceiro que sancione o chiste: Também o chiste inocente, reforçador do pensamento, requer o outro para comprovar se alcançou seu propósito. Desenvolve um pouco mais o tema: E quando o chiste se põe a serviço de tendências desveladoras e hostis, pode ser descrito como um processo psíquico entre três pessoas; são as mesmas da comicidade, porém o papel da terceira é diverso; o processo 8

9 psíquico do chiste se consuma entre a primeira (o eu) e a terceira (a pessoa alheia) e não como no cômico, entre o eu e a pessoa objeto. xlii Isso se mantém, acrescenta Freud, curiosamente, mesmo no caso do segundo lugar ser ocupado por um objeto (do mundo externo), já que ele se personifica, então. Podemos, agora, retomarmos a questão do Outro, inserindo-a no contexto do chiste, a partir das formulações de Lacan, no capítulo I do Seminário V. Com o auxílio de um esquema, preliminar a seu grafo do desejo, Lacan demonstra como a criação de sentido depende das relações entre o sujeito que fala, o objeto metonímico e o Outro, como lugar do código. Nesse esquema, é possível discernir que a preparação do chiste se dá exatamente na linha que liga o sujeito ao objeto de desejo. Nesta, a referência ao Outro falta e o sujeito que fala, ao mesmo tempo aquele que ouve, se situa no nível da relação sujeito objeto, objeto metonímico do desejo, ou seja, no nível do puro e simples rame-rame da repetição, da tagarelice. xliii Primeiro andar do grafo, dimensão imaginária, onde se localiza o cômico, em termos estritamente freudianos, como vimos. Mas, para que o chiste se produza, sabemos, é preciso um passo a mais, a referência ao Outro. Apoiando-se no mesmo esquema e distinguindo a cadeia do discurso da cadeia do significante, Lacan indica a convergência das duas cadeias num mesmo ponto, o que produz uma mensagem. Mensagem incongruente e que viola o código, em sua referência ao significante. Eis a produção do chiste, que tem valor de mensagem. Valor que adquire, ao se diferenciar e distinguir do código: uma diferença que é sancionada pelo Outro. Algo fundamental, assinala Lacan: Isso é indispensável e está em Freud. xliv Afirmação com a qual não nos é difícil concordar, após nossa pequena pesquisa. Resta, porém, um ponto que nos intriga em relação aos temas tratados: como conciliar, se podemos dizer assim, duas teorizações aparentemente tão apartadas, a de Freud e Lacan, no que concerne a energia psíquica e seu lugar no aparelho psíquico? Questão que se impõe dada a referência desse último a uma teorização freudiana bem específica e datada, como nos foi possível verificar. Questão à qual não se pode responder, ao menos no escopo desse trabalho. Todavia, dentro de seus limites, podemos relacionar o imaginário ao qual se refere Lacan à libido, como o faz o próprio autor em alguns momentos de sua obra. xlv Ao mesmo tempo, todo esse vai-e-vem de energia que Freud expõe no Projeto não deixa de nos evocar o movimento em jogo na relação entre os 9

10 termos que figuram no esquema de Lacan. Esquema que elaborou para nos falar das formações do inconsciente. 10

i Referências Bibliográficas: Lacan, J., Le Seminaire, Livre V, Paris, Seuil, 1998, p. 123. ii Lacan, J. Idem, p. 13. iii Lacan, Idem, p. 17. iv Lacan, Idem, p. 12. v Lacan, J. L Angoisse, Séminaire X, 1962-63, inédito. vi Freud, S. Inhibición, síntoma y angustia (1926 [1925]), in Obras Completas, vol. XX, Buenos Aires, Amorrortu Ed., 1987, p. 83. vii Freud, S. El chiste y su relación com el inconciente (1905), in Obras Completas, Vol. VIII, Buenos Aires, Amorrortu Ed., 1986, p. 113. viii Idem, p. 114. ix Idem, p. 141. x Idem, p. 142. xi Idem, p. 114. xii Idem, p. 117. xiii Idem, p. 122. xiv Idem, p. 130. xv Idem, p. 163. xvi Idem, p. 129 xvii Fredu, S. Un caso de curación por hipnosis Com algunas pontualizaciones sobre la génesis de síntomas histéricos por obra de la vonluntad contraria (1892-93), Obras Completas, Vol. I, Buenos Aires, Amorrortu Ed., 1988, p. 155. xviii Idem. xix Freud, S. Prólogo y notas de la traducción de J.-M. Charcot, Leçons du mardi de la Salpêtrière (1887-88) (1892-94), Obras Completas, Vol. I, op. cit., p.172. xx Freud, S. Bosquejos de la Comunicación preliminar de 1893 (1940-41 [1892] )., Obras Completas, Vol. I, op. cit., p. 189. xxi Freud, S. Fragmentos de la correspondencia com Fliess (1950 [1892-99]), Obras Completas, Vol. I, op. cit., p.274. xxii Freud, S., Proyecto de Psicologia (1950 [1895]), ]), Obras Completas, Vol. I, op.cit, p. 340. xxiii Idem, p. 368-369. xxiv Idem, p. 369. xxv Freud, S. Idem, p. 406. xxvi Freud, S. Idem, p. 405-6. xxvii Freud, S. Idem, p. 408-409. xxviii Freud, S. El chiste y su relación com el inconciente (1905), in Obras Completas, Vol. VIII, Buenos Aires, Amorrortu Ed., 1986, p. 115. xxix Idem, p. 116. xxx Idem. P. 124. xxxi Freud, S. Idem, p. 128. xxxii Trabalhamos sobre isso em outro texto. C.F. Lopes Besset, V., Inibição e Sintoma, a angústia na clínica hoje ; a ser publicado na Revista Psychê n. 5. xxxiii Lacan, J. Le Seminaire, Livre V, op. cit., p. 121. xxxiv Idem, p. 123. xxxv Idem. xxxvi Idem. xxxvii El chiste y su relación com el inconciente (1905), in Obras Completas, Vol. VIII, Buenos Aires, Amorrortu Ed., 1986, p. 145. xxxviii Idem, p. 146. xxxix Freud, S. Idem, p. 135. xl Idem, p. 137. xli Idem, p. 136. xlii Idem, p. 137-138. xliii Lacan,. Le Seminaire, Livre V, op. cit., p. 17. xliv Idem, p. 24. xlv No Seminário I, por exemplo. C.F. Lacan, J. Le Séminaire, Livre I, Paris, Seuil, 1975.