EXPRESSÃO E CRIAÇÃO NA CLÍNICA DA TOXICOMANIA

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Transcrição:

EXPRESSÃO E CRIAÇÃO NA CLÍNICA DA TOXICOMANIA Luiz Alberto Tavares CETAD/UFBA Em nossa prática clinica percebemos que existem manifestações que não se apresentam como um sintoma, no sentido clássico do termo, mas emergem sob a forma de um fazer, que tem para o sujeito uma série de funções. É nessa perspectiva que situamos a toxicomania, tomada como uma solução para alguns sujeitos tal como Freud descreve no Mal estar na civilização (1930) na impossibilidade da fuga na doença nervosa o sujeito escolhe a droga como uma solução para o seu mal estar. Freud situa essa prática como uma solução e não como um sintoma. Continua quando o sujeito não pode encontrar um sintoma satisfatório para ele passa a escolher a via da consolação pela intoxicação crônica. Para situar a posição do toxicômano, tomemos o sintoma na condição de ser duplamente determinado: pelo inconsciente, naquilo que o sujeito tem de singular e, pelo discurso, que tem a ver com o estado de distribuição de gozo no discurso do momento. Os psicanalistas tem se interrogado sobre o modo da produção sintomática hoje. Surgimento de uma nova ética? Uma nova subjetividade? O sofrimento do sujeito e sua queixa mudaram? Nesse final de século postula-se que o sujeito não mais sucumbe sob os significantes ideais, mas, por deslocamento, são capturados pelos objetos de consumo. São assim comandados pela excitação do mercado de gozo dos tempos atuais e não mais pelos ideais. No particular do caso a caso constatamos que, na medida em que uma inscrição, um nome, não pode estabelecido pelo sujeito, isso terá conseqüências diretas sobre a forma que toma o sintoma. É o próprio sujeito 1

que passa a administrar o seu gozo, estabilizado num determinado modo de posicionamento. Nesse sentido, o discurso da ciência adquire uma função especial quando passa a assegurar uma nomeação possível: ser toxicômano, ser viciado, ou dependente físico, mais modernamente falando. A experiência clínica institucional, com usuários de drogas e seus familiares, suscita, entre os clínicos, uma série de problemas teóricos e práticos. As respostas são múltiplas entre os que tratam desse fenômeno, impondo a necessidade de se vislumbrar modelos estruturais novos, para dar conta da especificidade dessa manifestação, e dos impasses que se anunciam na demanda de tratamento. Ao recebermos um paciente na instituição especializada, estamos sempre a nos interrogar sobre a demanda que ele nos faz. A demanda se articula à necessidade e ao desejo, que aparece desde o primeiro momento, para cada sujeito, vinculado à sua entrada no campo da linguagem e à falta do Outro. Sabemos que, na origem de toda demanda, o que aparece é a falta-a-ser. Toda demanda é, assim, demanda de ser e demanda de amor. Lacan nos propõe uma definição do amor: dar o que não se tem. Mas, o que pede um sujeito, quando procura um analista? Quando busca ajuda, o faz movido por um sofrimento, um sintoma, que lhe faz enigma, e do qual ele quer se livrar. Sente-se impotente para resolver as situações, e demanda um sentido para o que lhe acontece. Se ele não tem respostas, supõe encontrá-las naquele a quem dirige sua demanda. Na medida em que o analista não responde à demanda de amor, mantém-se o lugar do enigma, levando o sujeito a interrogar-se sobre o seu desejo e, conseqüentemente, à produção de um saber. Há solicitações na clínica quotidiana que estão referidas ou apontadas no plano da necessidade. Os praticantes da psicanálise devem estar advertidos da 2

inexistência de demandas puras, e, pouco ou nada podem fazer com elas. Seu destino é outro: médicos, trabalhadores sociais, educadores. Quando falamos de demanda, esta deve ser referida a um sujeito dividido, sujeito em falta, efeito da cadeia significante, proveniente do Outro, igualmente em falta. Para o toxicômano, a droga vem obturar esse efeito de divisão. Ele nos chega pleno de sentido. A droga é uma resposta para o seu mal-estar, ao tempo em que o sujeito se exila como sujeito da palavra. A transferência, estabelecida a partir de uma demanda de tratamento, produz um vínculo que se dirige do amor ao saber. No caso do toxicômano, vemos uma posição invertida: o saber está do seu lado, o saber da droga, e o gozo desse saber. Ele sabe qual a melhor solução para o seu caso: medicamentos desintoxicação, internamento etc. Responder de imediato à demanda com algo, não importa o que, oblitera o caminho da emergência do desejo. Muitas práticas terapêuticas destinadas a usuários de drogas tomam o produto como causa, um mal exterior a ser abolido, ou então, se direcionam numa perspectiva em que as noções de pecado, no modelo religioso, ou de desvio social, nos modelos mais comportamentalistas, norteiam a posição da instituição buscando situar o usuário ora como vitima, ora como um delinqüente, a ser reabilitado para o convívio social. O que escutamos, mais freqüentemente, na experiência clínica com esses pacientes, é um pedido: recompor o equilíbrio perdido no seu consumo de drogas para começar de novo sua prática aditiva. Na toxicomania o sujeito encontra-se colado e identificado radicalmente com um objeto, não permitindo assim o deslizamento necessário para uma trabalho terapêutico. Ele nada quer saber, nada quer pensar. No engodo imaginário da droga, encontra uma identificação possível, e ai se mantém até que algo desestabilize esse casamento: uma overdose, uma questão judicial, etc. 3

Um tratamento não pode começar com o sujeito que vem, unicamente, para se queixar do seu consumo de drogas. Se alguém formula um pedido de tratamento, não pode ser somente em nome da toxicomania e dos efeitos de plenitude da droga. Há, entretanto, situações em que o toxicômano, quando nos procura, está absolutamente tomado pelos efeitos de gozo oferecidos pela droga, tão próximo da morte, que não há possibilidades para a instauração de um tratamento a nível ambulatorial. A internação será o corte necessário para a entrada do sujeito em tratamento. A pergunta a ser colocada é: o que podemos fazer, dentro da perspectiva psicanalítica, com os pacientes que nos procuram na instituição, em nome de uma prática aditiva? Tomamos o uso da droga pelo toxicômano como uma eleição contra a castração, contra a divisão do sujeito. É como se houvesse uma exclusão: a experiência com a droga ou o sujeito. Trata-se de uma experiência vazia do sujeito do inconsciente. Vazia do Outro, do sexo, da significação, e que tem, por outro lado, uma plenitude de gozo. É dessa forma que o sujeito maneja o seu vazio existencial, não se tratando aí de uma estrutura clinica, mas de uma operação sobre a estrutura. Nessa experiência do gozo toxicomaníaco o sujeito do inconsciente emudece, devendo o tratamento passar de um saber sobre a droga à falta de saber. Se por um lado a montagem toxicomaníaca rechaça o inconsciente, por outro lado, ao se dirigir ao analista ele fala. Existe assim a possibilidade de se restituir algo. Trata-se, pela via da transferência, de uma convocação ao deslizamento significante. 4

O tempo preliminar com a maioria desse pacientes geralmente é longo, permeado de impasses que se revelam em atuações e desafios, como falta às sessões, abandono de tratamento, uso recorrente do produto em causa. O percurso clínico institucional, numa clínica que se revela de difícil manejo, motivou-nos a buscar novas estratégias de tratamento, que pudessem implicar o sujeito exilado do desejo e dedicado, exclusivamente, ao consumo da droga num trabalho clínico possível, dentro do campo teórico da psicanálise. Nesse sentido surgiu, entre os clínicos da instituição, o desejo de oferecer um lugar sem álcool ou outras drogas, um espaço/tempo, preliminar, que vislumbrasse a entrada ou manutenção do tratamento. Esse espaço é sustentado por diversas atividades, nomeadas como oficinas, onde interessa menos o produto final, e mais o que é possível para cada paciente, durante um dado percurso, resgatar uma fala que lhe permita deslizar sob o efeito do significante. As oficinas de música, teatro, artes plásticas, vídeo, constituem-se num espaço terceiro, na relação dual que se estabelece o sujeito e a droga, favorecendo o deslocamento desse sujeito em relação ao produto de consumo. Não se trata, aqui, de um espaço que teria como função tamponar o vazio da droga, ou mesmo ocupar o sujeito com atividades num intervalo de tempo, mas fazê-lo suportar o mal estar na civilização que o tóxico tenta suprimir. A aposta é, justamente, buscar contornar o vazio, o que pode emergir entre o sujeito e a droga, onde o dizer encontra-se adormecido. Pensamos que a música, o teatro, a pintura, o filme, oferecem recursos que permitem a subjetividade aflorar na dimensão da obra, tanto no que ela provoca quando o sujeito se percebe diante dela, quanto na criação em si, possibilidade de abertura que se reinventa de forma permanente. 5

Lacan refere no Seminário A ética da psicanálise, ao citar o exemplo do oleiro, como a criação, a obra, dão forma ao vazio. É um modo de fazer existir o vazio, ao tempo em que o contorna. Ao longo do trabalho, nesses espaços de criação e expressão, será possível escutar num fazer, algum dizer, algo que possibilite um enlaçamento do sujeito no discurso, fazendo com que ele possa se mover num trabalho subjetivo. Não se trata aqui da produção no sentido coletivo, efeito do trabalho grupal, mas do que cada um possa produzir singularmente, sustentando-se as diferenças apagadas pelos efeitos imaginários do produto. Esse espaço terceiro institucional, ao tempo em que instaura uma lei, uma borda, vislumbra o deslizamento simbólico. Não se trata apenas da lei da não-violência ou da interdição do produto, que fomentaria o usuário a resgatar um quinhão de gozo perdido, mas uma lei que aponte um desejo possível. A perspectiva da convivência entre os participantes, em cada atividade, visa promover, pelo viés da criação, os laços sociais rompidos pela identificação brutal com o produto. A inserção do paciente nessas atividades é objeto de indicação do clínico responsável pelo seu acompanhamento, a quem cabe avaliar o impacto e os efeitos dessa intervenção. Nesse sentido, deve ser tomada como efeito a resposta singular de cada paciente, a cada encaminhamento feito. É com a instalação da transferência, vínculo terapêutico essencial na clínica psicanalítica, que o manejo se dá no acompanhamento ambulatorial. Importa ao clínico resgatar o que é falado pelo paciente sobre o seu percurso na atividade, ainda que esta tenha um caráter transitório. Assim, o jogar damas, sempre repetido por um paciente na Oficina de jogos; o texto tecido e posto em ato na Oficina de teatro; o ritmo ou a letra criada na Oficina de Expressão Musical; a escolha de um filme a ser visto e discutido 6

no Clube de Vídeo, ou o efeito desse filme num determinado paciente, inseridos no contexto institucional, têm importância na medida em que possam ser reenviados à escuta individual e, tomadas por um analista na instituição, como um pré-texto, possibilitem a irrupção de um saber possível, apagado pelos efeitos encobridores da droga. REFERÊNCIAS: FREUD, S. - O mal estar na civilização (1930) In: Ed. Standard Brasileira das Obras Completa de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago. 1977. Vol. XXI. LACAN, J. Seminário - livro VII A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1991. Seminário - livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988. SOLER, C. Sobre a segregação. In: O brilho da in felicidade. Rio de Janeiro: Contra Capa. 1998. TARRAB, M. Uma experiência vazia. In: O brilho da in felicidade. Rio de Janeiro: Contra Capa. 1998. TAVARES, L.A. Espaço de Convivência: uma estratégia possível. In: Cadernos do CETAD, vol. 1. Salvador: EDUFBA. 1998. 7