1 PEDRA DO SAL: EM BUSCA DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS Marcia Evelin Carvalho 1 Francinalda Maria Rodrigues da Rocha 2 (...) a memória é tocada pelas circunstâncias, como o piano que produz sons ao toque das mãos. Michael Certeau Praia da Pedra do Sal Piauí Brasil, dez/2012. Foto: Marta Evelin. Apresentamos memórias de uma das intervenções realizada na comunidade de Pedra do Sal, município de Parnaíba, litoral do Piauí, Brasil. O estudo possibilitou-nos a escuta de histórias de vida das pessoas desse lugar, através da metodologia da História Oral, onde foi evidenciada a origem da comunidade, como se dava a pesca e outras histórias que povoam o imaginário social. Em nove de dezembro de 2012 a convite da Comissão Ilha Ativa, participamos de uma Roda Griô, na comunidade litorânea da Pedra do Sal, com a finalidade de ouvir as histórias locais. Já havíamos realizado uma dessas Rodas na Praia do Coqueiro, município de Luis Correia PI, na qual os representantes da CIA também haviam participado, de modo que a Roda seguiu os mesmos rituais, com algumas particularidades. Levamos 1 Mestre em Letras/UFPI; Graduada em Geografia/UFPI e Letras Português/UESPI; Membro dos Grupos de Pesquisa/CNPq Memória, Ensino e Patrimônio Cultural e Literatura, Leitura e Ensino ; Ministrante de oficinas da arte de contar histórias e dinamização da leitura e de bibliotecas; integrante do Grupo Cafundó de Contadores de Histórias. 2 Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente UFPI; Coordenadora de Projetos da Comissão Ilha Ativa CIA; Estudante de pedagogia da UFPI.
2 conosco um tambor, elemento sempre presente numa Roda Griô. De longe avistamos a fogueira acesa, outro símbolo importante, que mantém a Roda conectada com a ancestralidade. Ainda era cedo, por volta das 17h e 30 min., mas já haviam pessoas, sentadas em cadeiras, distribuídas de forma circular, num bar localizado num ponto estratégico, uma das pontas da praia da Pedra do Sal. Além de alguns moradores locais, na maioria pescadores, também estavam presentes convidados, vindos de Parnaíba, que, de alguma forma faziam ou fizeram parte da história daquele lugar, o que tornou a Roda mais diversificada e possibilitou a troca de experiências entre diferentes saberes e linguagens. As pessoas foram apresentadas por grupos referentes aos locais de onde vinham, famílias ou trabalhos que realizavam, ao som de uma melodia, acompanhada de palmas: Seja bem-vindo oh lê, lê Seja bem-vindo oh lá, lá Palmas para você Que veio participar... Participantes da Roda Griô, dezembro/2012. Foto: Marta Evelin. Depois das saudações, iniciaram-se os ensaios das músicas, que iriam ser entoadas na Roda, entre uma história e outra, acompanhadas de tambores e outros instrumentos, dentre elas a melodia Eu vou poemar, da autoria de uma das pesquisadoras: Eu vou poemar, eu vou poemar, eu vou poemar, na beira do mar Chuá, chuá, chuá, chuá Eu vou poemar lá na beira do mar...
3 O sol já se despedia, a noite só começava, com a presença das primeiras estrelas no céu, que embalariam as histórias. A fogueira, alimentada com lenha, de quando em vez, mostrava-se mais viva e atraente à medida que o tempo passava. A fogueira mantém a Roda Griô conectada com a ancestralidade, dez/2012. Foto: Marta Evelin. A Roda foi conduzida por Francinalda Rocha. Após o ensaio das músicas a condutora nos convidou para formarmos uma grande roda na areia da praia, onde dançamos, cantamos e falamos palavras saídas do coração, desejos para o novo ano que estava prestes a chegar. De volta a roda de cadeiras foi explicado como acontece uma Roda Griô, seu significado, finalidade e simbologia para a salvaguarda da memória de uma comunidade. Partindo de uma metodologia baseada nos valores civilizatórios afrobrasileiros e no conhecimento de que os contadores de histórias tradicionais se reuniam em uma roda, geralmente, ao redor de uma fogueira, para narrarem fatos do dia-a-dia, a denominação Roda Griô se deu pela união simbólica da palavra Roda, representando o movimento rítmico da circularidade, da totalidade, do temporal e do recomeço e Griô, contadores de histórias africanos. Segundo Pereira (2007, p. 127) O griot consiste num cultivador de textualidades, que se desloca de um lugar para o outro (...) através de sua performance, enraizada em várias gerações e nutrida pelos vínculos familiares, tornou-se o agente responsável pela preservação e transmissão de esquemas de conhecimento, fatos históricos e vivências sociais que referendam.
4 Uma música conhecida de todos abriu caminho para a fala dos primeiros contadores de histórias. Uma concha, que tinha o papel simbólico de um objeto relacional 3, circulava pela Roda, passando de mão em mão, a espera de alguém que a segurasse para uma história contar. Integrando saberes, dezembro/2012. Foto: Marta Evelin. Uma visitante de Parnaíba foi a primeira a ocupar a cadeira do contador, uma cadeira reservada na roda para esse fim. Ela se lembrou do tempo em que vinha à praia da Pedra do Sal com seus familiares: Para vir pra Pedra do Sal tinha que passar dias aqui, porque era difícil pra se chegar, mas eu me lembro que eram as melhores férias, e os melhores momentos da minha vida... eu sinto muita saudade desse tempo, foi nessa praia 4. Sua história serviu como disparador da memória ou muleta da memória 5 para outros participantes acionarem suas lembranças, como a senhora Ana que relata: Nasci e me criei na pedra do sal, mais precisamente ali onde tem o maior coqueiro da Pedra do Sal e a minha infância simples muito pobre mais agente era feliz, meu pai era comprador de peixe a gente vivia de pegar fruta no mato: caju, murici, guajiru 6. 3 Termo utilizado por Ligia Clark para designar objetos que evoquem o lado sensitivo, relacionado a objetivos que se pretende alcançar, utilizado por ela em terapias. No caso, aqui descrito, a concha traz ao participante da Roda a presença viva do mar e do seu som, favorecendo a emersão de lembrançashistórias vividas nesse ambiente. 4 Depoimento de Else... Roda Griô na Pedra do Sal, dezembro de 2012. 5 Termo usado pelas pesquisadoras Olga Von Simon e Ana Lúcia Guedes-Pinto em suas pesquisas de campo para designarem os objetos que evocam de algum modo o passado e auxiliam os sujeitos no processo de rememoração. ( PINTO, 2008). 6 Depoimento de Ana... Roda Griô na Pedra do Sal, dezembro de 2012.
5 Alberti (2004) argumenta que os sujeitos re-significam as suas experiências e as reconstroem. E essa reconstrução se dá em função de os interlocutores aquele que narra e aquele que escuta estarem em relação com o outro. Numa Roda Griô, fatos inesperados podem acontecer, como o encontro de uma mesma história, vivenciada por duas pessoas presentes na roda, com versões diferentes ou complementares, sem que nenhuma das duas tivesse conhecimento de que a outra sabia do fato. Isso pode ser ilustrado com a narrativa da diretora da escola que fica na comunidade. Era noite uns sete horas, as meninas estavam tudo na sala de aula, e eu fiquei no pátio, aí uma criança entrou na escola, com uma saia antiga de tergal, e uma blusa antiga, uma criança loirinha, e a menina entrou, andou, foi na secretária, na sala da Sonia, e depois essa menina voltou, aí o motorista viu, e seguiu essa menina, e ela sumiu e o motorista ficou arrepiado 7. Amado (1995) atenta para o fato de que as narrativas rememorativas dos sujeitos e suas análises são entendidas como possíveis versões da realidade e não como verdades únicas e estáticas. Na mesma linha de raciocínio, Guedes-Pinto (2008) salienta que ao se reconstruir um dado evento, as várias versões que surgirem desse mesmo evento, não serão idênticas, mas partes de uma mesma narrativa que se complementa por quem as viveu. Essa perspectiva aponta para a memória individual e coletiva de uma comunidade, constituída em uma determinada época histórica, que é social. Sendo assim, as memórias de cada um são construídas no encontro com os seus vários outros, no instante da narrativa relatada. Lendas locais e histórias de assombração sempre aparecem em Rodas Griô, principalmente as contadas pelos mais velhos, como a que se segue: Todo mundo ia se deitar e umas horas da noite lá se vai grito no meio do mundo, os mais velhos dizia assim, aquilo é o gritador lá nos baixões, mas ninguém nunca viu, a gente só ouvia a voz, a figura a gente nunca viu 8. Guedes-Pinto (2008, p. 42) adverte que esse movimento entre o presente e o passado constitui a narrativa e, no caso de idosos, muitas vezes essa dinâmica demanda forças internas de cada um para manter-se firme em seu contar. 77 Depoimento de Ana Lúcia...Roda Griô na Pedra do Sal, dezembro de 2012. 8 Depoimento de...roda Griô na Pedra do Sal, dezembro de 2012.
6 A concha continuava a passar na Roda, impulsionada pelas melodias e pela voz da condutora, que puxava, daqui e dacolá, um fio de uma nova história, como uma rendeira a costurar. Outra história contada na Roda foi de Dona Conceição que relembra sobre as festividades na praia: Durante o festejo de Santo Antônio, muitas pessoas festejavam, havia participação em todas noites da trezena, quando terminava nas casas faziam mungunzá de milho, aluá e ainda aconteciam brincadeiras 9. Resgate de nova história entre os participantes, dezembro/2012. Foto: Marta Evelin. Outras histórias vieram como as da origem daquele lugar, curiosidade de um dos participantes, narrada por Jonas 10, mais um dos moradores locais: No início Pedra do Sal havia umas 15 casas ao redor do farol, por onde ficava o morador mais velho, próximo ao morro. Os primeiros moradores pertenciam ao pessoal de Severo, que era o Antonio Severo, João Severo, Angelo Vieira, Antonio Bernardino e o pessoal de Emília. Guedes-Pinto (2008, p. 34) salienta que ao narrar, os sujeitos optam por dizer uma ou outra coisa, tendo por referência o contexto social imediato de produção da narrativa e o interlocutor com quem falam. Alberti (2004) e Bosi (2003) argumentam que os sujeitos re-significam as suas experiências e as reconstroem. E essa reconstrução se dá em função de os interlocutores aquele que narra e aquele que escuta estarem em relação com o outro. 9 Depoimento de Conceição...Roda Griô na Pedra do Sal, dezembro de 2012. 10 Depoimento de Jonas...Roda Griô na Pedra do Sal, dezembro de 2012.
7 A noite havia chegado e as histórias galopavam a toda velocidade. O povo estava animado e nem ligava pro cair da noite. Pareciam viver um tempo diferente do vivido constantemente, um tempo de ouvir, de imaginar, de sonhar. O tempo de lembrar. O vento forte e o minguar da fogueira anunciavam que já era hora de parar, mesmo havendo ainda muitas histórias para contar. As pessoas começavam a se dispersar com a promessa de levar a prática da Roda Griô para a sua comunidade ou mesmo de participarem da próxima, já marcada, pelos integrantes da CIA, para a área dos cataventos, geradores de energia eólica, também na Pedra do Sal. O abraço de despedida e o desejo de um feliz ano novo marcaram o término desse encontro em busca de histórias e memórias, que como fala Pinto (2008) exige esforço de elaboração para tornar concreto, as experiências vividas por cada participante daquela teia, tecida a beira do mar. A música, do compositor Lulu Santos, deu voz aos sentimentos vividos: Nada do que foi será De novo do jeito que já foi um dia Tudo passa Tudo sempre passará A vida vem em ondas Como um mar Num indo e vindo infinito Tudo que se vê não é Igual ao que a gente Viu há um segundo Tudo muda o tempo todo No mundo Não adianta fugir Nem mentir Pra si mesmo agora Há tanta vida lá fora Aqui dentro sempre Nada do que foi será De novo do jeito Que já foi um dia Tudo passa Tudo sempre passará A vida vem em ondas Como um mar Num indo e vindo infinito
8 Tudo que se vê não é Igual ao que a gente Viu há um segundo Tudo muda o tempo todo No mundo Não adianta fugir Nem mentir pra si mesmo agora Há tanta vida lá fora Aqui dentro sempre A despedida da Roda Griô com a música de Lulu Santos, dezembro/2012. Foto: Marta Evelin. Os peixes que assavam na fogueira, enquanto as histórias eram contadas, foram estirados na mesa, acompanhados de farinha de puba. Alguns ficaram para saborear, outros foram embora, com certeza, mais aliviados, por terem compartilhado histórias e memórias, guardadas por muito tempo, que saíram de suas bocas e foram espalhadas pelo vento da Praia da Pedra do Sal. Quem sabe, elas cheguem em algum outro lugar... Referências:.ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004..AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História Oral. História, São Paulo, v. 14, pp.125-136, 1995.
9. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003..GUEDES-PINTO, Ana Lúcia et al. Memórias de Leitura e formação de professores. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2008..PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola: questões sobre culturas afrodescendentes e educação. São Paulo: Paulinas, 2007.