Nirtus Nirtus veio vindo com o tempo. Não tinha mãe. Não tinha pai. Não frequentou escolas. Nunca tinha ouvido falar na palavra amor. Nirtus apareceu sem aparecer direito. Qualquer cor era cor de Nirtus. Qualquer sexo era sexo para Nirtus. Nirtus não se identificava. Nada havia de coisa igual em Nirtus. Nirtus precisava de sentido. Nirtus não tinha sentido fácil. Não vinha de igrejas. Desconhecia o capital. Nirtus pensava fogo e respirava água. Comia ar e bebia terra. Nirtus era assim sem ser. Não se tinha paradeiro de Nirtus. Surgia e ressurgia conforme o dia. Nirtus seria uma mistura. Tudo seria Nirtus. Nada seria Nirtus. Nirtus não cabia em caixas. Nirtus não queimava no fogo. Nirtus não se explicava. 4
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Mar Nirtus mergulhou no mais profundo mar. Olhou ao redor e viu um peixe. Teve com ele a conversa de toda uma vida. Nirtus quis entender o mistério das águas do mar. O peixe tentou explicar. Nirtus compreendeu uma parte: aquela em que as águas eram limpas. Nirtus não entendeu a parte em que o mar era sujo. O peixe falou que o mar na sua origem era limpo e que sua sujeira tinha sido fruto da ignorância humana. Nirtus quis entender mais um pouco sobre a ignorância humana, então o peixe falou que era um assunto bem difícil de explicar em poucas palavras. Mas tentou. Nirtus ouviu aquilo e ficou perplexo. Caminhou por dentro das águas e tentou ficar quieto a fim de poder apreciar a beleza das pedras que pareciam dançar em meio à dinâmica intensa do mar de Netuno e Poseidon. 6
Casa Nirtus não via a casa do menino, então se aproximou mais. Só que lá não havia casa, apenas meninos. Então um menino dos muitos que havia explicou: existe pouca casa e muito menino. Há menino sem casa e casa sem menino. É assim mesmo. Há também pouco menino com muita casa e muito menino sem qualquer casa. Nirtus não entendeu por que era assim mesmo. O menino também não entendia. Só repetia o que repetia todo mundo todo dia. Nirtus desenhou na folha de papel uma casa e deu para o menino. Ele olhou, olhou, depois dobrou feito dobra num papel qualquer e foi tentar ganhar trocado na avenida. Nirtus sentou no meio da calçada e quis beber um pouco do raio de sol que batia bem dentro de sua dúvida: por que é assim mesmo? 7
Tempo Nirtus subiu no telhado da casa. Ouviu o som da respiração do homem que o acompanhava. Começou perguntando sobre a folha seca da árvore no quintal da casa pintada de azul e branco. Também quis entender o som do relógio de pulso. Não perdeu um só olhar e prestou atenção na voz e nos gestos de quem explicava. Nirtus subiu mais alto no telhado. Queria entender o quanto é bom ir bem alto. O céu cinzento e a chuva ameaçavam cair. Do telhado, Nirtus pulou em cima do muro, do muro pulou ao chão. O homem o acompanhou. Nirtus não queria parar de fazer aquilo. Aquilo era coisa boa. O homem fez um sinal de que as horas estavam indo embora. Nirtus desfez o sinal do homem. Correram pela rua e correram rápido. Nirtus e o homem estavam descalços. O homem chegou antes de Nirtus. Eles riram muito. O tempo não fazia diferença para o sorriso da brincadeira. 8
Liberdade De repente Nirtus viu a mulher querendo sair de dentro dela mesma. Nirtus também viu o homem querendo empurrar a mulher para dentro dela mesma outra vez. Nirtus não entendia o que o homem queria fazer com a mulher. A mulher tinha um olhar de quem não conseguia ser livre, e o homem tinha um olhar de quem não conseguia fazer a mulher ser livre. Não havia correntes. Mas Nirtus pensou que talvez um fosse corrente do outro. Nirtus sentiu uma coisa que só sentia quando não conseguia entender o que via. Olhou bem para aquelas duas criaturas humanas e observou que era medo o que sentiam. Houve hora em que o homem tentou sair de dentro dele e ir para longe da mulher, mas a mulher também não o deixava ir para longe dela. Era Nirtus quem via isso. Então respirou, pegou um punhado de terra e a libertou de suas mãos. 9
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Caixas Nirtus entendeu que no mundo tem caixa para tudo. Cada coisa, na sua caixa. Tem caixa que pode fazer coisas com outra. E tem caixa que não pode fazer. Quem decide se uma caixa pode falar com outra é quem as fabrica. Há uma fábrica de caixas, e delas o mundo é feito. Cada caixa possui uma coisa, e cada coisa é feita para uma determinada caixa. Uma vez, sem entender muito a lógica das caixas, Nirtus quis saber se já tinha existido alguma coisa sem caixa e alguma caixa onde não coubesse coisa alguma. Ninguém quis falar sobre isso com Nirtus. No entanto, ele nunca se esqueceu desta dúvida e sentença: Há caixa para tudo e tudo tem de ser encaixado. O sem-caixa fica desencaixado. Quem fica de fora não serve para nada no universo encaixotado e encaixotador. Uma vez levaram Nirtus para a matriz das fábricas das caixas. Disseram que lá deveria haver uma caixa feita só para ele. Nirtus não gostou muito da ideia, mas foi. Lá, não coube em nenhuma caixa. Quiseram fazer uma especialmente para ele. Nirtus rejeitou. Recebeu por isso uma cara bem feia. Não admitiam alguém sem encaixe. Chamaram vários especialistas, mas não conseguiram encaixotá-lo. Quiseram fazer um encaixotamento transversal, usado para aqueles que não cabem em qualquer caixa. Não houve acordo. Os especialistas deram um parecer negativo sobre a existência de Nirtus. Afirmaram: Alguém fora das caixas é um perigo, pois não se tem controle sobre ele. Nirtus ficou só ouvindo e olhando. Ele não queria o controle. Queria isto mesmo: o descontrole. 11