Redes de comunicação comunista durante a ditadura militar brasileira 34



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Transcrição:

Redes de comunicação comunista durante a ditadura militar brasileira 34 MÔNICA MOURÃO - Graduada em Comunicação Social Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2004. Mestra em Comunicação, Imagem e Som pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2009. Professora da Faculdade Cearense desde agosto de 2009. Resumo: Este artigo busca desvendar as redes de comunicação clandestinas desenvolvidas durante a ditadura militar brasileira, utilizando como estudo de caso o jornal A Classe Operária, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), de 1975 a 1979. Através de análises das edições do jornal e de entrevistas com filiados e ex-filiados ao partido, veremos como um grupo que divergia do regime militar pôde colocar suas idéias em circulação no país e no exterior. Palavras-chave: redes de comunicação, ditadura militar, Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Abstract: This paper aims to investigate the clandestine communication networks developed during the Brazilian military dictatorship. It was chosen A Classe Operária (The Worker Class), a Communist Party of Brazil s newspaper (1975-1979) as a case study. By analyzing the newspaper issues, and affiliated and ex-affiliated party interviews, we can discuss how a group that diverged from military dictatorship could spread its ideas in Brazil and other countries. Key-words: communication networks, military dictatorship, Communist Party of Brazil. Introdução Ao pesquisar o jornal A Classe Operária, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), impressionava-nos o fato de esse veículo não ter saído de circulação durante a década de 1970. Nesse período, o partido passou por uma dura clandestinidade: perdeu dezenas de 34 Revisão de artigo original apresentado no VII Encontro Nacional de História da Mídia em 2009. 126

militantes na Guerrilha do Araguaia e, depois, perseguido pelo regime militar também nas cidades, sofreu uma grande derrota (política e humana) no episódio conhecido como Massacre ou Chacina da Lapa. Nessa ocasião, em dezembro de 1976, foram presos sete dirigentes do partido, sendo que um deles, João Baptista Franco Drummond, morreu ao tentar escapar da cadeia, o que foi creditado pelo regime como morte por atropelamento na tentativa de não ser preso. Na mesma operação, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar foram assassinados pela repressão. Wladimir Pomar, filho de Pedro, também estava na casa e foi um dos sete presos. Ainda na prisão, desvinculou-se do PCdoB e veio, depois, a integrar o Partido dos Trabalhadores (PT) (POMAR, 2006). Apesar de quase ter sido desbaratado, o partido continuou produzindo seu órgão central, A Classe Operária. Nos acervos públicos do país, não há material disponível da primeira metade dos anos 1970, justamente período em que aconteceu a Guerrilha do Araguaia. Para chegar a essa informação, pesquisamos no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro; no Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); no Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (Amorj), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e na Biblioteca Nacional. Mas fontes garantem que ele não parou de circular, apenas ficou mais difícil para os militantes mantê-los guardados. A numeração das edições também revela que, mesmo restrita, a circulação desse veículo continuou. Em seleção feita por Wladimir Pomar, no livro Araguaia O Partido e a Guerrilha, há edições de 1969 até 1976, mas com uma lacuna de abril de 1972 a janeiro de 1975, justamente o período da guerrilha. Contudo, o último número de 1972 que Pomar apresenta consta como o nº 63 e a edição seguinte, de janeiro de 1975, é o n 93, o que dá indícios de que o jornal continuou sendo produzido. Acessando os acervos da Biblioteca Nacional, Amorj e AEL, pudemos consultar cerca de 50 edições do jornal de 1975 a 1979, quando a clandestinidade ainda se abatia fortemente sobre as organizações brasileiras de esquerda. A curiosidade de saber como esse jornal persistiu mesmo nessas condições, como era produzido e de que maneira chegava até seus leitores nos levou a buscar fontes orais, entrevistando pessoas que estiveram, de algum modo, envolvidas nesse processo. Devemos aqui problematizar a história oral, de modo a refletir sobre esse tipo de fonte, além de tentar reconstruir um mundo que ficou para trás, mas não está tão distante de nós. 127

Seus mortos ainda são desenterrados, seus parentes ainda clamam por justiça, uma justiça que significa, entre outros aspectos, reescrever a história, a partir da memória. Utilizamos as entrevistas realizadas com Carlos Azevedo, jornalista que atuou nos anos 1970 como colaborador do jornal A Classe Operária e que hoje não é mais filiado ao partido, mas participa da revista Retrato do Brasil, apoiada pelo PCdoB; Wladimir Pomar, filho de Pedro Pomar; e Bernardo Joffily, editor do portal Vermelho e jornalista do PCdoB enviado para a Albânia, onde atuou na Rádio Tirana, de 1975 a 1979. Também nos valemos de edições do jornal A Classe Operária de 1975 a 1979 35. O artigo está dividido em duas partes. Na primeira, discutimos as fontes utilizadas e sua relação com a memória. Na segunda, tentamos tecer as redes dessa comunicação clandestina. A escolha dos três entrevistados se deu a partir da posição diferenciada que cada um apresenta em relação ao processo de comunicação do partido e também em relação à própria política partidária. Wladimir Pomar, preso no mesmo episódio em que teve o pai assassinado, afastou-se do PCdoB e, mesmo ainda no partido, discordava da posição que se tornou hegemônica. Isso se reflete, por exemplo, nas críticas que ele faz à experiência de luta armada no Araguaia, considerada vitoriosa pelo partido. Pomar não atuou diretamente na comunicação do partido no período pesquisado, mas sim acompanhava o jornal do PCdoB, ao mesmo tempo em que tinha outras fontes de informação sobre os temas ali abordados, por ser um dos dirigentes do partido. Já Carlos Azevedo, além de militante era também jornalista e atuava na imprensa alternativa. Sua militância mistura-se com a profissão. Na rede de comunicação formada pelo jornal A Classe Operária, ele era um dos tecedores da difusão de informações. Em outra ponta dessa difusão, encontrava-se Bernardo Joffily. Ele locutava textos d A Classe Operária, junto com um pequeno grupo de brasileiros, na Albânia. Desse modo, a escolha dos três entrevistados é representativa do universo de que fazem parte. Todas as entrevistas foram realizadas pessoalmente, além de gravadas e transcritas pela própria autora. Carlos Azevedo concedeu entrevista em sua residência, na cidade de São 35 Todas as entrevistas foram realizadas em 2008 para a dissertação de mestrado em Comunicação defendida em junho de 2009. Além das que nos referimos aqui, também foi entrevistado o secretário de comunicação do partido, Altamiro Borges, que falou sobre as estratégias atuais de comunicação do PCdoB. 128

Paulo. Wladimir Pomar nos recebeu em seu escritório no Centro do Rio de Janeiro. Já Bernardo Joffily conversou conosco no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, quando retornava para São Paulo, onde mora. História oral e memória Beatriz Sarlo (2007), em suas reflexões sobre o tempo passado, faz-nos uma série de provocações. Uma delas diz respeito ao que ela chama de guinada subjetiva, a supervalorização de depoimentos orais de protagonistas e testemunhas dos acontecimentos. Na tentativa de pôr a memória em evidência e, a partir dela, fazer reivindicações políticas, os relatos feitos a pesquisadores, as biografias e autobiografias têm ganhado relevo como porta de acesso ao passado, desde as tentativas reconstituidoras das décadas de 1960 e 1970. Contudo, esses relatos também não merecem a desconfiança do pesquisador? Por que eles seriam mais verdadeiros do que os documentos escritos? Beatriz Sarlo (2007) defende que eles também são interpretáveis, o que não lhes tira a legitimidade e a relevância política. A dificuldade em interpretar as fontes orais advém de uma série de questões. Uma delas é que, como lembra Michael Pollak (1989), a história oral surgiu na perspectiva de reescrever a história contada pelos vencedores. Mudar o ponto de vista da história a partir da memória, ouvindo os vencidos e suas reivindicações. Como fazer isso interpretando ou confrontando as informações dos entrevistados? Como não trair o motivo principal de dar voz a esses atores, que seria justamente colocar os dissidentes em evidência? Trabalhar com história oral, especialmente em relação a episódios ainda disputados e conflituosos, requer uma habilidade para desconfiar da fonte sem prejudicar suas legítimas reivindicações. Contestar as fontes, contudo, não significa desacreditar delas, e sim considerar que toda memória e toda narrativa é manipulada, visto que a memória se materializa a partir do momento em que é narrada. E narrar é sempre uma seleção: iluminamos alguns aspectos e obscurecemos os demais. Além disso, o tempo só se torna tempo humano quando é narrado (Ricoeur, 1994). É desse modo que tanto textos como depoimentos orais constroem determinada memória acerca dos acontecimentos; realizam um enquadramento do passado na perspectiva de apontar para o futuro também sob o ângulo desejado. Assim, A Classe Operária, atuando como ritual comunicativo, fazendo os leitores compartilharem certa visão de mundo, também exerce o papel de construtora da memória 129

coletiva do grupo formado por esses leitores, militantes do partido. Segundo Halbwachs, a memória coletiva é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém (Halbwachs, 2006, p. 102). Essa memória coletiva, entretanto, não é única: existem tantas quantos forem os grupos humanos. A partir desse pensamento de Halbwachs, podemos refletir sobre o papel do jornal A Classe Operária de tecelão da memória dos militantes do PCdoB. Esse papel é fundamental para manter a coesão partidária, já que a memória é um elo que une grupos sociais. Contudo, Halbwachs também afirma que a memória coletiva varia a partir do ponto de vista dos componentes dos grupos. Assim, ele não insere claramente a questão da dominação, mas abre caminho para que outros autores discorram sobre isso. Para Michael Pollak (1989), por exemplo, nem todas as memórias coletivas de uma sociedade coexistem pacificamente, integrando-se sem dificuldades à memória nacional, que ele chama de enquadrante. As memórias de perseguidos políticos e suas redes familiares e de amizade, por exemplo costumam constituir memórias subterrâneas. Em desacordo com a memória nacional, os grupos portadores de memórias subterrâneas, em geral, silenciam até que mude o contexto político-social que os impede de manter uma posição diferente da memória enquadrante. No caso dos comunistas, durante os anos 1970, o reforço de determinado viés memorável era essencial para manter viva essa memória subterrânea, até que o fim do estado de exceção permitisse que ela aflorasse. Porém, a questão da dominação também está presente dentro desse grupo, não apenas na relação entre ele e o restante da sociedade. É assim que comemorar acontecimentos do passado do partido a escolha de que acontecimentos e como eles devem ser lembrados colabora para que a visão de mundo de determinado setor dentro do partido prevaleça, momentaneamente ou enquanto outro projeto memorável não for reivindicado ou não parecer mais legítimo do que o vigente. Percebemos essa disputa quando colocamos em confronto depoimentos de diferentes militantes e ex-militantes do partido com os textos do jornal A Classe Operária e também entre eles mesmos. 130

Disputas de memórias e redes de comunicação Um exemplo de disputa é a memória dos militantes e ex-militantes comunistas acerca da atuação do jornal em relação à Guerrilha do Araguaia. Em 1976, A Classe publicou o seguinte texto sobre a guerrilha: 12 de abril assinala mais um aniversário do início da resistência armada do sul do Pará. Em 1972, nessa data, tropas do Exército, Marinha, Aeronáutica e Polícia Militar de Goiás e do Pará, numa vasta operação, atacaram moradores da região do Araguaia. Estes, que desde há muito vinham lutando contra os grileiros e a violência policial, não se deixaram atemorizar. Organizaram-se em grupos armados para defender suas vidas, enfrentaram corajosamente a ditadura. Com seu denodo escreveram uma das mais belas páginas das lutas populares do Brasil. [...] A bandeira que levantaram continua no alto. Mesmo que temporariamente a guerrilha haja retrocedido, os ideais que encerra estão bem vivos e atuantes na consciência dos lavradores, do campesinato de todo o país, dos patriotas e democratas que não se sujeitam ao regime opressor e sanguinário dos generais vende-pátria. A heróica resistência dos moradores do sul do Pará é um chamamento vigoroso às populações abandonadas e perseguidas do interior brasileiro, às massas populares que sofrem nas cidades, para se erguerem na luta decidida contra os opressores e traidores da nação (A Classe Operária, abril de 1976, nº 105. In: Wladimir Pomar, 1980, p. 246-247). Percebemos aqui uma exaltação da guerrilha, além da concepção de que ela constituiu um movimento vitorioso. Esse tipo de texto era comum no jornal A Classe Operária mesmo depois do fim do movimento guerrilheiro, o que aumentava a curiosidade sobre como se dava o fluxo de informações, como eram formadas as redes de comunicação do jornal. De que maneira se sabia do que acontecia no Araguaia? A exaltação se dava por falta de conhecimento sobre a situação na região ou era uma decisão política de enaltecimento de um acontecimento passado, com vistas a deixar ao futuro uma imagem de sucesso? Carlos Azevedo e Wladimir Pomar divergem com relação a essas questões. As notícias da Guerrilha do Araguaia circularam a partir de 73, né? A partir do primeiro ataque do Exército em 72, a gente tinha muito pouca informação. Havia aqueles comunicados das Forças... Forga... Forças Guerrilheira do Araguaia. Forças organizadas... sei lá. Então a gente reproduzia esses comunicados. Dessa forma, esses comunicados ficaram muito conhecidos, foram divulgados de todas as 131

formas, não pela imprensa, mas em boletim, em jornaizinhos clandestinos no Brasil e no exterior. E quem produzia os comunicados das Forga mesmo? Foram os próprios dirigentes que estavam lá no Araguaia. Eu acho que o Amazonas, quando teve o primeiro ataque, ele saiu do Araguaia e provavelmente terá sido ele que produziu algum material. E também os materiais produzidos pelo Grabois, que tinha ficado lá na região. E também pelo dirigente militar, como era o nome dele? Esqueci. Foi assassinado no Massacre da Lapa, que também ele fazia os comunicados. Mas foram poucos os comunicados. Ângelo Arroyo? O Arroyo, é. Exatamente. Então, na minha opinião, isso é a minha opinião, foram eles que elaboraram esse material, eles que mandaram, etc, e depois ficou um tempo muito grande de silêncio porque... Aí a gente fazia material com base nas poucas coisas que saíram na imprensa. O jornal O Estado de S. Paulo publicou uma matéria, da maneira mais surpreendente, em 72, sobre aquele ataque 36. E ali então a partir dali a gente ficou fazendo outro material. [...] Mas a gente não tinha material assim para fazer a divulgação com freqüência da Guerrilha do Araguaia. Depois, como ela foi cercada, então se perdeu a fonte de dentro dela, o que se sabia era de fora. Se fez muita propaganda dela, mas não com informações que viessem de lá. Porque continuou sendo publicada muita coisa... Sim, mas eram matérias relativas aos movimentos que se percebiam, de tropas, etc, mas não... Eu não sei, eu pessoalmente não sou bem informado sobre isso. Eu acho que não saiu muito mais informação de dentro da guerrilha para a gente poder trabalhar esse material, fazer a comunicação dele, entendeu? Então saía muito uma exaltação dos guerrilheiros, quando o partido foi decidindo divulgar quem é que tava lá, justamente para tentar preservar a vida deles (Carlos Azevedo, 07 de outubro de 2008). Podemos notar que, para Azevedo, o fato de os textos sobre a Guerrilha do Araguaia não se basearem em informações de pessoas do partido que estavam na região não constitui um problema. Para ele, era natural e até positiva a exaltação dos guerrilheiros, além de ser evidente que não se tratavam de textos baseados em fatos, o que não era nenhum transtorno. Já Wladimir Pomar pensa diferente. O senhor acompanhava as notícias pela Rádio Tirana, Rádio Pequim? Às vezes. Ou isso não era costume? Não, eu procurava me localizar mais na realidade. Uma ou outra vez, eu procurava. E eu ficava muito espantado com as notícias sobre o Araguaia, não batia com aquilo que eu sabia. 36 O Estado de S. Paulo publicou, em outubro de 1972, a única matéria sobre a Guerrilha do Araguaia que foi veiculada na grande mídia no período em que o conflito armado acontecia. 132

Que o senhor sabia através de quê? Ah, pelas informações que a gente tinha, informações reais, né? Da situação que eu conhecia. Eu conhecia a região, eu sabia mais ou menos as dificuldades. Sabia das coisas que não iam dar certo. Não havia experiência nenhuma no mundo de uma luta guerrilheira que se desenvolveu sem base política. Isso daí não acontece, é ilusão pensar que um grupo de 60 guerrilheiros mal treinados, porque o pessoal tinha sido mal treinado, poderia suportar uma avalanche igual à que ocorreu. O caso da primeira campanha foi um caso excepcional. Então o pessoal acreditou que tinha tido uma grande vitória, mas não era vitória. Botaram recrutas, enquanto se preparavam para fazer uma ofensiva mais concentrada, entende? Nesse momento, o senhor tinha noção de quem era que passava essas informações para o exterior? Não, primeiro, esse era um problema sério, porque tudo o que era dito no exterior, eu sabia que nós não tínhamos contato com a guerrilha. A guerrilha, na realidade, ficou sem contato com o Comitê Central. Não só porque foi atacada, mas porque também o responsável pelo contato com a guerrilha, que era o [Carlos] Danielli, ele tinha sido assassinado. Então houve um corte brutal, nós não sabíamos o que acontecia. Isso a partir de quando? Já desde o começo. Desde o começo houve um corte brutal, nós não tivemos idéia. A relação do partido com a guerrilha foi totalmente cortada. Não tinha nem como ele dar apoio, não tinha como ele mandar gente, não tinha coisa nenhuma. Então tudo o que saía no exterior era gerado na cabeça de algumas pessoas que contavam notícias como se fossem verdadeiras. Você pode até justificar, era uma forma de manter aceso o debate público que tava existindo uma guerrilha, etc e tal, mas não tinha nada a ver com a realidade. Era tudo literatura. Pura literatura. E era o que acontecia também no jornal A Classe Operária? Não, no jornal A Classe Operária era diferente. Era diferente. O que era produzido, principalmente a partir de 1974, começa a ter que se enquadrar um pouco no processo de discussão que estava em curso. O texto Gloriosa jornada do Araguaia 37, aquilo foi coisa do [João] Amazonas, não correspondia... E aquilo deu depois uma bruta discussão porque não tinha nada a ver com a discussão que tinha que sido feita. Uma coisa era tentar salvar o espírito de luta, do pessoal que morreu, o heroísmo, então esse é um aspecto complicado no processo de avaliação. Você não pode negar a dedicação, o desprendimento dos que foram para lá. Agora, transformar isso numa vitória que não existiu é um complicador. Essa operação é difícil. Você ao mesmo tempo salvar a dignidade, a perseverança, o desprendimento dos que foram, um heroísmo brutal, enorme, mas foi derrota. Não dá para dizer que não foi derrota. Esse era um complicador até para nós que achávamos que aquilo lá tinha sido um erro. Como, na avaliação crítica, você salvar a dignidade dos que foram, dos que morreram. Esse é sempre um complicador na derrota (Wladimir Pomar, 27 de outubro de 2008). Temos aqui uma visão diferente daquela de Azevedo, embora encontremos pontos em comum. Para Pomar, houve uma derrota e o partido falhou em não admiti-la, mas concorda 37 Documento de exaltação à guerrilha publicado n A Classe Operária. 133

com Azevedo no que diz respeito à exaltação dos guerrilheiros, embora a problematize, o que Azevedo não faz. Relembrando Halbwachs ao tratar de memória coletiva, o autor observa que essa memória varia de acordo com a posição da pessoa no grupo. Carlos Azevedo, embora tenha se desfiliado do partido, ainda hoje atua em conjunto com outros militantes, em projetos de comunicação apoiados pelo PCdoB. Wladimir Pomar foi preso na mesma ocasião em que seu pai, Pedro Pomar, foi assassinado, saindo de uma reunião do partido na Lapa, em São Paulo. Ainda preso, o partido o expulsou e, depois, ele ingressou no Partido dos Trabalhadores (PT). Portanto, trata-se de pontos de vista radicalmente distintos (Pomar, 2006). Mas além de questões relativas à memória, os trechos das entrevistas citados acima nos dão pistas das redes de comunicação formadas em torno do jornal A Classe Operária nos anos 1970. O processo de comunicação sempre envolveu discussão e sociabilidade, segundo Robert Darnton, e não é uma simples questão de mensagens transmitidas numa difusão linear para receptores passivos; mas sim um processo de trabalho e assimilação das informações em grupos, o que implica a criação de uma consciência coletiva ou opinião pública (Darnton, 1998). Pensar a comunicação como um processo que envolve sociabilidade dá relevância à formação de redes comunicativas, ao público, possibilitando que se compreenda o jornal como instrumento que reforça e amplifica sentimentos ou ideais coletivos. A partir da pesquisa de Robert Darnton (1998) sobre os livros proibidos na França prérevolucionária, pode-se pensar na formação do público, na interação entre diferentes meios de comunicação e na criação de redes comunicativas. Essas redes seriam cheias de imbricamentos entre quem produz, quem lê, onde isso acontece, as influências dos leitores sobre os autores e dos chamados bruits públiques ou seja, os rumores. Além de evitar um pensamento de transmissão linear de informações, pressupõem-se leitores ativos e a formação de um grupo social somente possível através da comunicação. Esse grupo, que congrega pessoas de diferentes ocupações e classes sociais, seria o público, unido através das discussões em torno de histórias publicadas e ditas acerca do rei e de sua corte: uma nova formação social desenvolvida no século XVIII (Darnton, 1998). 134

Assim, voltando às entrevistas, podemos extrair algumas palavras e expressões que nos ajudarão a tecer as redes comunicativas d A Classe: comunicados das Forga, jornaizinhos coletivos no Brasil e no exterior, imprensa, O Estado de S. Paulo, notícias como se fossem verdadeiras, literatura. A partir daí, podemos deduzir que, a partir de informações dos comunicados das Forga e da imprensa, como no caso de matéria d O Estado de S. Paulo, eram produzidos jornais que circulavam no exterior e no Brasil, veiculando notícias que eram vistas por alguns como pura literatura. Mas a rede comunicativa não era assim tão esquemática. Além disso, a dúvida em como se dava esse processo é marcante, como veremos a seguir: Mas o senhor sabe dizer se o jornal era feito por esse grupo [do João Amazonas]? Não, isso daí eu não tinha mais conhecimento. Quem não viveu o período tem dificuldade às vezes de entender como é que a coisa funcionava. Era complicado, do ponto de vista de segurança, extremamente complicado. Eu me salvei, em certa medida, de muitas coisas, porque eu não dizia para ninguém nem onde eu estava nem o que eu estava fazendo. Não tinha condição de as pessoas saberem ao certo (Wladimir Pomar, 07 de outubro de 2008). Já Carlos Azevedo sempre que fala sobre a elaboração d A Classe Operária, destaca que pode estar equivocado, porque só tem certeza da parte que ele mesmo fazia, sem ter noção do conjunto. Assim, as memórias são fragmentadas pela clandestinidade. Mas, juntando esses fragmentos, conseguimos esboçar uma rede de comunicação que envolve dirigentes e militantes do PCdoB, jornalistas/militantes 38, o jornal e rádios da China e da Albânia. Esses eram os dois países comunistas com os quais o PCdoB mantinha contato. Com as dificuldades de produção e distribuição d A Classe Operária devido à clandestinidade, textos que eram produzidos para esse jornal eram enviados para as rádios dos países amigos. Carlos Azevedo acredita que eles chegavam até lá através de exilados ou de entidades de países democráticos. Nesse período mais difícil, o jornal era mandado pela direção para a Albânia, era lido na Rádio Tirana, era gravado por militantes pelo país afora e era impresso em vários lugares. É por isso que você encontra exemplares de diferentes tipos. O cara em São Paulo imprimia aqui; aí na Bahia, outro pessoal; no Nordeste, outro pessoal, entendeu? Então era uma maneira, à medida que a Rádio Tirana divulgava, nós gravávamos, eu gravei mesmo muitas coisas, isso aqui são artigos da Classe Operária que eu gravava, então são matérias da Classe Operária. Tá aqui, ó [mostra 38 Tanto Wladimir Pomar quanto Carlos Azevedo consideram que as atividades de jornalista e de militante, no fundo, eram uma só. 135

sua pasta com papéis e jornais]: Evolução na luta contra a ditadura, artigo, Classe Operária, 122, de fevereiro de 78. Então o quê que eu fazia? Eu ouvia a rádio Tirana, gravava, tirava do gravador na máquina de escrever em muitas cópias, aí punha no correio, mandava para outras pessoas e para algumas pessoas que imprimiam. Inclusive eu tava dizendo outro dia conversando com o Walter Sorrentino (conhece o Walter Sorrentino? Ele é secretário de organização do PCdoB hoje, pertence ao birô político). Ele disse: eu não sabia, recebia essas páginas, e a gente imprimia e distribuía sem saber que era de você. Então essa é que era a forma de fazer, porque era clandestino, então por isso que você encontra formatos diferentes (Carlos Azevedo, 27 de outubro de 2008). Importante ressaltar que Carlos Azevedo fazia essa atividade sem ter idéia de como o jornal era produzido, como chegava à China e à Albânia nem como era reproduzido depois. Quando fazia esse trabalho, ele já vivia na total clandestinidade e não tinha mais contato com seu dirigente direto e, por conseguinte, com o partido. Bernardo Joffily, atualmente editor do portal Vermelho, esteve na Albânia durante cinco anos, de 1974 a 1979, e realizou uma função complementar à de Azevedo nessa rede comunicativa clandestina. Ele explica como era o seu trabalho e o de outros brasileiros do PCdoB que estiveram na Albânia socialista: Então, a Albânia, socialista na época, tinha uma programação em línguas estrangeiras, em 16 línguas estrangeiras, e para o Brasil tinha uma programação de uma hora. Normalmente éramos quatro brasileiros, dois casais de jornalistas, jornalistas nem sempre com diploma, mas com função jornalística. [...] Teve várias gerações, começou antes de mim, acho que em 68, parece, foi a primeira transmissão em português, e foi até 1990. Então foram várias, deve ter tido umas duas dúzias de casais aí do PCdoB que foram lá. Eu e a minha mulher, Olívia Rangel, trabalhamos lá de 74 até 79. [...] Então, uma parte [da programação brasileira da Rádio Tirana] falava da Albânia, uma parte eram notícias internacionais, um noticiário variado e tal, e uma parte eram notícias e comentários sobre o Brasil, que eram escritos por nós lá na Rádio Tirana, e nós traduzíamos também, nós locutávamos, o conteúdo do jornal A Classe Operária. Praticamente... Praticamente não, integralmente todo o conteúdo e era talvez o principal modo de os brasileiros receberem o jornal, porque a circulação de um jornal de papel nas condições da ditadura era muito difícil (Bernardo Joffily, 24 de novembro de 2008). Por outro lado, A Classe trazia em suas edições um quadro com os seguintes dizeres: Todos os dias, em Português ou Ouça diariamente e as informações de horário e 136

freqüência das rádios. Depois de o partido ter rompido com a China no final da década de 1970, os quadros passaram a ter informações apenas da rádio Tirana 39. Figura 01: A Classe Operária, nº 109, 05 de setembro de 1976, p. 18. Desse modo, oralidade e escrita faziam parte dessa rede. Mas se trata de uma oralidade nos moldes da linguagem escrita, visto que era a locução de um jornal impresso feita para que ele pudesse ser reproduzido novamente através do meio impresso. Toda essa teia era necessária para que informações proibidas pudessem circular, mesmo que envolvendo um público restrito e que, em sua maioria, já coadunava com a mesma visão de mundo do jornal. A Classe Operária, em conjunto com as rádios Tirana e Pequim era, assim, um veículo de coesão do grupo dos comunistas, visando a uni-los, através das redes de comunicação, em torno de um mesmo projeto memorável. 39 Uma das razões do rompimento seria, inclusive, a falta de apoio da China na divulgação da Guerrilha do Araguaia. 137

Considerações finais O presente artigo faz parte de um esforço de compreensão da comunicação comunista num dos períodos de clandestinidade: a ditadura militar brasileira. Fruto de uma dissertação de mestrado em que o tema é apenas tangenciado, essa é a primeira tentativa de aprofundamento da questão que, sabemos, ainda precisa de outras fontes orais que possam complementar ou divergir daquelas aqui apresentadas. No entanto, acreditamos que, mesmo inicial, essa pesquisa é significativa para iluminar um aspecto pouco estudado da história da comunicação brasileira: a comunicação partidária, especialmente a dos comunistas dissidentes do PCdoB. Através dos depoimentos e dos documentos coletados e analisados, podemos desvendar como funcionava uma das redes de comunicação clandestina durante a ditadura militar brasileira. Importante lembrar que, assim como no início da imprensa em nosso país, a produção conjunta com grupos no exterior era fundamental para manter um jornal proibido de circular no país. Se essa estratégia de mantém, outras são criadas, como a ligação entre jornais de partido e jornais alternativos. Além disso, podemos perceber o quanto a própria estrutura partidária colabora para a organização da comunicação e o quanto a identidade comunista é identificada com a identidade jornalística: ambas encarnadas em guerreiros incansáveis na busca da verdade e em prol do povo. Mas essas são questões para uma próxima pesquisa. 138

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A CLASSE OPERÁRIA, nº 109, 05 de setembro de 1976. DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos na França pré-revolucionária. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Massacre na Lapa: como o Exército liquidou o Comitê Central do PCdoB São Paulo, 1976. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2006. POMAR, Wladimir. Araguaia: o Partido e a Guerrilha. São Paulo: Brasil Debates, 1980. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. vol. 1. Campinas: Papirus, 1994. SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. 139