CRÍTICA TEXTUAL: COMPROMISSO COM A PRESERVAÇÃO E TRANSMISSÃO FIEL DOS TEXTOS Ânderson Rodrigues Marins (UFF) andermarins@hotmail.com É notória a atual importância dos intelectuais empenhados na conservação da integridade da literatura nacional. Em síntese, o grau de credibilidade que se confere àqueles que se dedicam, aequo animo, a Crítica Textual, deve-se pelo fato de assumirem o compromisso com a preservação e transmissão fiel dos textos como ponto principal. Conclua-se, pois, que neste artigo buscaremos refletir, de modo conciso, acerca dos seus objetos, métodos, bem como de suas finalidades e edições críticas. O OBJETO, O MÉTODO, AS FINALIDADES O Prof. Maximiano de Carvalho e Silva (2005, p. 131), eminente filólogo e pesquisador, diz que: A Crítica Textual, com seu método rigoroso de investigação histórico-cultural e genética, toma os textos como expressões da cultura pessoal ou social, com as preocupações fundamentais de averiguar a autenticidade dos mesmos e a fidedignidade da sua transmissão através do tempo, e de cuidar de interpretá-los, prepará-los e reproduzi-los em edições que se identifiquem ou se aproximem o mais possível da vontade dos autores ou dos testemunhos primitivos de que temos conhecimento. Várias são as ciências que utilizam o texto como objeto material comum, e pode-se mencionar, a título de exemplo, a História, a Linguística, a Teoria da Literatura e a própria Crítica Textual. Porém, o que distingue esta das demais é justamente o fato de ela encarar o objeto material como objeto formal distinto, isto é, sob um aspecto que lhe interessa de modo especial, tendo em vista obter resultados bem diversos para a consecução das suas finalidades (Cf. Carvalho e Silva, 1994, p. 57). Acerca do que representa o labor filológico e o objeto da Crítica Textual, leiamos as palavras do prof. Bruno Bassetto: O trabalho filológico tem por objetivo a reconstituição de um texto,
total ou parcial, ou a determinação e o esclarecimento de algum aspecto relevante a ele relacionado. Estende-se desde a crítica textual, cujo objeto é o próprio texto, até as questões histórico-literárias, como a autoria, a autenticidade, a datação etc., e o estudo e a exegese do pormenor (Bassetto, 2001, p. 43). Com efeito, preservar a integridade dos documentos importantes da nossa cultura e da nossa literatura, restabelecer os monumentos literários e históricos nacionais na sua originalidade e, ainda, conservá-los isentos das corrupções neles eventualmente introduzidas na sucessão dos processos de transmissão editorial pela qual passou são, entre outros, objetivos a que se inclina o crítico textual. Autores como Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava se queixavam das modificações que revisores despreparados haviam introduzido em seus textos, na suposição de que eram erros ou impropriedades de linguagem a serem corrigidas (cf. Spaggiari; Perugi, 2004, p. 193-4). Em artigo publicado no Jornal do Brasil, o Prof. Evanildo Bechara (2006) declara: A pouca ou quase nenhuma preocupação de editores, às vezes bem intencionados, mas sem a devida preparação técnica, tem permitido correr textos da nossa literatura, dos seus inícios à atualidade, que, pela infidelidade da lição e pela corrupção do original, prejudicam o trabalho da crítica literária, do historiador da literatura, do filólogo, do lingüista, do historiador. A Crítica Textual, ab origine, (data de muito antes do início da Era Cristã, portanto de gênese bastante remota) se dedica a preservar a cultura dos povos através de suas línguas. No passar dos a- nos a ideia basilar de preservação e transmissão fiel dos textos foi-se solidificando, nascendo a partir daí maior preocupação com os escritos medievais, com os textos sagrados de várias religiões e do mesmo modo com textos literários da antiguidade greco-latina. É inegável que a ciência em questão, aplicada à edição de textos históricos, científicos e literários, é uma das atividades filológicas de maior impacto na preservação da cultura dos povos através da preparação desses documentos para a divulgação impressa, digital ou virtual. Um dos pontos culminantes das atividades filológicas é a pre- 2
paração de edições críticas. No que diz respeito às suas partes essenciais (Cf. ibidem, p. 60) pode-se, resumidamente, citar: a reprodução do texto tomado como base da edição (texto de base, ou texto-base, ou texto crítico) transcrito rigorosamente segundo critérios previamente estabelecidos, um cuidadoso registro crítico-filológico, que propicie ao leitor a oportunidade de avaliar todo o trabalho empreendido (com a indicação de dados histórico-culturais e bibliográficos, dos critérios adotados na preparação do texto e da edição, e de outros elementos necessários à compreensão global do que foi feito). Há que se levar em conta que na tradição ou transmissão de um texto existem, via de regra, erros de toda espécie, a partir dos chamados erros psicológicos ou decorrentes da interferência psicológica no próprio ato da leitura, até se chegar a erros derivados da própria decifração do manuscrito ou de sua transcrição mecânica. Considere-se que mesmo oriunda de todo rigor científico-filológico, a e- dição crítica é passível de falhas. Ainda assim, parece inequívoco, hoje, que a perfeição segue como seu objetivo maior. (Cf. Silva, 2006, p. 80-2) ACERCA DE EDIÇÕES CRÍTICAS Em entrevista concedida à Revista Convergência Lusíada (2005), os Professores Doutores Ofélia de Paiva Monteiro da Universidade de Coimbra, responsável pela edição da obra de Almeida Garrett, Carlos Reis da Universidade de Coimbra, pela de Eça de Queirós e Ivo Castro da Universidade de Lisboa, responsável pela edição da obra de Fernando Pessoa, dão testemunho de sua experiência em trabalhar na preparação de edições críticas. Segundo o Professor Ivo Castro 1, o objetivo central de qualquer edição crítica é dar a ler um texto na forma mais próxima possível daquilo que o autor escreveu. Para a Professora Ofélia Monteiro uma edição crítica visa, sobretudo, fornecer aos estudiosos textos rigorosamente estabelecidos a partir da última por vezes, única lição conhecida da responsabilidade do autor e completa expondo que: 1 Transcrever-se-á parte da entrevista dos três especialistas concedida à Revista Convergência Lusíada. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, nº 21, 2005, p. 345-351. 3
Uma edição assim concebida torna-se um produtivo instrumento de trabalho lingüístico, literário, cultural pela fidedignidade do texto estabelecido e pela reconstituição que eventualmente permite do seu percurso genético, de alto rendimento, muitas vezes, para a avaliação do itinerário estético ou ideológico do autor. No caso do Professor Carlos Reis: No que respeita à edição crítica que coordeno, os objectivos que a inspiram parecem-me claros: trata-se, nuns casos, de incutir a autenticidade possível a textos que o autor publicou em vida e que sucessivas (e descuidadas) edições foram desfigurando. No que tange às eventuais dificuldades na elaboração da edição crítica, cada um expõe seu caso da seguinte maneira, a começar pelo Dr. Ivo Castro: A obra de Fernando Pessoa reside em milhares de originais, contendo textos completos, fragmentários ou em embriões, que na sua maior parte não foram publicados pelo autor. Foi preciso, portanto, imaginar como ele os teria publicado (suspeitando, em mais de um caso, que talvez nunca o tivesse feito). Em segundo lugar, foi preciso estabelecer as relações entre os vários originais do mesmo texto, o que obrigou a fazer a catalogação prévia das partes do espólio implicadas (toda a poesia portuguesa e inglesa, prosa filosófica de A. Moura, escritos sobre génio e loucura, alguma correspondência). Mas a maior de todas as dificuldades talvez seja a decifração da escrita de Pessoa. De acordo com a Dra. Ofélia Monteiro: Uma das maiores provém do número avultado das lições que, no caso de muitos textos, se torna necessário coligir e confrontar: algumas das obras garrettianas conheceram, efectivamente, versões muito separadas no tempo é o caso de Catão, Mérope, D. Branca que constituem transformadoras reescritas; a exigência estilística de Garrett levava-o, a- lém disso, a alterar muito o que lhe saía das mãos, daí resultando a frequente multiplicação dos manuscritos e a introdução, nestes, de numerosíssimas correcções (Maria Helena Santana, responsável da recente edição crítica de O Arco de Sant Ana, preparou-a a partir do confronto das duas edições que o romance teve em vida de Garrett, por ele revistas, e dos quatro manuscritos que lhes correspondem dois para cada um dos dois volumes que essas edições comportaram -, guardados no precioso espólio do escritor conservado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra). Para o Dr. Carlos Reis: Daqui deduz-se uma dificuldade que cabe ao coordenador superar: a continuidade que o projecto deve ter, entendida como processo metodologicamente coerente, embora com ajustamentos a cada caso concreto. A 4
preparação e adopção de uma norma editorial trabalho que precedeu a preparação das edições críticas foi (e continua a ser) um factor determinante para que o projecto se desenvolvesse com a coerência desejada. Da precisão dessas atividades resulta, ipso facto, a reconstituição do texto às versões das edições fidedignas, ou seja, a forma mais próxima que recebera do próprio autor, livre de deturpações provenientes de maus revisores ou intromissão indevida de revisores sem adequada formação filológica que se julgam ainda hoje com o direito de retificar o que consideram inaceitável nas lições autênticas às quais têm de recorrer (Cf. Carvalho e Silva, 2005, p. 133). Diga-se, por fim, que muito contribui para o reconhecimento da importância da Crítica Textual o conhecimento do conceito, objeto, método e finalidade da ciência e das numerosas atividades a que ela se inclina. E não obstante enfrente lamentável descaso até mesmo de estudiosos de áreas afins, ainda assim seguirá desempenhando, cum laude, papel fundamental na restauração daquilo que fez e sempre fará parte de nosso patrimônio cultural e intelectual. BIBLIOGRAFIA BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica. São Paulo: Edusp, 2001, p. 43-62. BECHARA, Evanildo. Caminhos abertos pela crítica textual. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 de junho de 2006, Ano 116, nº 81, Caderno B, p. 2. CARVALHO E SILVA, Maximiano de. Crítica Textual: Conceito Objeto Finalidades. Confluência: Revista do Instituto de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, nº 7, 1º semestre de 1994.. Crítica Textual matéria básica na formação dos pesquisadores e professores de Letras. Confluência: Revista do Instituto de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, nº 29 e 30), 1º e 2º semestres de 2005. SILVA, José Pereira da. Elementos de teoria e prática da edição crítica. In: Cadernos do CNLF. Rio de Janeiro: CIFEFIL, Vol. X, Nº. 02, 2006, p. 63-84. 5
SPAGGIARI, Barbara; PERUGI, Maurizio. Fundamentos de crítica textual: história, metodologia, exercícios. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. 6