O presidente do Incra "A terra continua sendo o meu fio terra Rolf Hackbart Introdução Conheci o Rof Hackbart nos jogos de basquete, no Morro do Espelho, em São Leopoldo. Logo comecei a convidá-lo para ajudar-me nas análises de conjuntura que fazíamos regularmente, em sala de aula, na Escola Superior de Teologia. Concordávamos com Karl Barth quando diz que os cristãos devem levar a Bíblia em uma das mãos e o jornal na outra mão, ou seja, que devem conhecer o terreno onde querem semear o Evangelho. Depois, os nossos caminhos separaram-se, até a realização de um seminário internacional sobre o uso da terra e dos solos, patrocinado pela Federação Luterana Mundial, que organizamos em Daltro Filho, no interior de Imigrante. Fui procurá-lo no CAMP Centro de Assessoramento Multiprofissional, para ajudar-nos como palestrante. Anos depois, fui saudá-lo em Teutônia, quando acompanhou o governador Olívio Dutra, em visita à CERTEL, na função de Diretor do BRDE Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul. Em princípios de 2010, levei um grupo de agricultores alemães ao seu escritório, em Brasília, e pedi que explicasse aos visitantes, agora como presidente do INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, a política do Governo Brasileiro para a terra. Naquela oportunidade, eu avisei o Rolf que pretendia publicar a sua história nesse livro. ********** Meus antepassados vieram ao Brasil, porque não encontraram
oportunidades de prosperar na Alemanha. Havia uma grande sobra populacional no campo, e a cidade não oferecia empregos suficientes. Sem recursos para comprar terra, foram atraídos pelos agentes das colonizadoras brasileiras que ofereciam terra fértil e barata. Faço parte da quarta geração de descendentes desses imigrantes. Meus parentes vieram da região de Berlim e tomaram rumos diferentes nesse lado do Atlântico. Alguns se radicaram no Estado do Espírito Santo e outros em Santa Catarina. Houve quem foi morar na Argentina, e os meus bisavós se estabeleceram em Morro Redondo, na região de Pelotas. Lembro-me dos meus avós como pequenos agricultores familiares. Produziam alimentos diversos. Tinham algumas vacas leiteiras, alguns porcos, aves soltas no pátio. Plantavam aipim e batata doce, feijão preto e batata inglesa, grãos e hortaliças. Os pátios estavam cobertos de fruteiras e não faltavam os canteiros de flores. Também os meus pais iniciaram como agricultores familiares. O trabalho era duro e exigia pontualidade, mas sempre encontravam espaços para atuar na vida comunitária e nas promoções culturais da localidade. Eram evangélicos de confissão luterana e participavam assiduamente nas celebrações religiosas e na edificação da comunidade eclesial. Quando deixaram o ramo da agricultura familiar, continuaram a cultivar, no terreno em volta da casa, muitas frutas, verduras e legumes, chás e flores, além do feijão preto e das batatinhas para consumo próprio. Mesmo atuando em outras profissões, continuaram a valorizar a terra e cultivavam cada cantinho do seu terreno. Meu pai tornou-se chapeador em oficina mecânica, até que a doença fez que mudasse de ramo mais uma vez e abrisse um negócio com tecidos. Minha mãe foi professora em escola municipal e dava aulas particulares de língua alemã. Tenho uma era que nasceu com lesão cerebral e um irmão, técnico em
telecomunicação, que mora em Porto Alegre. Estou casado com Yvone e temos os lindos e queridos filhos Pedro e Flávia. Yvone é militante dos direitos humanos e atua na defesa do meio ambiente. Meus pais contavam-me histórias tristes sobre a forte perseguição à cultura alemã, não apenas durante a duas grandes guerras, mas também durante a Campanha de Nacionalização, iniciada em 1938. Foi um projeto político do Estado Novo, de Getúlio Vargas, que decretou uma série de medidas ditatoriais, para diminuir a influência das comunidades de imigrantes e forçar a sua integração. As hostilidades prosseguiam depois do término da Segunda Grande Guerra, tanto que eu desejava, nos meus tempos de criança, ter olhos escuros e cabelos pretos, para ser poupado das chacotas e zombarias dos outros meninos. Foi nesse ambiente de pequenos agricultores familiares de origem alemã e de confissão evangélica luterana que fui criado. Desde menino, via meus pais empenhados na defesa das pessoas mais frágeis, dos que foram feitos pobres e dos que sofriam injustiças. Minha mãe alertava-me, para que eu não me deixasse enganar pelas aparências; que eu encontraria quem faz discurso de justiça como cortina de palavras para esconder suas trapaças; que eu conheceria quem busca os primeiros bancos da igreja, para instrumentalizar a comunidade eclesial em favor dos seus próprios interesse e não para servir. Quando o pastor da comunidade percebeu que meus pais não tinham condições financeiras para pagar a continuação dos meus estudos, convenceu-os para me levarem ao internato do Instituto Pré-Teológico, em São Leopoldo, uma escola de orientação humanista e que preparava jovens para serem pastores. Entrei no internato com 10 anos e cursei todos os sete anos, custeados pela Igreja. Estudei várias línguas, inclusive o latim e o grego bíblico, a língua
original do Novo Testamento. Os professores procuravam despertar o nosso interesse pela leitura e pela cultura geral. Estudávamos muito e praticávamos muitos tipos de esporte. No fim do curso, decepcionei meus professores, quando decidi não seguir os estudos da teologia. Fui trabalhar no Colégio Sinodal, prestei o serviço militar e fiz o vestibular para o curso de economia, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Depois, fiz especialização em economia rural (UFRGS) e em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília (UNB). Estudei no Instituto Pré-Teológico em uma época de bons professores. Eles souberam apontar o fio condutor dos textos bíblicos, que pregam a justiça social e a solidariedade. Ajudaram-me a ver, também, que o louvor a Deus, o amor ao próximo e a solidariedade querem ultrapassar a esfera das relações individuais; que querem costurar as estruturas que edificam a sociedade; que querem servir de vigas na construção política, social e econômica da convivência humana. Compreendi, então, que realizamos um amor de migalhas quando restringimos a solidariedade à esfera das relações individuais; quando conseguimos, por exemplo, ajudar 100 pessoas, enquanto as estruturas de uma sociedade socialmente injusta, nesse mesmo espaço de tempo, produzem milhares de novas vítimas. Desde cedo me interessei pelo estudo da economia, sempre com o enfoque no mundo rural: Como se produz, como se distribui, como se consome os produtos oriundos da agricultura? O mundo rural sempre me fascinou. Busco nele novos estímulos para o meu trabalho, e ele me dá acolhida e aconchego. Aprendi que a terra e o solo são meios de produção finitos e que precisam ser cuidados, em todos os sentidos, o que inclui sua distribuição justa e seu uso socialmente correto. Com minhas raízes profundamente firmadas na terra, com o meu interesse pela economia dos alimentos e com os valiosos
ensinamentos dos meus professores, aprofundei meus estudos de economia rural. Trabalhei na construção de vários movimentos sociais, através do CAMP e do DESER Departamento Sindical de Estudos Rurais, do qual fui um dos fundadores, tais como: Movimento Estudantil, Sindicalismo Rural, MST, CUT, Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais, Movimento dos Atingidos pelas Barragens, Pastoral de Juventude Rural PJR, um movimento rural ecumênico que organizava a juventude do meio rural na perspectiva da Teologia da Libertação, além do Partido dos Trabalhadores. Aprendi que os setores sociais são ouvidos em suas reivindicações somente quando conseguem organizar-se e tornar-se capazes para fazer pressão a partir das bases. Em todos os trabalhos que realizei, procurei enfocar a pequena propriedade rural de regime de trabalho familiar. Depois do CAMP e do DESER, trabalhei 10 anos na assessoria da bancada federal do PT e criei o núcleo rural da bancada; participei do departamento rural da CUT nacional. Na direção do BRDE, fui premiado, por causa do apoio decidido que dei à agricultura familiar nos três estados do Sul. Atualmente, sou presidente do INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, desde 2003. Antes de mim, nenhum dos presidentes ficou tanto tempo na função. Essa minha prolongada permanência de 7 anos no cargo, me deu condições de fazer um trabalho continuado e eficiente. Destinei 47 milhões de hectares de terra para a reforma agrária, e foi possível incorporar 574 mil famílias no programa. É gratificante garantir os direitos fundamentais dos sem-terra, dos remanescentes das comunidades quilombolas, dos indígenas, dos atingidos pelas obras das grandes barragens, das mulheres trabalhadoras rurais, atuando "no outro lado do balcão, como poder executivo. Minha atuação prática reforça minha aposta na organização dos povos e na evolução da humanidade no tocante à justiça social. Resta muito o que fazer ainda, mas fico satisfeito quando avalio o meu trabalho sob a luz dos valores enraizados na agricultura familiar; com o critério das normas éticas que aprendi na minha Igreja; na perspectiva da minha opção pelos movimentos populares do
campo, ou seja, na visão das pessoas que foram excluídas e feitas pobres, no decorrer da história do Brasil. Procuro dar tudo de mim. Quero fazer muito mais. E a terra continua sendo o meu fio terra.