Identidade Cultural e Soberania no Universo Guarani Mbya Alzira Lobo de Arruda Campos Marília Gomes Ghizzi Godoy

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Transcrição:

ANAIS DA 70ª REUNIÃO ANUAL DA SBPC - MACEIÓ, AL - JULHO/2018 Identidade Cultural e Soberania no Universo Guarani Mbya Alzira Lobo de Arruda Campos Marília Gomes Ghizzi Godoy O progresso e o avanço do conhecimento científico, concebidos como meta a ser atingida por meio de uma tecnologia de ponta, esbarram na existência da extrema diversidade humana, em sua maioria composta por grupos que não podem ou querem ser modelizados pelo Vale do Silício, no qual bate o coração do capitalismo contemporâneo. As estratégias políticas adotadas para governar ou administrar as diversidades culturais sob uma crescente influência da globalização tem gerado reflexões com relação às dimensões pluralistas da cultura como uma propriedade das sociedades modernas e a construção de um processo democrático. Os debates a respeito realizados buscam refletir como pode evoluir a participação política indígena à luz dos processos constitucionais e reformas políticas que se consubstanciaram nos últimos 30 anos. A influência das políticas coloniais, seguidas pelas legislações monárquicas e republicanas, atuaram no sentido de aniquilar os povos originários, por meio da desapropriação de seus territórios, de sua subordinação política aos brancos, com iniciativas de discriminação e debilitação das culturas autóctones. As políticas de assimilação do século XIX ligaram-se ao integracionismo forçado de meados do século XX, dando continuidade à exclusão dos povos indígenas, marcados por altas taxas de pobreza e de analfabetismo e exploração de sua força de trabalho, em regime que mal disfarçava o estatuto de escravidão de fato que os indígenas viviam face aos brancos. Nos fins do século XX e inícios deste, surgiram categorias políticas de ajuda estrutural aos indígenas, marcadas pela tendência de considerar como legítimas as suas Livre-docente em Metodologia da História (UNESP/FRANCA); Doutora e Mestra em História Social (USP/SP); Docente do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP). E-mail: loboarruda@hotmail.com. Doutora em Psicologia Social (PUC/SP); Mestre em Antropologia Social (USP/SP); Docente do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP). E-mail: mgggodoy@yahoo.com.br

culturas e respeitar as suas identidades coletivas, como povos. A partir de um corpus legal que afirmava direitos dos povos indígenas destinados a uma reparação das exclusões sofridas e à formação de novos entendimentos entre o Estado Nacional, os povos indígenas e a sociedade em seu conjunto surgiram duas propostas de âmbito internacional: o convênio 169 da OIT (1989) sobre Povos Indígenas e Tribais em países independentes e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Essas propostas construíram um corpus de direitos indígenas, com o objetivo de integrá-los como sociedades democráticas em um mundo mais justo, que conteria espaços de autodeterminação e de reconhecimento igualitários quanto à dignidade identitária dos povos indígenas. Com esse propósito, o convênio 169 rompeu com o integracionismo, estabelecendo bases para um modelo nacional pluralista. Nessa vertente, ficou reconhecida a autonomia e fortaleceram-se as identidades indígenas, de acordo com prioridades estabelecidas para o desenvolvimento autônomo e o direito incontestável à territorialidade nacional. Esse convênio foi ratificada pelo governo brasileiro nos anos de 2002 e 2004. A Declaração da ONU coloca um fim no genocídio e na assimilação dos povos indígenas, reconhecendo a igualdade na dignidade e livre determinação dos povos indígenas. No Brasil, em meados dos anos 1980, tornaram-se visíveis diversos esforços de indígenas na tentativa de participar dos processos políticos nacionais, configurando organizações, tais como, a UNI (União das Nações Indígenas), que constituiu um polo de mobilização dos indígenas, além de várias organizações de apoio (Inesc, Cedi, CPI- SP, Aba e principalmente o CIMI). Essas medidas acabaram por estruturar um campo indigenista brasileiro, que atuou no sentido de se incluir um capítulo específico na atual Constituição Federal, intitulado "Dos índios", cujos artigos 231 e 232 expressam os direitos originários sobre as terras tradicionais, costumes, línguas, crenças, além de seu direito de ingressar em juízo, em defesa de seus direitos e interesses. Nesse âmbito, as condições multiculturais e pluriétnicas da sociedade brasileira enfrentam o desafio profundo de derrotar as medidas provindas das raízes eurocêntricas da História da América. A respeito, Verdum considera que não foram realizadas mudanças substantivas nas estruturas e nas práticas político-administrativas do Estado

brasileiro. 1 Como aconteceu com outras constituições latino-americanas, a incorporação da diversidade étnica e dos direitos específicos ao novo texto constitucional não tocou nas estruturas políticas de poder e dominação tradicionais. Com efeito, distanciam-se da realidade brasileira os pressupostos dos direitos políticos e sociais dos povos indígenas, no concernente à autonomia de decisão, ao autogoverno e controle sobre os territórios e os recursos naturais neles existentes, ao direito à representação política e ao protagonismo na formulação e controle das políticas públicas do Estado. Nesse cenário, ainda é muito presente e atuante o velho vício tutelar do Estado Colonialista Brasileiro 2. Em 1991, a hegemonia política, ideológica e administrativa da FUNAI foi reduzida, com o deslocamento de muitas de suas funções para os Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente, da Agricultura e da Educação. As observações acima estruturam um quadro apto para o entendimento do desafio representado pelo fortalecimento do movimento indígena e o processo de sua transição para uma sociedade fundada na plurietnicidade e interculturalidade. Nesse cenário, vale a pena refletir sobre a identidade cultural dos guarani, com destaque para o subgrupo Mbya, considerando, para tanto, a situação indígena brasileira e particularmente a dos povos indígenas guarani, que ocupam regiões no sul, sudeste e sudoeste do Brasil, estendendo-se para os países vizinhos: Argentina, Paraguai e Bolívia. Do ponto de vista demográfico, segundo o IBGE (2010), a população indígena é de 817.962 pessoas, na proporção de 0,44% da demografia geral brasileira. Essa população abrange 305 povos indígenas, distribuídos em 505 territórios, correspondentes a 12,5% do território nacional. Esses povos falam cerca de 274 línguas e, em porcentagem de 36,2%, residem em áreas urbanas, enquanto que 63,8% habitam áreas rurais. Os guarani compreendem os subgrupos Kaiowa, Mbya e Nhandeva, que possuem, respectivamente, 43.401, 8.026 e 8.596 habitantes, perfazendo o total de 60.023 indivíduos, vivendo em terras brasileiras. 3 Os guarani têm como representação simbólica central o mito da Terra Sem Males (yvy mara e ȳ) e a vida voltada para um profetismo religioso e fortemente centralizado na ideia de aperfeiçoamento espiritual. Nota-se que a vida na terra expressa uma condição de incompletude que exige que as aldeias tornem-se o locus de realizações 1 VERDUM, Ricardo. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina, Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, p: 97, 2009. 2 VERDUM, Ricardo. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina, Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, p: 98, 2009. 3 GODOY, Marília G. G. O Mistividmo Guarani Mbya na Era do Sofrimento e da Impoerfeição. Editora Terceira Margem, 2003.

comprometidas com o próprio modo de ser, designado como nhandereko. O campo social opera através da oralidade e das memórias que articulam a história e o cotidiano como expressões da autoidentidade cultural. As aldeias, designadas tekoa, mobilizam as comunidades no compromisso de adotarem valores culturais de seus ancestrais. O xamanismo apresenta-se ligado com o universo da comunicação divina e se configura por meio de rituais, regidos pelo canto e pela dança. É preciso notar que a vida coletiva dos guarani exige uma constante reatualização das vivências sagradas, de acordo com inspirações xamânicas, responsáveis pela repetição insistente dos fundamentos dos conhecimentos, das belas palavras (ayvu porã) do belo saber (arandu porã). As concepções transmitidas pela linguagem nativa constituem uma fronteira de valores oposta aos avanços das civilizações dos brancos (os juruá). Os contatos com os brancos, com suas consequentes influências civilizatórias, os guarani apresentam a estratégia de viver ao lado do branco, mas sem se misturar com eles. A presença das políticas públicas vinculadas à saúde, escola, habitação e saneamento básico configuram um caminho recente de influências, que vem exigindo novas definições e negociações para que se realize o projeto de ser e de viver como Guarani Mbya. A situação acima descrita pode ser visualizada em depoimentos orais, representativos do universo simbólico Guarani Mbya diante dos brancos, como podemos seguir nos depoimentos seguintes: 1. Os nossos parentes andavam muito porque o próprio Nhanderu ilumina para eles andarem. E, apesar de ele ter criado a Terra, ele colocou os espíritos guardiões de todas as coisas. E, assim, o rio, o mato, as montanhas têm os seus próprios donos que devem ser respeitados. Os xeramõi se moviam através de rezas e de seus petȳgua, moviam seus filhos, netos e os seus parentes. Fizeram muitas aldeias e, por isso, viviam por aqui. E quando os não índios chegaram, os nossos parentes só se retiravam e iam para outro lugar, que3 nem hoje em dia. Esse sempre foi o nosso costume. Se os jurua kuery chegarem e nos incomodarem, nós vamos só nos retirar; antigamente era assim. E essa mobilização faz parte da nossa vida, nós sempre temos que nos mover para a nossa saúde e bem-estar. Se ficarmos sempre no mesmo lugar, a gente é feliz, mas o nosso espírito, o nosso nhe e, não fica

feliz. Se repararmos nos mais velhos, vemos que depois de dez anos eles não estão mais felizes ficando somente num lugar, e quando sabem que não estão mais felizes eles buscam um novo lugar, um novo lar para se sentirem felizes. Mas hoje, infelizmente, não dá mais para ser assim, temos que ter a terra demarcada e outras coisas, e hoje em dia até os nossos próprios costumes, a nossa cultura, os não índios limitaram para a gente. 4 2. Eu nasci e cresci em Porto Alegre e depois eu vim para Santa Catarina com meus pais. Moramos em Itajaí durante cinco anos (em aldeias). Foi ali que tive dois filhos. Então, nós viemos aqui em Piraí. Naquela época, nós não tivemos problema para entrar. Nós, Mbya, não temos mais terra para viver. Os jurua kuery levaram toda a riqueza da natureza, eles destruíram as matas, mas, mesmo assim, nós vivemos. Os brancos não querem dar mais terra pra nós. Eles falam: por que os índios querem terra?. Nós queremos para plantar. Mas como a gente vai plantar se eles não querem dar terra boa para poder manter a nossa família? Jurua tem como nos ajudar, mas não ajuda. Eles tiraram a terra de nós. Às vezes, eu penso no passado, que nós tínhamos de tudo: mato, roça e as plantas medicinais. 5 4 Silva, Timóteo da Vera Popyguã (Tekoa Takuari, Eldorado/SP). In: Guata Porã (Belo Caminhar), 2015. 5 BENITES, Xejaryi Marta Para Rete (Tekoa Piraí, Araquari/SC). ). In: Guata Porã (Belo Caminhar), 2015.