ZÉLIA GATTAI: ARQUIVO FOTOGRÁFICO E ARQUIVAMENTO DE VIDA

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ZÉLIA GATTAI: ARQUIVO FOTOGRÁFICO E ARQUIVAMENTO DE VIDA Milena de Jesus Santos (UFBA) 1 Resumo: Na perspectiva sobre a análise da prática de arquivamento de vida instituída por Zélia Gattai por meio do arquivo de fotografias iniciado em 1946, o texto analisa o patrimônio documental, estabelecendo duas reflexões: sobre a construção biográfica do escritor Jorge Amado, a partir de relatos íntimos do seu cotidiano, delineados e publicizados pelo arquivo fotográfico; a segunda analisa a ressonância do empreendimento na prática literária de Zélia Gattai e sua atuação como memorialista que resultou em publicações do gênero. O estudo de caso proposto, reflete sobre a produção imagética e literária de Zélia Gattai, por intermédio de investigação dos indícios presentes na tessitura memorialística resultante de sua prática como fotógrafa e escritora. Palavras-chave: Arquivamento de vida; Acervo fotográfico; Zélia Gattai; Jorge Amado O presente estudo sobre o arquivamento de vida surgiu a partir do contato inicial com o acervo da Fundação Casa de Jorge Amado². Na ocasião, percebemos a necessidade de estudá-lo como possibilidade de compreender a prática arquivística instituída pela fotógrafa e memorialista Zélia Gattai (1916-2018). Analisando o acervo, chamou-nos atenção algumas ações concebidas pela escritora que apontam para a intenção de constituição da biografia do escritor Jorge Amado (1912 2001), por meio do registro fotográfico de sua trajetória. O empreendimento narra de forma intimista e afetuosa a relação com o homem, mas, sobretudo delineia a atuação do escritor nos âmbitos político e literário. Os trabalhos de Philippe Artières, Arquivar a própria vida (1997) e Luciana Quillet Heymann, Indivíduo, Memória e Resíduo Histórico: Uma reflexão sobre Arquivos Pessoais e o Caso Filinto Muller (1997), abordam a questão do arquivamento de vida a partir de estudo de caso. Ambos são tomados neste texto como referencial prático para adentrar o estudo de caso relativo à prática de arquivamento de vida como recurso memorialístico. 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Museologia da Universidade Federal da Bahia (PPGMuseu UFBA), vinculada a linha 1 Museologia e desenvolvimento social, desenvolve pesquisa sobre a Zélia Gattai e a Casa do Rio Vermelho, sob orientação da profª. Dra. Suely Moraes Ceravolo. Contato: milena.ssants@hotmail.com. 2 Instituição inaugurada em 1987, responsável pela preservação e difusão do legado literário do escritor brasileiro Jorge Amado, localizada no largo do Pelourinho, Salvador, Bahia. O prédio abriga cerca de 200 mil documentos, divididos em três partes: acervo Jorge Amado, acervo Zélia Gattai e acervo Fundação Casa de Jorge Amado. 535

Testemunho de uma vida O acervo fotográfico Zélia Gattai O termo testemunho aqui empregado refere-se à produção fotográfica como veículo para a possível escrita de uma vida. Por esse ângulo utilizaremos a fotografia, temática problematizada por Boris Kossoy (1999), em trabalho dedicado à análise da imagem fotográfica como documento e suporte memorialístico, manifesta-se a partir da captura dos fatos visando uma narrativa do real (KOSSOY, 1999, p. 127). Em conformidade com essa acepção, John Berger no ensaio Usos da fotografia concebe a prática fotográfica como ação que visa preservar do esquecimento certos acontecimentos (2017, p.79). Seguindo a perspectiva apontada pelos autores, o texto se debruça sobre a criação do acervo de fotos consonante ao objetivo evidenciado pela produtora do patrimônio documental, a qual tinha como objetivo documentar acontecimentos e flagrantes da trajetória de vida por meio da imagem, produzindo desta maneira para a posteridade registro oficial do escritor. A história de formação do arquivo fotográfico remonta a década de 1946, quando no período, Zélia Gattai esteve exilada na Europa juntamente com o filho, João Jorge e seu companheiro, o escritor Jorge Amado. No início, a prática fotográfica era exercida como hobby pela escritora que costumeiramente registrava o crescimento do filho e enviava as fotografias à família no Brasil. Em 1952, ganhou uma câmera Kiev, desde então a produção de fotografias tornou-se a principal atividade desempenhada por ela, assim, aproveitando a oportunidade de sempre estar ao lado de Jorge Amado acompanhando-o em todas as ocasiões, passou a fotografá-lo, evidenciando seu percurso. As imagens produzidas em sua maioria expõem facetas determinadas do protagonista focalizado, retratam a vida política e privada de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX, desde sua infância em 1914. Somadas às produções da escritora estão os negativos doados por Eulália Leal de Farias 2 à Zélia Gattai visando a preservação do material e sua organização. Conforme afirma a fotógrafa no texto Ai que saudades de Jorge! (2002), as imagens tentavam capturar os gestos corriqueiros que se repetiam nos momentos da escrita dos livros, sinais que 2 Eulália Leal Amado (1884 1972), mais conhecida por dona Lalu, natural de Amargosa Bahia, foi casada com o coronel João Amado de Farias com quem teve três filhos, sendo o mais velho o escritor Jorge Amado. 536

traduziam as dificuldades do escritor para materializar no papel ideias relacionadas às criações dos romances. O arquivo de fotos também apresenta cenas da intimidade, os momentos publicizados revelam o escritor ao lado dos filhos e netos, as visitas dos amigos à Casa do Rio Vermelho 3, interação com os animais de estimação e algumas poucas fotografias ao lado da sua esposa. Através das imagens, Zélia não refaz apenas a trajetória de Jorge Amado na Bahia e no Brasil, mas também a das muitas andanças pelo mundo. No arquivo encontramos fotos de momentos como o que foi capturado em Barcelona, onde Garcia Márquez foi recebê-lo no porto, o registro da viagem à Birmânia com Neruda ou ainda com Mário Vargas Llosa, Elsa Triolet, Louis Aragon, Roman Polanski e muitos outros que figuram ao lado do intelectual nas imagens retidas pelas lentes de Zélia. No arquivo encontramos fotos de personalidades diversas, Cora Coralina, José Sarney, Dorival Caymmi, João Gilberto e Astrud no dia do casamento, entre tantos outros expoentes brasileiros. Em artigo de sua autoria Histórias e Fatos de uma vida (1985), Zélia fala dos muitos personagens que fizeram parte de sua vida, revela o porquê da formação do arquivo - preservar a memória do escritor - e exprime em detalhes sobre a prática fotográfica. Em minha longa trajetória de fotógrafa, aprendi que só mesmo à traição poderia obter uma boa foto do meu marido, refratário a câmeras e fotógrafos. Sempre que lhe peço um momento de atenção, a máquina já regulada, instintivamente vira-se de costas ou assume um ar de vítima, a infelicidade estampada no rosto... vivo sob a ditadura dos fotógrafos costuma queixarse. Só consigo me realizar quando ele trabalha num romance. Absorto na escrita, desligado de tudo, não ouve sequer os repetidos clics de minha câmera, que vai captando as diferentes expressões de seu rosto. [...] já perdi a conta dos anos que ando de máquina a tiracolo em busca de fragrantes e de bons ângulos, realizando uma reportagem que não tem fim (GATTAI, 1981, p. 12). Percebe-se no trecho destacado, a ânsia por parte da fotógrafa de apreender todos os instantes possíveis do escritor, essa vontade se manifesta no desejo de continuidade das muitas reportagens incompletas que foram feitas ao longo dos anos. O material que se revela dos momentos capturados são repletos de detalhes e carregados de espontaneidade, autenticidade e verdade como assinala Angela de Castro Gomes (1997), em seu artigo sobre os encantos provocados pelos arquivos privados. 3 Antiga residência de Jorge Amado e Zélia Gattai, atualmente, memorial dedicado à memória dos escritores, inaugurado em novembro de 2014. 537

Seguindo a linha proposta por Gomes em torno do feitiço provocado pelos arquivos privados, pode-se afirmar que, no caso estudado, ele acontece por consequência do momento que Zélia evidencia nas imagens, o homem por trás do escritor imortalizado pela Academia Brasileira de Letras, personagem aparente anteriormente somente no âmbito privado. Foram cinco décadas documentando a vida em imagens. A compilação do material deu origem ao Acervo Zélia Gattai, doado pela escritora em 1991 à Fundação Casa de Jorge Amado com o intuito de auxiliar nas pesquisas sobre a trajetória do escritor. Incorporado ao Acervo Jorge Amado o arquivo é constituído em sua maioria por fotografias em preto e branco, divididas em séries 4, digitalizadas e agrupadas, levando-se em conta as temáticas por ordem cronológica. Em 2011 e 2012, na ocasião do centenário do escritor, a instituição lançou dois volumes do Catálogo Arquivo Fotográfico Zélia Gattai, no texto de apresentação da publicação Myriam Fraga 5 comenta sobre a relevância da documentação imagética produzida por Zélia Gattai: A obra fotográfica de Zélia Gattai é uma viagem no tempo e por sua extensão e diversidade, uma fonte inesgotável de descobrimentos, revelações, depoimentos; afirmação de uma existência vivida e representada em sua grandeza, muitas vezes fixada nos detalhes, nos pequenos e aparentemente fortuitos instantâneos do cotidiano, tão importantes e reveladores quanto os que registram os encontros com os mais diversos protagonistas de episódios marcantes em que Jorge Amado foi ator e testemunha (FRAGA, 2011, S. I.). Os indícios até aqui comentados nos levam a pensar que o material contribui consideravelmente para o arquivamento da trajetória do escritor, visto que a autora produziu e orientou a constituição de materiais relevantes para tal empreendimento, inclusive propagado no campo literário. Segundo Philippe Artières o arquivamento constitui-se de pequenas ações que se propõe organizar, classificar e preservar acontecimentos. Por meio dessa prática é possível construir e divulgar uma imagem forjada, visando um objetivo que, muitas 4 Amigos; Bichos; Brasília; Cartazes; Casa do Rio Vermelho; China; Diplomas; Diplomas; Diplomas; Diplomas; Entrevistados; Eulália e João Amado; Exílio; Família; Família Gattai; FCJA; Feiras; Festas Populares; Filmes; Filmes; Filme; Homenagens; Ilhéus; JA, ZG, João, Paloma; João Jorge e Zélia; Jorge Amado; Jorge e Eulália; Jorge e João Jorge; Jorge e Paloma; Jorge e Zélia; Jorge, Zélia, Paloma; Jorge, João e Paloma; Jorge, Zélia e João; Lançamento de livro; Livros; Paisagens; Paloma Jorge Amado; Pelourinho; Prêmios; Teses e livros; Títulos; Vários; Viagens; Zélia e João Jorge; Zélia e Paloma; Zélia Gattai. Acervo digital Zélia Gattai da Fundação Casa de Jorge Amado. Disponível em: http://zeliagattai.org.br/sobre. Consultado em 14/01/2018. 5 (1937 2016) Brasileira - poeta, Jornalista e escritora. Foi diretora da Fundação Casa de Jorge Amado e amiga da família dos escritores. 538

vezes, está relacionado com a construção de uma biografia. O registro de trajetória e arquivamento de uma vida pressupõem a seletividade dos acontecimentos e sua organização, se desenvolve na produção de narrativa em torno do que foi capturado do real. Nesse processo, história e ficção se misturam ordenadas de tal maneira que se tornam narrativa da vida do personagem (ARTIÈRES, 1997). A historiadora Luciana Heymann sustenta o caráter seletivo presente na construção dos arquivos, compreendidos como a materialização de uma memória selecionada. Diante dessa perspectiva é importante destacar a afirmação feita por Artière, no qual deixa sublinhado que o arquivamento de vida pode ser constituído por qualquer pessoa, em momentos específicos da vida. Em geral essa prática visa um objetivo, mas também apresenta um caráter subjetivo no processo. Nessa perspectiva, Zélia Gattai apropriou-se da fotografia como possibilidade de registro de uma vida. A constituição do arquivo fotográfico permite conhecer um pouco da trajetória de vida do escritor Jorge Amado, selecionada e revelada pela narrativa imagética e difundida, sobretudo, nos livros de memória. Zélia Gattai e a escrita dos momentos vividos Zélia Gattai, a filha de imigrantes italianos - Angelina da Col e Enesto Gattai fotógrafa, memorialista e dona de casa, nasceu na cidade de São Paulo, criada na Colônia Cecília, comunidade italiana instalada naquela capital, por muitos anos não se considerava escritora, preferia a narrativa dos fatos vividos que costumeiramente historiava para os filhos e netos as memórias de família. Em se tratando da prática da narrativa Ecléia Bosi em História de velhos (2015) define como: [...] forma artesanal de comunicação. Ela não Visa transmitir o em si do acontecido, ela o tece até atingir uma forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma (BOSI, 1995, p. 88). Nessa perspectiva Zélia se intitulava como contadora de histórias. A escrita dos livros tal como a produção fotográfica seguiu em consonância a intenção de imortalizar as memórias familiares registradas ao longo de cinquenta anos. A contadora de histórias aos 63 anos de idade, incentivada pela filha Paloma Jorge Amado e com anuência do esposo, publicou o primeiro livro Anarquista Graças a Deus (1979), sobre sua infância e a cidade de São Paulo na primeira metade do século XX. Motivada pela possibilidade de narrar às histórias vivenciadas ao lado do companheiro de vida surgiram às obras Um Chapéu para viagem (1982), Senhora 539

Dona do Baile (1984), Reportagem Incompleta (1986), Jardim de Inverno (1988), Chão de Meninos (1992), Casa do Rio Vermelho (1999), Cittá de Roma (2000), Códigos de Família (2001), Memorial do Amor (2004) e Vacina de Sapos (2005). Todas as obras aqui mencionadas retratam as memórias de família, que direita ou indiretamente reconstroem a trajetória de vida do escritor Jorge Amado (1912-2001). Em entrevista Não é fácil ser mulher de um escritor como Jorge Amado concedida ao caderno Magazine em 1981, Zélia fala da admiração que nutria pelo escritor e companheiro de vida. Aos 17 anos foi apresentada ao universo romanesco do literário. Sentia-se honrada de estar ao lado do ídolo e de poder colaborar com seu trabalho. Tomou para si a responsabilidade de agenciar a vida e carreira do esposo, desde a escrita do livro Seara Vermelha em 1945, atuou como secretária do escritor, auxiliando-o em suas produções. No trecho em destaque, Zélia relata sobre os papéis assumidos: Eu sempre procurei ter uma atividade, mas sempre ajudei Jorge. Quando ele escreve eu trabalho com ele, sou eu que faço o trabalho material. Dactilografia é por minha conta. E pesquisas. E crio o ambiente para ele trabalhar, sirvo-lhe de leão da chácara, impedindo que seja perturbado quando não deve, e procurando ficar isolado. Eu estou sempre dando assistência a tudo, inclusivamente na revisão. Tudo isso é um trabalho que sempre fiz desde que conheço Jorge. E também me dedico muito à fotografia. Toda a contracapa de livro de Jorge editado no Brasil tem fotografias minhas, e muitas fotografias são publicadas em revistas, no mundo inteiro (GATTAI, 1984. S.I.). As atividades de datilografia e fotografia desempenhadas por Zélia contribuíram como acima assinaladas, para definir o papel de guardiã da memória em expressão de Ângela de Castro Gomes (1996). Seus livros reverberam os momentos registrados em imagens que compõem o arquivo fotográfico. Em texto de sua autoria, a escritora Myriam Fraga comenta sobre a escrita das memórias, prática realizada por Zélia Gattai até os últimos anos de vida: Todo livro de memórias é no fundo uma tentativa de alcançar a imortalidade. Captar o tempo em seu eterno fluir. Capturá-lo como uma máquina fotográfica captura o instante que passa na armadilha de suas lentes. Há, portanto um certo caráter mágico nesses textos como se o autor ao entregar ao público o somatório de fatos que compuseram sua vida reivindicasse para si a cristalização de um tempo que, sem o seu testemunho, não seria preservado. O verdadeiro memorialista é aquele que olhando para trás consegue descobrir, entrelaçadas nas marcas de seu próprio caminho, as pegadas dos que partilham consigo das venturas e desventuras de um tempo passado. A memória, desse modo deixa de ser uma operação pessoal para transforma-se em ato social da mais elevada importância: testemunho, documento, legado (FRAGA, 1994, p.10). 540

Fraga destaca pontos que fundamentam a prática da escrita das memórias. Primeiramente infere a ação como possibilidade de perpetuação e preservação das vivências, inscritas por meio do testemunho de vida que nos remete a percepção da ação memorialística como ato social. Sobre esta questão Ecléa Bosi comenta que a memória tem uma função social a lembrança, por meio dela recordamos o vivido através do testemunho (escrito ou oral) da experiência individual (BOSI, 1994, p. 85). A atividade de narradora, ainda segundo E. Bosi (p.90), desempenhada constantemente por Zélia foi exercitada inicialmente nos momentos que se dedicou a escrita de anedotas com base em sua história de vida, e tinha como ouvintes os filhos e netos. Revela que teve a chance de aprender com seu esposo, durante o trabalho de datilografia dos romances como criar um livro. Com a experiência adquirida no auxílio prestado e incentivo da família, nasce o primeiro livro de memórias, escrito sem utilização de rascunho, retirado direto da memória, as histórias testemunhadas na infância. Após três anos exercitando a escrita, lança o livro Um Chapéu para Viagem, impulsionada pela viabilidade de rememorar histórias engraçadas, marcantes, tristes e inusitadas (GATTAI, 1982, S.I.) da vida de Jorge Amado. O livro Um Chapéu Para Viagem publicado em 1982, homenageava o escritor Jorge Amado que neste mesmo ano comemorava 70 anos de vida e 50 anos de produção literária. Na obra Zélia narra parte do caminho político do escritor. A história se passa entre os anos 1945 a 1949, o texto apresenta o inicio do casamento dos escritores, transmite as histórias da família Amado confidenciadas por Eulália Leal e permite que se reviva trechos da vida da autora, já publicados em seu livro anteriormente. Na página introdutória a autora explica as razões que a levaram a escrita da obra e dedica o livro ao seu esposo, uma homenagem a dupla comemoração: Acontece que em 1981 comemorou-se o cinquentenário da publicação do primeiro romance de Jorge, e em agosto de 1982 ele completaria 70 anos de idade. Muitas manifestações de carinho lhe estão sendo prestadas por motivo do duplo aniversário. Que presente poderia eu dar a meu marido em ocasião tão especial? Ocorreu-me a idéia de homenageá-lo narrando um pouco de sua vida, sobretudo de sua infância, reproduzindo histórias ouvidas da boca de seus pais, Coronel João Amado de Faria e dona Eulália Leal Amado, seu João e Lalu, duas pessoas extraordinárias. Achei que presente melhor não podia lhe dar do que o relato de minha convivência com seus pais e seus irmãos, num período extremamente fecundo de nossa vida, de 1945 a 1948 (GATTAI, 1986, p. 10). 541

Completando a escrita da história de vida, mais dois textos foram lançados e juntos formam a trilogia que dá conta da trajetória do escritor enfatizando a atuação no campo político nas décadas 1940 a 1950. Senhora dona do Baile (1984), é o terceiro livro da carreira de Zélia, dedicado as memórias do exílio na França e das viagens ocorridas entre os anos 1948 a 1949. Finalizando esse ciclo, lança em 1988 o livro Jardim de inverno, com narrativa do exílio na Tchecoslováquia nos anos 1949 a 1952. Chão de meninos (1992), quarto livro de memória, se passa em Copacabana na década de 1950, compreende histórias dos anos 1952 a 1963, no período em que morando no Rio de Janeiro decidem fincar moradia na Bahia, relata a compra do terreno na Rua Alagoinhas, 33, Rio Vermelho em Salvador. A escritora retoma as memórias de família nos livros: A casa do Rio Vermelho (1999), Jorge Amado: Um baiano romântico e sensual, três relatos de amor (2002), Memorial do Amor (2004) e Vacina de sapo (2005). Os livros citados são contributos para a biografia de Jorge Amado. O conjunto de histórias revela sua dedicação e amor ao personagem central de sua produção literária, e são importantes subsídios aos estudiosos interessados na vida e obra de Jorge Amado. Ao publicar os livros enfatizando a trajetória do escritor, Zélia se coloca como produtora das memórias, mas, ao mesmo tempo, ocupa o lugar de coadjuvante no processo, pois determina os holofotes centralizados em seu personagem principal. No texto Arquivos de mulheres e mulheres anarquivadas: histórias de uma história mal contada (2009), Constância Lima Duarte cita Derrida para alertar que, por meio de investimentos feitos por dada personalidade no futuro, podemos perceber o arquivamento do escritor, e com Zélia Gattai não foi diferente. Todo material produzido pela memorialista e fotógrafa podem ser visualizados na exposição do Memorial A Casa do Rio Vermelho, instituição criada com o objetivo de homenagear as memórias dos escritores. Referências AMADO, J. Fundação Casa De Jorge. Catálogo arquivo fotográfico Zélia Gattai: volume 1: casa do Rio Vermelho a família. 1 ed. Salvador: Casa de palavras, 2011. 542

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