Estive no Cairo de 18 de setembro a 4 de outubro, participando como jurado do 16º Festival Internacional de Teatro Experimental do Cairo- CIFET.



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Transcrição:

TEATRO, SADDAN E O DOUTOR DAS FLORES Clovis Levi INFORMAÇÕES GERAIS Estive no Cairo de 18 de setembro a 4 de outubro, participando como jurado do 16º Festival Internacional de Teatro Experimental do Cairo- CIFET. Vinte e quatro grupos, de 22 países (Holanda e Egito conseguiram classificar dois grupos, cada) concorreram aos prêmios de Melhor Espetáculo, Melhor Encenador, Melhor Atriz, Melhor Ator, Melhor Cenografia e Melhor Conjunto. O prêmio era uma bela estátua de Thot, a Deusa Egípcia da Sabedoria. Os países participantes foram Rússia, Ucrânia, România, Holanda, Coreia do Sul, Sérvia- Montenegro, Armênia, Bósnia-Herzegovina, França, Áustria, Eslováquia e os árabes Líbia, Argélia, Jordânia, Líbano, Palestina, Iraque, Sudão, Turquia, Síria, Arábia Saudita e Egito. O Brasil já esteve lá, em 1999, com o Tá na Rua - Men and Women e, naquele ano, o festival contou, no júri, com a participação do ator-diretor Antonio Pedro. Em 2000, Caíque Botkay, como jurado, foi o representante brasileiro; e, em 2001, a Companhia de Plástico foi selecionada com a montagem de Divertimentos in Bequardo. OS PREMIADOS Melhor Espetáculo Dividido entre Bambie 8 (Holanda) e They are all here (Líbano). Melhor Encenador Jochem Stavenuiter e Paul van der Laan, por Bambie 8. Melhor Atriz Karima Nait (Egito), por On the table listening to Wagner. Melhor Ator Ermin Bravo (Bósnia-Herzegovina), por Helver s Night.

Melhor Cenografia Municipal Theatre of Qusantina (Argélia), por The saying and the Drum. Melhor Conjunto The Training Space Workshop (Iraque), por Sorry Sir, I didn t mean it. O júri foi formado por diretores, autores e atores/atrizes de: França, China, Egito, Japão, Estados Unidos, Holanda, Índia, Argélia, Itália, Canadá e Brasil. MOSTRA PARALELA E SIMPÓSIO Além dos 24 espetáculos em competição, o CIFET promove sempre uma Mostra Paralela que contou, neste ano, com 50 peças do Egito, Jordânia, Emirados Árabes, Bahrain, Kuwait, Marrocos, Arábia Saudita, Yemen, Sultanato de Oman, Palestina, Turquia, Qatar, Líbano, Líbia (países árabes) e mais Espanha, Ucrânia, Uzbequistão, Inglaterra, Equador, Itália, Bósnia-Herzegovina, Hungria, Estados Unidos, Dinamarca, Japão, Grécia, Bulgária, Polônia, Peru, România, Rússia, Eslovênia, Sérvia-Montenegro, Venezuela, Chipre, Kazaquistão, Mali e Suíça. Na parte da manhã, nos primeiros três dias, é sempre realizado um Simpósio, com estudiosos de vários países do mundo sobre a questão da linguagem experimental. O tema deste ano foi Teatro na Era Pós- Moderna. Para os interessados em participar do CIFET: o festival é realizado pelo Ministério da Cultura do Egito, sempre em setembro; os promotores se responsabilizam por hotel e transporte dentro da cidade para grupos de até 15 pessoas; as companhias pagam suas próprias passagens e o transporte de cenário. Endereço para informações (em árabe, inglês ou francês) Ministry of Culture, Cairo International Festival for Experimental Theatre (CIFET), Foreign Cultural Relations, 44, Misaha str., Dokki, Cairo, telefones 3487703, 3485599, fax 3486715 e e-mail: cifet@idsc.net.eg OS CINCO MOMENTOS DE FASCÍNIO E PRAZER Este ano houve uma visível ausência de critério, por parte da Comissão Selecionadora, sobre o que deveria ser considerado como teatro experimental. É evidente que esta é uma definição nada matemática e cada um tem na sua cabeça o significado de experimental, mas uma Comissão deve ter em mente um conjunto de critérios básicos comuns. A platéia foi surpreendida com alguns espetáculos

que se valiam de uma linguagem claramente tradicional o que não quer dizer necessariamente velha e nem ultrapassada - junto a outras encenações onde se reconhecia claramente uma preocupação com a pesquisa cênica. Dos 24 espetáculos, cinco traziam um excepcional nível de qualidade: Holanda (dois), Líbano, Bósnia- Herzegovina e Coréia do Sul. Ao mesmo tempo, foram selecionadas algumas encenações que eram tão primárias que chegamos a comentar que só eram experimentais na medida em que, como os grupos pareciam não saber nada de teatro, só lhes restava mesmo experimentar o que desse e viesse.(as apresentações do Sudão, Sérvia-Montenegro, Rússia, Armênia, Jordânia, Palestina e Arábia Saudita foram os momentos mais desconcertantes). Gostaria de comentar rapidamente as cinco montagens mais significativas. 1) Bambie 8 (Holanda), de Jochem Stavenuiter e Paul van der Laan Excepcional! Coisa rara de ser vista! Prêmio de Melhor Espetáculo (dividido com They all are here, do Líbano) e Prêmio de Melhor Direção, além da Indicação para Melhor Cenografia e com excelentes trabalhos de interpretação. O espetáculo é uma surpreendente sequência de ações não verbais, absolutamente delirante, com três atores de extremado domínio corporal realizando com magnífica precisão e humor trajetórias do mais completo non-sense. (Um Jacques Tati agressivo?). O release fala que o roteiro é inspirado na explosiva relação existente entre Werner Herzog e Klaus Kinski, investigando a quantidade de emoções que alguém pode suportar, mas isso, na realidade, não tem a menor importância. Eles reproduzem (delirantemente, é claro) cenas de alguns filmes realizados por Herzog-Klinski mas, se você nunca tiver ouvido falar desses dois, o seu deslumbramento com a performance será o mesmo. Alguém (alô, Grassi) deveria levar ao Brasil esta cascata de criatividade, talento histriônico, competência técnica e extremado rigor na realização. E que nos presenteia, ainda, com o surgimento constante do inesperado. Na definição que fazem do espetáculo, os criadores afirmam realizar o physical movement theatre, com uma performance de estilo tragicômico. Este foi o momento de glória do CIFET, deixando a platéia absolutamente fascinada. 2) Se dice de mi (Holanda, novamente), concepção, direção, texto e interpretação de Kris Niklison Eis aí um espetáculo cuja melhor definição talvez fosse essa: inteligente. São três telões e uma atriz. Música brasileira. Os telões têm velcro e Kris Niklison (cuja roupa também tem velcro) atira-se aos telões e fica presa neles, como uma aranha. Ela contracena com as imagens projetadas pelo vídeo e, em um determinado momento, a atriz é comida pelas bocas que surgem projetadas nos telões. Encenação multimedia, com uso de microfone, vídeo, imagens projetadas fixas e em movimento, música, dança, acrobacias aéreas. Kris Niklison é uma atriz de forte comunicabilidade. Não chega a ser

brilhante mas tem inteligência e empatia, Uma multimedia one-woman-show ela canta, dança, faz acrobacias, contracena com as imagens projetadas, conversa com o público, lembrando às vezes o estilo de Dario Fo (com quem trabalhou durante um tempo). O texto fala das relações humanas : às vezes cínico, às vezes sofrido, às vezes ácido, quase sempre com humor. Kris Niklison, apesar de representar a Holanda, pois vive e trabalha lá há anos, é argentina, e já esteve no Brasil participando do Festival Circunferência. Nos créditos projetados no final do espetáculo, uma frase que talvez traduza bem a noção da ironia do texto: Obrigada a todos os amigos que me ajudaram a fazer este espetáculo; e obrigado a todos os inimigos que me inspiraram. 3) They all are here (Líbano), roteiro do grupo Al Muhtaraf, a partir de Beckett. O texto mistura diálogos de algumas peças de Beckett sem preocupação de encenar pequenos excertos. A idéia é, com as frases beckttianas, criar um universo de vazio e solidão, com uma linguagem baseada nas ações e na criação de imagens significativas. Direção ágil e criativa. They all are here estabeleceu uma relação profunda com a platéia e trouxe, num festival de teatro árabe, pela primeira vez, a presença de Saddan Hussein, através de uma foto. Sobre Saddan, que surgiria outras vezes, e as reações do público, falarei mais abaixo. 4) The train (Coréia do Sul), de Chungeuy Park mágico, poético, musical. A montagem sul-coreana, também sem palavras, utiliza dança, acrobacias, mágicas, mímica. Os atores, extremamente comunicativos, apresentam invejável precisão de movimentos, impecável domínio técnico e, segundo o release, trabalham as emoções através da força poética e da energia Ki (um conceito oriental que expressa uma espécie de energia espiritual). A idéia é de extrema simplicidade: dois mágicos tentam embarcar num trem ( perderam os tickets) e se relacionam com dois irmãos (nossos meninos de rua) e a partir daí são criados diversos jogos cênicos. Algumas cenas desnecessariamente longas fazem com que o roteiro nem sempre consiga manter o interesse. Entretanto, The train presenteou o festival com alguns dos seus momentos mais mágicos e poéticos. 5) The Helver s Night (Bósnia-Herzegovina), de Ingmar Vilkvist Foi uma sorte a Comissão Selecionadora ter escolhido este modelo perfeito de um espetáculo realista que, penso, encantaria até os mais ferrenhos anti-stanislavskianos. Não me perguntem o que esta encenação com texto, cenários, figurinos, luz, som, interpretação e, evidentemente, direção realistas fazia dentro de um festival de teatro experimental. Mas que bom que foi assim. Um erro crasso da Comissão Selecionadora nos deu a oportunidade de assistir a um texto fortíssimo, ao mesmo tempo terno e cruel, simples e terrível. Peça para dois atores, The Helver s Night (Helver é o nome do personagem principal) possibilita expressivas performances. Encenado com perfeito domínio rítmico, The Helver s Night nos envolve a partir do primeiro momento e nos leva a acompanhar com interesse crescente, entre o terror e o

encantamento, a relação entre mãe e filho, tendo, presente e pesando sobre nossas cabeças, os tempos sombrios em que vivemos. É sempre bom termos em mente que esta companhia viu, viveu e participou dos acontecimentos que estraçalharam o país na guerra de 1992-1995. Ermin Bravo (Helver) recebeu o Prêmio de Melhor Ator do Festival e Mirjana Karanovié foi uma das três indicadas para o Prêmio de Melhor Atriz (votei nela mas fui voto vencido). E O TEATRO DO EGITO? Quando vou a um festival de teatro em cidades que não são consideradas como grandes centros de produção teatral, tenho sempre a curiosidade de perguntar aos promotores se existe, como consequência, um desenvolvimento qualitativo da produção local. Porque, caso contrário, o festival significará apenas um evento turístico-teatral, muito mais turismo que teatro. Fiz essa pergunta no Cairo e a resposta foi sim. E, pelo que pude assistir, o teatro do Egito tem evoluído nos últimos anos (o festival tem 16 anos): as duas produções que concorreram eram muito bem dirigidas, com estimulantes linguagens cênicas e com grande capacidade de comunicação com a platéia. Ao mesmo tempo, na Mostra Paralela, havia 25 encenações egípcias, num total de 50. Como o CIFET se caracteriza por ser um festival que privilegia as pesquisas de linguagem isso talvez esteja permitindo ao teatro egípcio assimilar conteúdos do teatro ocidental e conciliá-los com tendências de investigação cênica que se realizam atualmente não só no Ocidente mas, também, na África e na Ásia. O FESTIVAL E A REALIDADE ÁRABE (UM POUCO DE SADDAN NÃO FAZ MAL A NINGUÉM) 1) Quando surgiu a foto de Saddan no espetáculo do Líbano (They all are here) o público bateu palmas vibrantes. Ao final, em conversa com meu tradutor árabe, ele me perguntou: E Saddan Hussein? O senhor o considera um herói ou um bandido? 2) O Iraque esteve presente com a peça Sorry Sir, I didn t mean it, de Mohtaref Seham Nasser, que discute a presença americana e suas influências na mudança do estilo de vida no Iraque, O personagem negativo da peça é o jovem antagonista que carrega os conceitos de vida ocidental (através de clichês como calça jeans, blusão de couro, cabelo moderninho com gel, música pop, ginga de rock). Ele tenta convencer os seus colegas de geração que o melhor é o modo de vida, as roupas e a música ocidentais,

principalmente os oriundos dos Estados Unidos. E quando Saddan Hussein foi citado (direta ou indiretamente) a platéia se manifestou calorosamente ao lado do iraquiano. 3) Após o espetáculo perguntei a um árabe qual era a imagem de Saddan Hussein no Egito. Resposta : Agora a atitude correta é bater palmas para o Saddan para deixar claro que nós, os árabes, estamos unidos e somos todos contra os americanos. 4) O Egito, com Emergency Landing, de Khaled Galal, mostrou a já clássica imagem de Saddan Hussein com a boca aberta, sendo examinado com a lanterninha. A imediata e espontânea reação da platéia, ao mesmo tempo aplaudindo (Saddan) e vaiando ( Estados Unidos) refletiu com absoluta clareza o ódio do povo árabe aos norte-americanos. 5) Um dado interessante: nas reuniões do júri, uma parte dos meus colegas supervalorizava visivelmente o espetáculo do Iraque, achando que Sorry Sir, I didn t mean it merecia estar indicado em todas as categorias (e vencer). Tentavam argumentos teatrais que se mostraram inconsistentes, mas ficou claro que buscavam politizar o resultado do festival para deixar patente o repúdio à agressão norte-americana. O anti-americanismo fora de lugar destes incansáveis combatentes acabou obtendo para o Iraque o Prêmio de Melhor Conjunto. Foi um prêmio bem dado mas, se o Iraque não tivesse sido invadido, talvez a estátua de Thot, a Deusa da Sabedoria, tivesse ido parar nas mãos de um dos dois espetáculos egípcios, mais merecedores, e que se caracterizaram por uma garra coletiva e uma indiscutível alegria por estar em cena. 6) E aquela pergunta: E Saddan Hussein? O senhor o considera um herói ou um bandido? Herói ou bandido? Não me parecia uma pergunta que ele me dirigia procurando saber minha resposta. A questão colocada parecia refletir uma certa encruzilhada em que se encontra hoje o sentimento árabe. Todos sabem que Saddan era um ditador e um criminoso, e os egípcios estão bem informados a respeito do que é uma ditadura, já que Mubarak está no poder há 24 anos. Por isso, bandido. Mas todos sabem também que a imagem humilhada de Saddan sendo examinado pelo médico americano, hoje se transforma num símbolo da união árabe contra o inimigo maior os Estados Unidos. Por isso, vítima. Por isso, herói. A política equivocada de Bush, que nunca previu que seria fácil derrubar Saddan mas quase impossível permanecer no Iraque, conseguiu transformar o ditador iraquiano no herói da união árabe.

Percebe-se, com nitidez, que o ódio aos americanos é infinitamente mais forte que a admiração por Saddan mas Saddan, preso e humilhado, virou a possibilidade de unir emocionalmente todos os árabes contra Bush e sua política. Num festival internacional, com artistas vindos dos mais diferentes países, era visível que os americanos estão cada vez mais detestados e que esse ódio se espalha cada vez mais rapidamente pelo mundo. (Ironicamente, o Presidente da Comissão Julgadora era um encenador americano. Entretanto, ele sempre foi muito bem tratado, como todos nós, aliás). UM POUCO DE CAIRO (TAMBÉM) NÃO FAZ MAL A NINGUÉM O Cairo não tem sinais de trânsito! São vinte milhões de habitantes num país sem indústria automobilística e sem dinheiro para importar automóveis. Os carros são velhíssimos, todos com pequenos e médios amassados e ninguém se preocupa em fazer lanternagem. Dirigem na contra-mão na frente dos guardas, fazem contornos absolutamente proibidos por qualquer engenharia de trânsito, os cruzamentos são algo inconcebível e, no meio do caos, vislumbra-se o tranquilo trote dos cavalos, puxando inacreditáveis charretes. Como não há sinais (há, mas pouquíssimos, e nem sempre os motoristas os respeitam) para que não batam uns nos outros e para que não atropelem as pessoas que atravessam as ruas pelo meio dos automóveis, é o local do mundo onde mais se buzina. Todos buzinam. Para tudo : para não bater noutro carro, para não atropelar a moça toda de negro e que só mostra os olhos no meio do véu, buzinam para cumprimentar um amigo num outro carro e que, por ser bem educado, devolve o cumprimento buzinando de volta. É o trânsito mais caótico e mais barulhento do planeta (imaginem: vinte milhões de habitantes!). No centro da cidade, a hora do rush vai das sete da manhã às três da madrugada. E tome de buzina! Da minha janela do hotel eu ficava olhando o tráfego, fascinado. Fosse pela manhã ou durante a madrugada o movimento (e as buzinadas) eram absolutamente iguais! De todas as cidades que conheci é a mais suja. Imunda. É considerada como uma das cidades de maior poluição do mundo. No Mercado Árabe a comida é feita ao ar livre e ao lado do container de lixo. A higiene não é o forte.

E os árabes, que vendem tudo a todo mundo? As táticas estão ficando cada vez mais sofisticadas. Eles sempre te abordam quando você passa pela calçada isso é o normal. Mas o mais interessante é encontrar casualmente com você, bem no meio da rua, tentando atravessar para o outro lado. Eles dizem cuidado que o trânsito aqui é muito perigoso, e vão te ajudando, fazendo sinal para os carros pararem para que possamos atravessar e entabulam um papo whérduiúcamifrom e você diz que é do Brasil, Oh, Brasília! (não sei porque chamam Brasil de Brasília!), Ronaldinho, I love Brasília, e ao perceber que você já está achando que vem jogo de sedução vão logo dizendo No money, no money ( o que significa não quero tirar dinheiro de você) e não te largam mais até você entrar no loja deles ou dar um basta. No início é interessante fazer o jogo dos comerciantes-que-fazem-ponto-na-rua para ver como é. Depois, cansa, e a melhor estratégia é você já nem dar mais resposta quando recebe o assédio. E a ajuda para passar ao outro lado da rua é desnecessária para quem já atravessou a Presidente Vargas fora do sinal! Entretanto, não há perigo nas ruas (fora morrer atropelado), não há assaltos, anda-se de noite pelo centro com tranquilidade. E as lojas estão abertas até meia-noite, pelo menos. Todos prometem descontos, Mas só hoje, porque amanhã vou fechar a loja por três dias porque minha irmã vai se casar!, mentem descaradamente e quando você diz que está com pressa, mas volta amanhã, dizem que a loja fica aberta o dia todo, esquecendo-se de que a irmã vai (ia)se casar. E o folclore do mercado árabe permanece até hoje: quando vêem que você está interessado num produto mas está achando caro, acabam baixando o preço em até 80 por cento!!! Quando estávamos passando em frente ao Museu do Cairo apareceu um senhor bem vestido, também nos ajudando a atravessar a rua e que se apresentou como Doutor das Flores, no money, no money, e disse que cuidava dos jardins do Museu. Perguntou de onde éramos e Ó, Brasília! Futebol, Ronaldinho!! Mas eu adorava o Zizinho! (Zizinho?! Onde este homem ouviu falar de Zizinho?!). O Doutor das Flores despediu-se, deu dois passos e Ah, posso dar uma sugestão? Ao entrar no Museu, sigam direto para o segundo andar onde estão os fantásticos tesouros encontrados no túmulo do Tutankamon. Pode ser que vocês não tenham tempo de ver tudo e é melhor garantir logo o filé-mignon do Museu. Outro até logo, mais dois passos e Ah, e eu tenho uma lojinha que vende... O melhor teatro egípcio é o que se faz nas ruas do Cairo...

Um grande beijo a todos, Clovis Levi, de Coimbra Publicado na Revista da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, Brasil. Publicado na Revista do Festival de Teatro Universitário de Blumenau, Brasil. Autorizada a reprodução em sites e blogs.