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Transcrição:

Arthur Azevedo e a criação do teatro nacional 140 Quando eu morrer, não deixarei meu pobre nome ligado a um livro, ninguém citará um verso meu, uma frase que saísse do cérebro; mas com certeza hão de dizer: Ele amava o teatro, e este epitáfio moral é bastante, creiam, para minha bem-aventurança eterna. 22 de setembro de 1898 Arthur Azevedo

Neste ano comemora-se o centenário da morte de dois expoentes da cultura brasileira: Machado de Assis e Arthur Azevedo. Eles eram amigos e trabalhavam na mesma repartição pública. Ambos eram republicanos, abolicionistas e sonhavam com um Brasil moderno e culto. Entretanto, trilharam caminhos estéticos muito diferentes. Machado não só integrava, como também era porta-voz de uma corrente de pensamento cujo projeto maior era o de levar ao povo a erudição. Com ele estavam José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Coelho Neto, Quintino Bocaiúva. Um dos alvos preferidos para os ataques do grupo era um cabaré chamado Alcazar Lyrique, freqüentado pela boemia carioca da segunda metade do século XIX, incluindo Chiquinha Gonzaga. Na tal casa de espetáculos eram apresentadas peças musicadas e operetas que, por seu caráter cômico e feérico, atraíam o grande público da época. Era contra isso que se indignava Machado. "Hoje que o gosto público tocou o último grau de decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo que fala aos sentimentos e instintos inferiores?" (In: FARIA, João Roberto. Idéias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001.) 141

O jovem Arthur Azevedo, recém-chegado ao Rio de Janeiro, procurou fazer coro a essa voz. Ele também era um grande amante das artes e, desde muito pequeno, aprendera a cultivar a poesia, o teatro e a literatura. Mas seus caminhos o conduziram à direção oposta à trilhada por Machado, a quem tanto admirava e respeitava. Foi justamente o lado musical, cômico e festivo de seu teatro que fez de Arthur Azevedo uma referência para a formação de nossa identidade cultural e para a história do teatro brasileiro. 142 Um pouco de história Arthur Azevedo nasceu em São Luís do Maranhão em 1855. Sua mãe, Emília Amália Pinto de Magalhães, era uma jovem que amava a literatura e a liberdade. Abandonando o marido, um comerciante nem um pouco afeito às artes, com quem ela se casara por imposição familiar, Emília Amália passa a viver maritalmente com David Gonçalves de Azevedo, para escândalo da sociedade maranhense do século XIX. As reações à sua atitude foram tão violentas que até mesmo doces envenenados eram enviados a Emília pela vizinhança. Dessa união, nasceram cinco filhos, dentre os quais Arthur e Aluísio Azevedo. Com dificuldades financeiras para mantê-los na escola, Emília, enquanto costurava, dava-lhes todo o estímulo para a leitura e a escrita. Ensinoulhes francês e, no quintal de sua casa, criou um teatrinho com peças escritas e encenadas pelos filhos. Quando adolescentes, os meninos passaram a trabalhar em armazéns portugueses, mas nunca abandonaram o prazer de ler e de escrever. Tanto que Aluísio Azevedo foi o primeiro brasileiro a viver exclusivamente do ofício de escritor. Arthur chegou ao Rio de Janeiro em 1873, com 18 anos. Dividia sua atividade profissional entre o teatro, o jornalismo e um cargo público no Ministério da Agricultura, onde conheceu Machado, seu grande amigo e crítico implacável. Em suas primeiras incursões pelo teatro, Arthur procurou escrever teatro sério e corresponder assim aos anseios da elite intelectual de então. Mas frustrou todas as suas expectativas, pois tais peças não agradavam ao público. Passou então a levar à cena suas primeiras comédias. Com elas, Arthur Azevedo conquistou o reconhecimento popular e conheceu o sucesso. Para os companheiros de ofício, entretanto, nosso autor sentia a necessidade de justificar sua opção

estética como se ela fosse uma espécie de pecado: Todas as vezes que tentei fazer teatro sério, em paga só recebi censuras, ao passo que enveredando pela bambochata não me faltaram nunca elogios, festas, aplausos e... proventos. Perdoem-me por citar essa última fórmula de glória, mas... que diabo... ela é essencial para um pai de família que vive de sua pena!... A partir de 1877, ainda mantendo-se fiel à comédia e sempre tentando se justificar por isso, Arthur Azevedo começou a encenar as Revistas de Ano, espetáculos que faziam uma retrospectiva panorâmica do ano que findara, utilizando recursos musicais, carnavalescos, humorísticos e visuais. Quanto a esse último aspecto, uma breve descrição de Olavo Bilac a respeito de determinada cena cuja única fala era Oh! A Capitá Federá! pode nos dar uma idéia da teatralidade presente nas Revistas de Ano: E há uma pancada seca no bombo e nos timbales da orquestra. Abre-se o fundo da cena e, por uma tarde batida de sol, aparecem os arcos da Carioca, e, sobre eles, o bonde elétrico voando numa esplêndida cenografia... E o pano cai, ao reboar dos aplausos. Com uma estrutura dramatúrgica bastante simples, as Revistas de Ano tinham sempre como fio condutor a chegada de um visitante ao Rio de Janeiro. Esse visitante poderia ser alguém de uma família do interior, um deus do Olimpo (!), um chinês, um anjo ou um enviado de Satanás. Qualquer que fosse a personagem, seu grande problema era enfrentar a cidade e suas mazelas. Escritas em prosa e verso e compostas de quadros relativamente independentes, as Revistas traziam ao palco personagens alegóricas como a Fome, a Malária, a Política. Em O Bilontra (1885), por exemplo, o Trabalho e a Ociosidade disputam a alma do atormentado Faustino (numa bemhumorada alusão à personagem Fausto, do alemão Goethe). Além dessas alegorias, Arthur Azevedo criou personagens-tipo, que vão permanecer vivos ao longo da história do teatro brasileiro, como a mulata, o português, o caipira, o malandro. Os espetáculos terminavam com uma apoteose, na qual se homenageava uma figura de prestígio da época. 143

Durante três décadas (entre 1877 e 1907), as Revistas de Ano foram apresentadas com enorme sucesso popular. Algumas delas foram escritas por Arthur em parceria com seu irmão, Aluísio Azevedo. Mas sempre foram duramente criticadas pelos grandes escritores do período. canção: Em resposta a essas críticas, Arthur Azevedo definia suas Revistas com auxílio de uma Eu sou a Revista de Ano Brasileira Quem diz que as artes profano Diz asneira Aqui como em toda parte Sou benquista Porque há sempre um pouco de arte Na revista... 144 Esse pouco de arte tem sido objeto de estudo por pesquisadores das últimas décadas. Um interessante estudo de Flora Sussekind, As Revistas de Ano e a invenção do Rio de Janeiro (Ed. Nova Fronteira, 1986), mostra que o sucesso das revistas corresponde ao processo de urbanização do Rio de Janeiro. O público identificava-se com as angústias sofridas pelas personagens que sentiam dificuldade de se adaptar às rápidas transformações por que passava a cidade e, rindo delas, ria de si mesmo, possibilitando assim um exercício sistemático de um olhar moderno sobre o que parecia eterno. As primeiras Revistas foram encenadas num Brasil monarquista e escravocrata. Elas continuaram sendo apresentadas durante os primeiros anos da República com todas as utopias que esta engendrou. Segundo a pesquisadora, as grandes protagonistas das Revistas de Ano eram a cidade e a modernização do país. Seu maior efeito foi o de preparar as platéias para integrar-se à nova realidade. Fernando Mencarelli, pesquisador da Unicamp, em seu trabalho A cena aberta: a absolvição de um bilontra (Editora da Unicamp, 1999), estuda o fenômeno das Revistas por seu caráter plural e documentarista. Segundo ele, a Revista é um verdadeiro caleidoscópio por meio do qual se enxerga a cidade partida, em que as classes sociais vivem conflitos surdos ou abertos e em que fraudes e trapaças se espalham, hoje como ontem, em toda parte. A leitura das peças de Arthur Azevedo mostra que elas superam os episódios circunstanciais que lhes deram origem. São atualíssimas e até hoje fazem a delícia do grande público. A crítica