SEGURO PRIVADO: ENTRE A SOLIDARIEDADE E O RISCO



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Transcrição:

CLÁUDIO GANDA SEGURO PRIVADO: ENTRE A SOLIDARIEDADE E O RISCO DOUTORADO EM DIREITO PUC/São Paulo 2.010

CLÁUDIO GANDA SEGURO PRIVADO: ENTRE A SOLIDARIEDADE E O RISCO Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Estudos Pós-graduados Stricto Sensu em Filosofia do Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTOR em Direito, sob orientação do Professor Doutor Nelson Nery Júnior. PUC/São Paulo 2.010

GANDA, Cláudio CA Seguro Privado: Entre a Solidariedade e o Risco. Orientador: Professor Doutor Nelson Nery Júnior. São Paulo/SP: 2010, 437 págs. Tese (Doutorado em Direito) Centro de Estudos Pós-graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP. 1. Homem. 2. Sociedade. 3. Contratualismo. 4. Ética. 5. Política. 6. Economia. 7. Riscos. 8. Seguro. 9. Solidarismo. 10. Mutualismo. CDD -

Banca Examinadora Professor Doutor NELSON NERY JÚNIOR (Presidente PUC/SP) Professor Doutor RICARDO HASSON SAYEG (PUC/SP) Professor Doutor PAULO LUIS DE TOLEDO PIZA (FGV) Professor Doutor ANTONIO MÁRCIO DA CUNHA GUIMARÃES (PUC/SP) Professor Doutor LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO (USP - USJT)

À D. Geralda Ganda, sempre! À Rose; O tempo, senhor de todas as curas, nos concede a oportunidade de experimentá-lo a cada sopro de nossas existências, a fim de que possamos cumprir essa travessia colhendo o que de melhor a vida pode oferecer: a sabedoria. A partir dela todas as demais coisas, em que pesem os seus defeitos, se revelam perfeitas e, como num jogo de quebra-cabeça, a harmonia que resulta do encontro dos seres desnuda tamanha perfeição que não ousamos jamais duvidar de que seja eterna. Assim tenho colhido até aqui e é isto que me permite hoje saber: Minha eterna Rose, amo você! À Maria Izabella; A emoção que transborda do meu coração confessa o quão abençoado sou e, mesmo sem que ainda lhe tivesse visto os olhinhos e sem lhe ter tomado nos braços, sabia o quanto te amo. Maria Izabella, amada filha, seja bem vinda! À Adriana, Carolina e Cláudia; Presentes da minha vida, presentes na minha vida, vocês representam, junto com Maria Izabella, o que de melhor posso deixar aqui na Terra: os melhores tributos à D. Geralda.

Ao Clézio (In Memoriam); A vida, falível e finita, floresce cândida e leve para os bem aventurados que, por misericórdia ou benção, se nutrem no convívio com alguns poucos seres que, de tão iluminados e generosos, tornam esse nosso viver mais intenso e útil. Luzes que são, deixam-nos também iluminados, e, leves, projetam-se para o infinito, afastando-se sem nos deixar. Clézio, meu querido irmão, tenho você eternamente comigo!

Agradecimentos. Agradecemos, primeiramente, na pessoa do Magnífico Reitor, Professor Doutor Dirceu de Mello, à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, instituição de ensino superior de notória respeitabilidade em âmbito nacional e internacional, e cujo compromisso social e científico permite a produção e difusão dos saberes, da edificação e emancipação humana; Ao Professor Doutor Nelson Nery Júnior, em relação a quem, como ato de elementar justiça, cumpre-nos demonstrar respeito e profunda admiração, e a quem devemos, como tem se tornado costumeiro, para nossa felicidade, valiosos ensinamentos, dedicada atenção e inesgotável paciência. Ao Professor Doutor Ricardo Hasson Sayeg, seleto amigo, irmão que contagia a cada dia com demonstrações renovadas de bondade e sabedoria, virtudes que o dignificam sem enfraquecê-lo em vaidades; Ao Professor Doutor Antonio Márcio da Cunha Guimarães, douto no tema securitário, companheiro de magistério jurídico nesta PUC/SP e distinto amigo que enobrece a trajetória de quem o cerca; Ao querido Dr. Maurício Rodrigues Hortêncio, ilustre advogado, amigo incondicional, irmão predileto que não esmoreceu no apoio e estímulo permanentes, não obstante os pesados encargos dessa escolha; Agradecimentos, que se estendem ao infinito com o propósito de que alcancem o saudoso Dr. Paulo de Oliveira Filho, ilustre professor, com quem tivemos a honra da convivência e, de quem, a oportunidade de haurir conhecimentos e exemplo de vida. Por fim, amadas Rose e Maria Isabella, riquezas à vista de quem à dívida de gratidão se soma a penitência pela intensa e prolongada privação do compartilhamento diário, minha eterna gratidão.

O passado não é imóvel pelo simples fato de ser passado. Muda-se a posição do observador no tempo, e eis que uma luz nova se projeta sobre os fatos, revelando aspectos imprevistos, detalhes que alteram substancialmente o quadro histórico, abalando convicções das mais robustas. (Miguel Reale) 1 1 In Horizontes do Direito e da História, pág. 3.

Todo homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente e que, por consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda (Friedrich Nietzsche) 2 2 In O nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo, pág. 28.

RESUMO Este trabalho se revela desdobramento e aprofundamento da dissertação intitulada O Contrato de Seguro Privado e os Controles de Abusividade, com a qual o autor obteve, na mesma instituição e também sob orientação do ilustre Professor Doutor Nelson Nery Júnior, o título de Mestre em Direito. Enquanto naquele trabalho nos ocupávamos de estudar o contrato de seguro sob a sua estruturação interna, princípios regentes, elementos e características, víamos sobressair questionamentos acerca da essência desse negócio jurídico, os quais padecem de literatura específica e autorizada, sobretudo no âmbito acadêmico, dado que nos estimula e, mais que isso, nos desafia a enfrentar o tema segundo os seus vetores naturais humanos para, a partir deles, buscar uma conformação de cunho racional. Adotamos, pois, como objetivo central deste trabalho o desafio de desenvolver um projeto de investigação do contrato de seguro, visando fazer uma análise e reflexão crítica a partir dos fatores de eclosão psicológica da necessidade de segurança e do interesse securitário, almejando vislumbrar os fundamentos dessa prática, quiçá, sob nova perspectiva jurídica, sobretudo no que concerne à tradicional dicotomia entre seguro social e seguro privado. Com efeito, a despeito de se tê-lo por negócio econômico ou jurídico, vimos que o seguro é antes uma manifestação humana involuntária, inadvertida e desorganizada, com origem no processo biológico e desenvolvimento no campo de domínio da psicologia. Desse modo, avultam-se, do cotejo, liames da matéria com conhecimentos de trato das ciências exatas, notadamente as ciências matemáticas, e aprofundadamente nas ciências humanas, sendo possível, assim nos parece, viável o estudo do seguro também dentro dos domínios da antropologia, da psicologia, da sociologia, da economia, do Direito e do Estado. A bem demonstrar a ambivalência do seguro, basta alinharmos de início o seu incondicional multilateralismo, assim como a inexpugnável hibridez dos interesses individuais e coletivos que o marcam, os quais ainda se desdobram, como visto, em difusos, tamanha a pujança e abrangência econômico-social que lhe são peculiares, com o seu trato adicional no campo do direito privado. Mesmo em conta do aspecto marcadamente patrimonial que o caracteriza de modo indelével, permite-se atestar que o seguro não se cinge a barreiras de ordem econômica ou cultural, sendo até certo ponto natural a sua expansão para além dos marcos fronteiriços nacionais, com tendência globalizante. Demarcadas as experiências do seguro anglo-saxão, de vocação capitalista e traço individualista ao menos no que toca aos resultados financeiros da operação e o de origem alpina, este centrado no mutualismo, o estudo dirige o seu olhar para os princípios informativos da operação, com destaque para o mutualismo e a solidariedade, essenciais e comuns a qualquer modelo securitário, não sem antes indagar sobre ser de ordem pública toda e qualquer operação de seguro, dada a supremacia do bem comum almejado pela prática e preponderância do aspecto coletivo sobre o individual. PALAVRAS-CHAVE: 1. Homem. 2. Sociedade. 3. Contratualismo. 4. Política. 5. Ética. 6. Economia. 7. Riscos. 8. Seguro. 9. Solidarismo. 10. Mutualismo.

ABSTRACT This work is an unfolding and in depth thesis entitled: "The insurance contract and private control of abuse". This thesis was supervised under the guidance of renowned professor Dr. Nelson Nery Junior, MA Law. While we examined insurance contracts under their structures, their principles in which they govern, and in their elements and characteristics, several questions arose about the essence of this legal transaction. The topic lacks peer reviewed literature and academic articles. Therefore, it is a challenging subject and we would like to address the issues of human instinct and find a conformation of human nature in which insurance contracts act. Therefore, the objective of this paper is to challenge of developing a research project about insurance contracts in order to make an analysis and critical reflexion from the psychological factors in which the need for security has developed and in the interest of insurance. The aim of this paper is to discuss the reasons for such practice under a new legal perspective, especially regarding the traditional dichotomy between social insurance and private insurance. In spite of similar economic or legal structures, we noted that insurance is involuntary, inadvertent and disorganized. The origin of insurance is a biological process in which the field of psychology has developed. Moreover, sciences such as mathematics and even humanities and social sciences such as: anthropology, psychology, sociology, economics, law and state, have manifested the issue even further. A good example of insurance law, in which aligns unconditional multilateralism, as well as the impregnable hybrid of individual and collective interests that mark it, unfolds in such that is a breadth and strength of the socio-economic situation that is peculiar to, and in which has additional tract on the field of private law. In regard to the predominant aspect of society, insurance policies cannot be limited to economic or cultural barriers, since they are likely to expand beyond their national border, as a result of globalization. As demonstrated in the instances of the Anglo-Saxon insurance policy, capitalism and individualism at least in financial situations and within the Alpine region, it is centred on the communitarianism. This study looks at the principle information of the operation, and more specifically at mutualism and solidarity, which are essential and common to any model insurance. However, not before inquiring about whether or not an insurance transaction is a good public policy, the interest of the whole must be overlooked by the interest of the individual. Keywords: 1. Man. 2. Society. 3. Contractualism 4. Politics 5. Ethics. 6. Economy. 7. Risks. 8. Insurance. 9. Solidarism 10. Mutualism.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 19 PRIMEIRA PARTE: O HOMEM Capítulo I: Aproximação através da Antropologia... 34 I.1. A antropologia como ciência... 34 I.2. A Antropologia biológica... 38 I.3. A Antropologia sócio-cultural... 54 I.3.1. Antropologia arqueológica... 55 I.3.2. Arqueologia lingüística... 57 Capítulo II: Aproximação através da Psicologia... 58 II.1. Propriedades primárias do indivíduo (as faculdades cognitivas humanas)... 61 II.1.1. O pensamento... 64 II.1.2. A inteligência... 66 II.1.3. O conhecimento... 68 II.1.4. A consciência... 70 II.1.4.1. Uma das categorias do espírito humano: a noção de pessoa e do eu... 73 II.1.5. A linguagem... 77 II.1.6. A liberdade... 81 II.2. Os sentimentos, paixões e vícios na órbita do indivíduo: a etiologia da neurose... 85 II.2.1. O desamparo e a angústia... 87 II.2.2. A violência e o medo... 89 II.2.3. O medo e o imaginário do medo... 94 II.2.4. Incerteza, insegurança, ansiedade...... 103 II.2.5. Perigo e risco... 108 II.2.6. O homo ludens... 112 Capítulo III: Aproximação através da Sociologia... 117 III.1. A natureza social do homem... 119 III.2. A sociologia como ciência... 122 SEGUNDA PARTE: A HUMANIDADE Capítulo I: Em busca de nós mesmos... 131 I.1. O mundo através da Mitologia... 133 I.2. O mundo através da Filosofia... 140 I.3. O mundo através das Ciências... 147 I.4. O mundo através das Revoluções... 152 TERCEIRA PARTE: A SOCIEDADE Capítulo I:. Conceitos sociológicos fundamentais (contatos, interações, relações e fatos sociais)... 156 I.1. Contatos sociais... 158 I..1.1. Isolamento social... 160 I.2. Interações sociais ou reciprocidade das ações sociais... 162 I.3. Relações sociais... 164 I.3.1. Cooperação... 165

I.3.2. Competição... 166 I.4. Conflitos sociais e modos de superação... 169 I.4.1. Adaptação... 170 I.4.2. Acomodação... 170 I.4.3. Assimilação... 171 I.4.4. Aculturação... 172 I.5. Fatos sociais... 173 Capítulo II: Conceitos sociológicos fundamentais (estrutura, regulamentação e instituições sociais)... 176 II.1. Estrutura social... 176 II.2. Regulamentação e Controle social... 178 II.3. Instituições sociais... 180 II.3.1. A Família... 182 II.3.2. O Estado... 184 II.3.2.1. O interesse público e o privado... 186 II.3.3. A Igreja... 189 II.3.4. Instituições Educacionais... 192 II.3.5. Instituições Econômicas... 192 Capítulo III: A vida em sociedade... 195 III.1. A Cultura... 197 III.1.1. Socialização... 198 III.2. A linguagem... 209 III.2.1. A Comunicação social... 212 III.2.1.1. A indústria cultural... 214 III.2.1.2. A ideologia... 216 III.3. A Política... 220 III.4. O Comércio... 221 III.6. A Economia... 224 III.6.1. O Capitalismo... 228 QUARTA PARTE: O SEGURO Capítulo I: Seguro e segurança: o aspecto semântico... 235 Capítulo II: A etiologia do seguro... 239 II.1: Angústia, medo, incerteza, insegurança, risco e perigo: crepúsculo da felicidade?... 247 II.2: Gestão dos riscos... 252 II.2.1. Modos de enfrentamento dos riscos... 256 II.2.1.a. Modos de gestão individual de riscos: prevenção e poupança... 258 i. Prevenção... 258 ii. Retenção... 260 iii. Distribuição... 263 II.2.1.b. Modos de gestão coletiva de riscos: partilha e transferência... 264 i. Partilha dos riscos... 264 ii. Transferência dos riscos entre agentes... 267 II.2.2. O interesse comunitário no enfrentamento dos riscos... 268

II.2.3. A segurança da humanidade através do contrato social... 271 II.2.3.a. A fundação da sociedade... 275 II.3. Seguro: atomização do contrato social... 282 i) Coletivismo... 283 ii) Comunitarismo... 287 iii) Solidarismo... 290 iv) Mutualismo... 293 Capítulo III: Manifestação do seguro... 298 III.1. O seguro como jogo ou aposta... 300 III.2. O seguro técnico... 303 i. A empresarialidade... 305 ii. Seguro é prestação de serviços... 307 iii. Seguro é relação de consumo... 310 iv. Obrigação de meio, de resultado ou de garantia?... 313 v. Da atividade securitária não resulta risco para a seguradora (teoria da base objetiva do negócio)... 319 vi. Contrato multilateral e multitudinário... 327 vii. Função social do contrato de seguro... 330 viii. Da inexistência de alienação de patrimônio pelo do contrato de seguro... 334 III.2.1: O seguro mútuo... 344 III.2.2: O seguro mercantil... 351 III.2.3: O seguro alpino... 360 III.2.4. O seguro social... 363 Capítulo IV: O direito do seguro... 370 IV.1. O contrato de seguro brasileiro de lega lata... 379 IV.2. O contrato de seguro segundo a doutrina... 385 IV.3. Jurisprudência do seguro... 387 IV.3. O contrato de seguro brasileiro de lege ferenda... 392 QUINTA PARTE: CONCLUSÕES... 397 BIBLIOGRAFIA... 412

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AAA American Association for the Advancement of Science AA.VV. autores vários a.c. antes de Cristo ac. acórdão adap. adaptação ADC Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADIn Ação Direta de Inconstitucionalidade adj. adjetivo; adjunto AGF Assurances Générales de France AGU Advocacia Geral da União al. alemão ALCA Associação de Livre Comércio das Américas ampl. ampliado (a) ANS Agência Nacional de Saúde Suplementar art./arts. artigo/artigos atual. atualizado (a) BACEN Banco Central do Brasil BGB Código Civil alemão (Bügerliches Gesetzbuch) ca. circa; cerca de; por volta de CADE Conselho Administrativo de Defesa Econômica Câm. Câmara Cap. Capítulo cc. centímetros cúbicos c/c. combinado com CC/16 Código Civil brasileiro (Lei Federal nº 3.071/1916) CC/02 Código Civil brasileiro (Lei Federal nº 10.406/2002) CDC Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90) CECA Comunidade Européia do Carvão e do Aço CEE Comunidade Econômica Européia CEEA Comunidade Européia de Energia Atômica cf. conforme; confira, confronte, compare CF Constituição Federal CF/88 Constituição Federal de 1988 cit. citado; citação civ. civil; cível CONSU Conselho Nacional de Saúde Suplementar CONSIF Confederação Nacional do Sistema Financeiro coord. cordenação; coordenador; coordenadora CMN Conselho Monetário nacional CPC Código de Processo Civil cs. indica pronúncia greco-italiana do x CVM Comissão de Valores Mobiliários D. Dom d.c. depois de Cristo Des. Desembargador (a) DJ Diário da Justiça DL Decreto-lei DNA Deoxyribonucleic acid; no vernáculo Ácido Desoxirribonucleico

DM Dissertação de Mestrado DOE Diário Oficial do Estado (citação: abreviatura seguida da sigla do Estado) DOU Diário Oficial da União Dr. Doutor Dra. Doutora EC emenda constitucional ECA/USP Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo ed. edição EDIPUCRS Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul EDUNEB Editora da Universidade do Estado da Bahia EEE Espaço Econômico Europeu EFTA Associação Européia do Comércio Livre e.g. exempli gratia em. ementa; ementário epi equipamento de proteção individual est. estadual et. al. e outros Et. Nic. Ética a Nicômaco et. seq. e seguintes EUA Estados Unidos da América Exeg. Exegese FEA-USP Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo fed. federal FGV Fundação Getúlio Vargas FEMAR Fundação de Estudos do Mar (Brasil: Botafogo Rio de Janeiro/RJ) fr. francês FUCAP Faculdades Unidas Capivari - Capivari de Baixo/SC FUNENSEG Fundação Escola Nacional de Seguros geom. geometria gr. grego ibidem; ibid. do mesmo autor, em página diferente ou mesma obra idem; id. referência subsequente de um mesmo autor i.e. isto é inc. inciso in. inglês IRB Instituto de Resseguros do Brasil IRB-Brasil RE IRB Brasil Resseguros S/A. it. italiano j. julgado / julgamento LACP Lei da Ação Civil Pública lat.; lt. latim LC Lei Complementar loc. cit. no trecho citado Maa Milhões de anos MEFP Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento MERCOSUL Mercado Comum das Américas Min. Ministro (a) m.v. maioria de votos n.; n número Nm Nome masculino

ob. obra obs. observação OIT Organização Internacional do Trabalho ONU Organização das Nações Unidas op. cit.; opus citatm obra citada p.; parágrafo p.; pág. página págs. páginas par. ún. parágrafo único passim por aqui e ali; em diversas passagens Profª. Professora Prof. Professor Prov. provimento PUC/SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Rel. Relator (a) res. resolução rev. revisão ou revisado (a) séc.; s. século seç. seção s/d; [s. d.] sem data s/e; [s. e.] sem editora s.f. substantivo feminino sic assim mesmo s.m. substantivo masculino s/n sem número SNSP Sistema Nacional de Seguros Privados SP São Paulo ss. seguintes STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça SUSEP Superintendência de Seguros Privados T. Turma t. tomo TACiv/SP Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (extinto) tb. também TCE Tratado da Comunidade Européia tirag. tiragem TJMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJRJ Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo t.l.a. tradução livre do autor Trad. Tradução; tradutor(a) UFPA Universidade Federal do Pará un. unânime UNCTAD United Nations Conference on Trade anda Development UNESP Universidade do Estado de São Paulo UniFMU/SP Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - São Paulo v.g. verbi gratia vol. volume v.u. votação unânime

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Cameleiros da Mesopotâmia... 344 Figura 2 Navios... 351 Figura 3 The Lloyd s Coffee House... 359

19 INTRODUÇÃO A tarefa não é contemplar o que nunca foi contemplado, mas pensar como ainda não se pensou sobre o que todo mundo tem diante dos olhos. (Schopenhauer) 1 O tema exposto no presente ensaio foi eleito dentre outras alternativas por possibilitar relevante e oportuna discussão em torno da atividade securitária de caráter privado em todo o mundo, sobretudo no que respeita às suas repercussões sociais, econômicas e jurídicas, jornada que se abre ante a perspectiva de releitura e de ressignificação do contrato de seguro, tomado o mesmo a partir dos elementos técnicos e jurídicos envolvidos, com possível revisão da hermenêutica que o envolve desde a sua aparição organizada no Renascimento, tudo com o escopo de sua reconfiguração ou reclassificação no âmbito do Direito. 1 Apud Madeleine Grawitz, Méthodes des Sciences Sociales. Paris: Dalloz, 1981, pág. 347.

20 Trata-se, o seguro, de mecanismo de prevenção contra riscos que tem origem no espírito de solidariedade, sentimento inerente ao homem, o que haveria de imprimir conotação exclusivamente comunitária à atividade, modelo em que a solução econômica se constrói pela repartição dos riscos entre uma mutualidade e cujos resultados deveriam reverter exclusivamente para o grupo sob a forma de investimentos e de fomento ao desenvolvimento social equilibrado, meio de cumprimento dos objetivos fundamentais da República que traduzem o escopo do desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, I). No entanto, iniciada nos negócios a riscos do mar, a atividade securitária adquiriu o traço da transferência de riscos, modalidade contratual em que a parte tomadora assume para si as consequências adversas oriundas dos riscos eleitos, com objetivo de lucro. Assim, nascida e cultivada em meio ao efervescente comércio marítimo europeu desde os primeiros sinais de esgotamento do modelo feudal, a atividade securitária sempre aguçou a imaginação do homem comum, ao mesmo tempo em que lhe despertava fascínio, especialmente em virtude da elevada margem de prosperidade dos capitalistas financiadores das expedições, via de enriquecimento, porém, que não se abria senão mediante assunção de elevada carga de riscos. Tais circunstâncias cobriam o seguro de admiração e perplexidade, na mesma dimensão de como, nos salões de jogos, as apostas em andamento atraem e mantêm absorta, à volta da roleta, uma boa parcela de admiradores. A trajetória do homem moderno, que assim passou a ser adjetivado em virtude do contexto histórico-social experimentado a partir de fins do século XVIII, tendo passado, e.g., pela Reforma Protestante e pela revolução racionalista cartesiana, encontrou na valorização do indivíduo e da razão os pilares do progresso humano rumo à felicidade, movimento que, embalado pelas

21 ideias de Montesquieu e Rousseau, dentre outros, desembocou na Revolução Francesa, marco principal de emergência e de preponderância do indivíduo. Com efeito, consolidados os ideais iluministas, inaugurada a soberania do povo a partir da qual se alicerça o Estado de Direito, desencadeou-se a implantação de governos presididos pela Razão. A esse modelo de Estado incumbe, pois, a função precípua de promover a segurança que o máximo de liberdade individual passou a exigir, respeitado o ideal do laissez-faire, laissez-passer 2, fundamento da garantia de que o fluxo de capital estivesse livre de qualquer interferência do Estado, o que, sabemos, assegurou a ascensão da burguesia. A nosso ver, a despeito de ser prática liberal recorrente a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos, sobressai coerente com os desígnios egoísticos do liberalismo a dicotomização do seguro em público e privado, olvidado, por óbvio, o trinômio iluminista essencial que ditava as palavras de ordem no levante de 1789: liberté, égalité, fraternité. 3 Agora, em tempos de inegável redimensionamento do individualismo jurídico, que se forjou a reboque da Revolução burguesa de 1.789, e de supremacia do mandamento legal da função social do contrato, na sintonia dos princípios constitucionais da Carta Política de 88 e também do recém promulgado Código Civil brasileiro com o seu apego ao princípio da socialidade 4, quer nos parecer enfrentar crise de paradigma o contrato de seguro pautado pela transferência de riscos, mormente se tomarmos a observação sob o ângulo da empresa seguradora como mera administradora de um fundo comunitário, o que desafia a construção de um novo processo de relações entre 2 Deixe à vontade; deixe passar. 3 liberdade, igualdade, fraternidade. 4 Ricardo Bechara dos Santos, na sua obra Direito de Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria, já no preâmbulo da mesma exalta que o princípio da socialidade significa a passagem corajosa de um modelo individualista para um modelo comprometido com a função social do contrato (pág. 1).

22 capital, trabalho e Estado, sem perder de vista, nessa mesma dinâmica, os ditames da função social da propriedade e, na sua extensão, da empresa. Tal paradoxo oferece um campo de pesquisa bastante fértil no plano teórico, posto que ainda pouco explorado. Trata-se de tema social, econômico e jurídico de crescente importância, que, bem por isso, interessa não só aos estudiosos e operadores do direito, bem como a toda a sociedade, o que, nesse sentido, exige do investigador uma certa mobilidade do intelecto como pressuposto para a produção de um novo conhecimento em torno do objeto já tido sob o domínio da razão. Seguimos, então, os passos metodológicos sugeridos pelo eminente professor Luciano de Camargo Penteado, Doutor e Mestre pela Universidade de São Paulo USP, que em sua obra do Direito das Coisas, leciona: O direito normalmente tem sido estudado a partir da lei. Parte-se dela para depois, com a citação de jurisprudência, exemplificar o que se passa. Trata-se assim, o caso concreto, de modo residual, dando-se pouco valor à perspectiva judicial que o sistema de direito apresenta. Entretanto, muitas vezes, é preciso inverter a ordem para pensar o direito a partir do caso concreto, para dele extrair as generalizações necessárias ao conhecimento científico do direito. 5 O seguro, a fortiori, está a reclamar esta postura dos estudiosos, tendo em vista que as incontáveis peregrinações em torno do tema mostram marchas e contramarchas sobre as mesmas pegadas e trilhas inicialmente abertas em direção ao seu conhecimento, nada úteis, porém, para desvendar-lhe os mistérios mais evidentes. E nessa linha de propósito, a pesquisa aqui implementada busca se filiar à corrente doutrinária do capitalismo humanista, cujo pensamento orienta estudos voltados aos princípios e fundamentos que sustentam uma teoria do Direito que 5 Op cit. pág. 28.

23 harmoniza os aspectos econômicos do capitalismo com os pilares dos direitos humanos e sociais, tudo sob a ótica do capitalismo democrático eleito pela Constituição Federal de 1988, com sustentação nos pilares da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais da livre iniciativa e do trabalho humano, com vistas a assegurar a todos condições de vida digna, sob os ditames da Justiça Social. 6 Nesse compasso, adotada como referencial teórico a antítese da corrente de pensamento liberal ou neoliberal que defende o livre mercado, assim também expressada com ênfase pela chamada Escola de Chicago 7, neste estudo envidaremos esforço teórico na empreitada de demonstrar o que entendemos, no caso do seguro e em decorrência da visão puramente capitalista, consistir em inconsistência fundamental marcada pela indevida apropriação do instituto do seguro pelo capital, em detrimento do desenvolvimento econômico, social, político e cultural. Para além disso, independentemente da frontal inconsistência teórica acima referida, a mais aguçar as dúvidas em torno da mencionada crise paradigmática do contrato de seguro, tomemos em lembrança as lições de Mauro Cappelletti coligidas em nossa já aludida dissertação de Mestrado O Contrato de Seguro Privado e os Controles de Abusividade 8, as quais dão conta de que a 6 A respeito da Doutrina Humanista de Direito Econômico, vide o Grupo de Estudos de Direito Econômico, da PUC/SP, coordenado pelo eminente Professor Doutor Ricardo Hasson Sayeg. 7 Escola de pensamento econômico monetarista, reunida em torno de Milton Friedman e de outros professores da Universidade de Chicago, e que sustenta a possibilidade de manter-se a estabilidade de uma economia capitalista apenas por meio de medidas monetárias, baseadas nas forças espontâneas do mercado. Milton Friedman, o principal teórico do grupo, considera a provisão de dinheiro o fator central de controle no processo de desenvolvimento econômico. Explica as flutuações da atividade econômica não pelas variações do investimento, mas apenas pelas variações de oferta de dinheiro entendida como a demanda monetária que depende da renda permanente dos agentes econômicos. [...] Apoiando-se numa forte crença nos mecanismos de competição e nas forças do livre mercado, a Escola de Chicago é contrária a qualquer política poskeynesiana de participação do Estado na expansão das atividades econômicas, sustentando que qualquer intervenção desse tipo é inútil e nociva e que apenas uma correta política monetária pode levar à estabilidade econômica. Além de Friedman, destacamse na Escola de Chicago Henry Simons, F. A. von Hayek, Frank Knight e George Stigler. (Paulo Sandroni, Dicionário de Economia...,; op. cit. págs. 305/306, verbete : Escola de Chicago. 8 Cláudio Ganda, O Contrato de Seguro Privado e os Controles de Abusividade. São Paulo: PUC/SP, 2004. Dissertação de Mestrado, referida neste ensaio, doravante, simplesmente com a abreviatura DM.

24 tradicional dicotomia do interesse em público (o indivíduo em relação ao Estado) e privado (os indivíduos em inter-relação) sofreu acentuada transformação, pois entre eles passaram a ser vislumbrados os interesses intermediários que transbordam daqueles meramente individuais, sem, contudo, alcançar a categoria de interesse público, fazendo emergir os direitos metaindividuais ou interesses de grupos de indivíduos. 9 De fato: Há um momento no qual os interesses individuais, agrupando-se, despojam-se de sua carga de egoísmo, para formar um novo ente: o interesse coletivo. Aí, não se trata de um reforço à tutela dos interesses individuais, conferido pelo grupo, mas da defesa de um interesse que depassa a mera soma dos interesses pessoais, agrupados. Esses interesses coletivos encontram seu lugar a meio caminho entre os interesses particulares e o interesse público ou geral... 10 No caso das operações de seguro, certo que os interesses nelas enfeixados extravasam os dos sujeitos comumente eleitos, a saber, segurados e seguradora, vemos sobressair aqueles próprios do conjunto dos segurados que, em última análise, é titular da formação do fundo comum de que se vale a seguradora para garantir o ressarcimento de sinistros cobertos e, assim, adimplir com um dos aspectos de sua obrigação de promover a garantia contratada. Visto sob esta lente, não é menos certo que a seguradora, no papel de agente do pagamento da importância segurada, por exemplo, dela não é titular, posto que o faz por terceiro, no caso a mutualidade de segurados. Nessa perspectiva, forçoso concluir que se a seguradora ressarci mal um sinistro, enriquece indevidamente o segurado, em prejuízo da comunidade dos seus segurados, já que o faz com recursos do fundo comum; no viés oposto, 9 Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. São Paulo: Revista de Processo v. 2, nº 5, págs. 129/159, Jan./Mar. 1.977. 10 Rodolfo de Camargo Mancuso, Interesses Difusos.Conceito e legitimação para agir, págs. 46/47.