Latusa digital ano 2 Nº 15 junho de 2005



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Latusa digital ano 2 Nº 15 junho de 2005 Identificação e sintoma Jaime Araújo Oliveira* A identificação em Freud Podemos situar o início da investigação sobre este tema na obra de Freud em Introdução ao Narcisismo (1914), no qual ele cunha as noções de eu ideal e ideal do eu, sugerindo ainda a existência de um terceiro agente psíquico especial, base do que chamará de supereu. O processo de distinção desses conceitos foi complexo e prolongado, só se esclarecendo com Lacan, em O Seminário 1, em seu Esquema dos ideais da pessoa. Mas o que importa em nossa discussão é o que unifica estes conceitos, e que levou Lacan a designá-los como formações do eu : o fato de tratar-se de instâncias inconscientes do eu, concepção que representará um dos avanços da segunda tópica freudiana, introduzida em O eu e o isso (1923). Para tratar da origem destas instâncias, Freud, neste último texto, toma como modelo a noção de introjeção, por identificação, de um objeto perdido utilizada anteriormente para explicar o luto e a melancolia. Freud a aplica agora ao Édipo. O objeto perdido, e introjetado por identificação, seria aqui o genitor do mesmo sexo, sendo a causa da perda a rivalidade com este na triangulação edípica. A idéia desta identificação apontava para uma diferença entre homens e mulheres. Eles se identificariam ao pai, e elas, à mãe, o que levou Jung a formular a noção de complexo de Electra, rejeitada por Freud. * Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). 1

Em A dissolução do complexo de Édipo e em Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, Freud revê esta formulação, substituindo a noção de rivalidade com o genitor do mesmo sexo pelo conceito de complexo de castração. Na primeira formulação deste conceito (1908), ele distinguira duas versões do complexo: a masculina e a feminina, a angústia de castração e a inveja do pênis. Aplicando essas noções à questão da dissolução do complexo de Édipo, ele diz agora que, no final do Édipo, o que está em jogo, tanto para homens como para mulheres, é uma identificação ao Pai. Porém, em Psicologia de grupo e análise do eu (1921), no capítulo 7, ele já indicara que a identificação não se faz propriamente com uma pessoa e sim com um único aspecto desta. A expressão usada por Freud, tornada célebre por Lacan, é que a identificação se faz com um traço isolado da pessoa no original alemão einen einziger Zug ( um único traço ), base do que Lacan elevará mais tarde à dignidade de conceito: o de traço unário. A identificação em Lacan Nos seus primeiros escritos, dos anos 30 e 40, Lacan ainda compartilha com os chamados pós-freudianos a ênfase no que ele designará mais tarde como Imaginário, ao cunhar, a partir de 1953, a noção de três registros da experiência humana, que irá se tornar seu paradigma teórico central. Assim, sua primeira abordagem da identificação, no Estádio do espelho, é centrada no registro Imaginário. Trata-se da introjeção da imagem do outro, pelo infans até então despedaçado pela fragmentação das pulsões parciais, base da constituição da função do eu. Sobre a natureza desse outro, a princípio materno, que fornece a imagem, o escrito A agressividade 2

em psicanálise (1948) fala, à maneira do Freud de 1923, em uma identificação secundária, por introjeção da imago do genitor do mesmo sexo. 1 O início dos anos 50 o chamado primeiro ensino de Lacan é marcado pela ênfase no Simbólico. No Seminário 5 este conceito permitirá a Lacan realizar uma releitura do Édipo, decomposto em três tempos. Como conclusão, há uma superação da formulação de 1948, que leva Lacan ao Freud de 1924/25. Ou seja: na neurose, para ambos os sexos, o ideal do eu resulta de uma identificação ao pai, no final do Édipo. O pai é caracterizado aqui como Pai Real, no sentido de pai da realidade. A noção de Real sendo tomada na forma que, como aponta Miller 2, este termo adquire também no Esquema R. No capítulo 9 do Curso citado, Miller distingue esta noção de Real, que ele chama didaticamente de R2, de outras presentes na obra de Lacan: o Real como prévio (R1), e o Real como resto (R3), situando-as, respectivamente, a partir da relação com os outros dois registros, segundo o esquema abaixo. 3 I --------------> S R1 R2 R3 Assim, diferentemente das duas outras concepções do Real, situadas, respectivamente, num aquém e num além do Imaginário e do Simbólico (concepções que encontram eco em formulações da ciência, especialmente da matemática e da cosmologia, ou da filosofia), a noção de Real usada no sintagma Pai Real do Seminário 5 aponta para algo que se situa entre Imaginário e Simbólico. O que em R.S.I. corresponde ao sentido. Ou seja, algo que se aproxima da significação de Real na linguagem corrente, em oposição ao Real da ciência e da filosofia. 1 LACAN, J.- A agressividade em psicanálise (1948). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 119. 2 MILLER, J.-A.- Los signos del goce (1986). Buenos Aires: Paidós, 1998, capítulo VIII. 3 Idem, p.143. 3

De qualquer forma, a noção lacaniana de metáfora paterna nos mostra o Pai Real reduzido a um significante: o Nome-do-Pai. Um significante qualquer, atribuído pelo sujeito ao Pai, e que apontaria para aquilo que, no Pai, é interpretado como de natureza fálica, ou seja, correspondendo a um suposto saber sobre o desejo do Outro materno. Desta forma, a aparentemente estranha noção de Real como realidade (R2), presente no Esquema R e no sintagma Pai Real, deve ser entendida, como indica Miller 4, como parte do que ele sugere como uma chave para o entendimento do esforço de Lacan em seu primeiro ensino. Ou seja, o que Miller chama de mutação significante, a produção do significante a partir do Imaginário, que ele escreve: I-------->S. 5 No Seminário 8, no capítulo A identificação por Ein Einziger Zug, Lacan extrai conseqüências do texto freudiano sobre a Psicologia de grupo. Se, como vimos até aqui, a origem da identificação é o Pai, e se este é reduzido a um significante (ou seja, ao Simbólico), o passo seguinte é mostrar que este significante é, a princípio, menos do que isso, digamos assim, tendo a natureza de um signo, que só adquire o caráter de significante ao entrar em relação com uma bateria significante, como diz Lacan. 6 Encontramos uma formulação semelhante em um escrito contemporâneo ao Seminário 8, Observações sobre o relatório de Daniel Lagache, do qual Miller extrai esta frase: É a constelação dessas insígnias que constitui para o sujeito o ideal do eu 7. Portanto, uma definição do ideal do eu, núcleo da identificação simbólica. Miller ressalta o uso, por Lacan, de dois termos inusuais: insígnias 4 Idem, capitulo IX. 5 Idem, p. 142. 6 LACAN, J.- O seminário, livro 8: A transferência (1960-61). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. 7 Idem, p. 145. Ver Lacan, J. Observações sobre o relatório de Daniel Lagache. Em: Escritos, op. cit., p. 686. 4

onde se esperaria ler, habitualmente, na pena de Lacan, significantes ; e constelação, ao invés do habitual cadeia, para tratar da forma de articulação desses elementos. Quanto às insígnias, Lacan acrescenta uma definição: um objeto reduzido à sua realidade mais estúpida 8. Ou seja, como na significação deste termo na linguagem corrente usado para designar objetos como bandeiras, brasões, emblemas, medalhas, troféus, etc. trata-se de algo que vale, não por um valor intrínseco, mas apenas por seu valor simbólico. Já o termo constelação indica, evidentemente, uma significação semelhante àquela que tem na astronomia antiga e popular, e/ou na astrologia: uma articulação puramente arbitrária, introduzida de fora, entre elementos no caso, corpos celestes que não têm nenhuma relação intrínseca. Como aponta Miller 9, a frase citada e a definição de ideal do eu nela presente indicam uma substituição, no que diz respeito a esta instância, do tradicional significante saussureano, lingüístico um S 1 binário, articulado a S 2, como na parte superior do Discurso do mestre (S 1 --->S 2 ) por um S 1 unário, disjunto de S 2, como na parte inferior, no lugar da produção, do Discurso do analista (S 2 // S 1 ). Discurso que deve estar em jogo no que é da ordem de um final de análise, indicando-se, assim, o que se espera que seja produzido em tal final. Identificação e final de análise Como sabemos, os pós-freudianos articularam a identificação com o final de análise, concebendo-o como uma identificação com o analista. Este último sendo visto como suposto portador de um Eu forte (derivado da conclusão de sua análise pessoal), e que operaria como modelo identificatório para os pacientes no processo de fortalecimento do Eu, que caracterizava a concepção da direção do tratamento dominante entre aqueles autores. O analista operaria assim, a rigor, como Pai, como ideal do eu a introjetar, a 8 LACAN, J.- Op. cit., p. 684. Ver MILLER, op. cit., p. 145. 9 Cf. MILLER, op. cit., p. 148 5

análise sendo da ordem de um refazer do Édipo, propiciando ao paciente a oportunidade de um new beginning, para usar uma conhecida expressão de Balint. 6

Ora, do ponto de vista lacaniano, isso corresponde a um refazer... da própria neurose. Por este motivo, e superando com isso aquela formulação dos pósfreudianos, Lacan apontará, no Seminário 11, para uma travessia do plano da identificação 10, para um além da identificação 11, isto é, para uma quebra das identificações nas quais até então o sujeito se sustentava, para uma destituição subjetiva. Com isso, apontava para um além do Pai, do Édipo, do falo, do complexo de castração, como aquilo que deve ser posto em jogo num final de análise. Mas isso não implicará, no entanto, em um abandono por Lacan da problemática da identificação ao tratar do final de análise em seu último ensino. Só que, como indicará o Seminário 23, a identificação de que se trata é de natureza bastante distinta, ou seja, uma identificação ao sinthoma. Do symptôme ao sinthome No primeiro ensino de Lacan, o sintoma (grafado em francês como symptôme) é entendido no sentido freudiano. Ou seja, como um significante; uma metáfora; uma mensagem dirigida ao Outro (A); e, em conseqüência, uma formação do inconsciente, a exemplo dos sonhos, lapsos, chistes, etc. Portanto, algo que permite, e mais do que isso, pede uma interpretação (mesmo com a modificação introduzida por Lacan neste conceito para distingui-lo da interpretação hermenêutica, pré-psicanalítica, através, por exemplo, da conhecida fórmula: algo que deve situar-se entre a citação e o enigma ). Na periodização proposta por Miller para ordenar a obra de Lacan, seu último ensino é marcado pela ênfase no Real. O que exigiu dele uma mudança de paradigma teórico: da lingüística e do estruturalismo à matemática (ou seja, à lógica, à topologia, etc.) e à literatura, ou, mais precisamente, uma certa 10 LACAN, J.- O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, p. 258. 11 Idem, ibidem, p. 257. 7

abordagem original deste último campo, por ele designada pelo neologismo Lituraterra (1971). Quanto à matemática, o que lhe interessa é o que ela implica de um Real como resto (o R3, de Miller) inapelável, e estruturalmente, inapreensível foracluído pelo Simbólico. E, em conseqüência, também pelo Imaginário, portanto pelo sentido, pela significação. Em Os signos do gozo, Miller dá o exemplo do clássico problema da quadratura do círculo. Em A erótica do tempo 12 utiliza o encontro das paralelas no infinito. Graciela Brodsky, em O princípio de redução (ou como comer um caracol) lembra o centro inalcançável de formas em espiral encontradas na natureza (como nos caracóis), e a série de Fibonacci e o número de ouro a elas aplicado. Poderíamos acrescentar outro problema clássico, pitagórico, citado por Lacan no Seminário 2 a propósito de célebre passagem do Mênon, de Platão: o da diagonal do quadrado de lado igual a um. Ou, ainda, os Aleph, os números transfinitos, de Cantor, utilizados para representar as diferentes formas pelas quais o infinito se apresenta na matemática. Nas fórmulas quânticas da sexuação do Seminário 20, Lacan usa a lógica matemática para falar também de um Real inapreensível pelo Simbólico, e a partir daí pelo Imaginário e, portanto, pelo sentido. No caso, o que é da ordem do não-todo do feminino, do gozo Outro. Outra utilização de um ramo das matemáticas com o mesmo propósito é o crescente recurso à topologia no último ensino de Lacan. O objetivo é produzir o que ele chama de uma monstração do que é da ordem de um Real não simbolizável nem imaginarizável. Com este propósito, ele lança mão de diferentes figuras topológicas: a banda de Möebius, o toro, o cross-cap, a garrafa de Klein, etc. Em R.S.I., utiliza outra figura topológica, o nó 12 MILLER, J.-A.- A erótica do tempo. Em: Latusa. Rio de Janeiro: EBP-Rio, 2000, p. 36. 8

borromeano (de três elos), para falar das relações entre os três registros da experiência humana. Finalmente, no Seminário 23, explora a idéia de um nó borromeano de quatro elos, para sugerir que, no falante, os três registros não estão amarrados por si mesmos (estariam apenas superpostos no nó), e sim por um 4º elo, que denomina sinthoma, lançando mão de uma forma arcaica da grafia da palavra em francês. Os neuróticos têm em comum o fato de que, o que opera neles como sinthoma, como 4º elo que amarra os demais, é aquilo que Lacan chamara de Nome-do-Pai. Assim, é num caso que sugere uma psicose, embora não desencadeada, ou pelo menos estabilizada, que Lacan buscará apoio neste Seminário para sustentar a idéia de um sinthoma que não seja da ordem do Nome-do-Pai na neurose.trata-se do caso do insigne para usar o witz de Miller 13 escritor James Joyce. Lacan trabalha os textos de Joyce, como Freud (1911) e ele próprio (1955) haviam feito com Schreber, e como o fizera em um de seus primeiros artigos: Escritos inspirados: esquizografia (1931). Dos primeiros livros de Joyce, redigidos ainda em uma linguagem mais tradicional em especial, o autobiográfico Um retrato do artista quando jovem (1914) Lacan extrai episódios que sugerem a presença de algo da ordem de uma foraclusão do Nome-do-Pai. E, também, da ordem da ocorrência, na infância, de algo que representaria um esboço de fenômenos elementares, e que lembra a alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos (1918), mas também as representações ultra-claras, Überdeutlich, que Freud aponta em 1937, como presentes no final de análise, e ainda os relatos 13 A palavra insigne, em francês, pode ser traduzida como insígnia, com as conotações que indicamos. Mas também como insigne (célebre, famoso, notável). Por homofonia, este significante remete a un signe ( um signo ). Ou ainda a un cygne ( um cisne ), o que Miller no cap. 1 dos Signos del goce aproveita para associar à famosa fábula do Patinho Feio (que, mais tarde se descobre um belo cisne). Essa polissemia do significante em questão, que se perde nas traduções, fez com que Miller optasse por não manter o título original Ce que fait insigne, no qual se poderia ouvir, ainda, O que faz um, signa na tradução castelhana. A este respeito ver nota da tradutora, Graciela Brodsky, na p. 8. 9

de passe de alguns AE (Horne, 1999). Com base nestes dados é sugerido o diagnóstico estrutural de psicose. Dos últimos livros do escritor: Ulisses (1922), e principalmente Finnegans Wake (1939), Lacan extrai o que, no seu entendimento, teria operado como um sinthoma estabilizador para Joyce. A saber: um uso radicalmente original, inventivo, e livre, da linguagem. E o que é o fundamental um uso da linguagem que não parece visar, pelo menos centralmente, à comunicação de um sentido, de uma significação. Lacan entende isso como um uso da língua que visa outra coisa: um puro gozo, autista, que não se dirige a ninguém. Nem mesmo ao Outro, que é o caso do symptôme neurótico e das demais formações do inconsciente. Ou, mais amplamente, do próprio inconsciente (identificado com o eixo simbólico, S-A, no Esquema L), o que ilustraria a noção de um inconsciente a céu aberto na psicose ou do inconsciente como debilidade mental. Esta é a interpretação lacaniana, bastante original, da obra de Joyce, distinta da interpretação dos estudiosos dessa obra no campo da Literatura, que giram em busca de significações 14. Com o que Lacan parece ter compreendido a conhecida boutade de Joyce, de que os estudiosos se ocupariam de sua obra por 300 anos (leia-se, infrutiferamente, se procuram nela uma significação). Mas Lacan não toma o caso Joyce e a noção de sinthoma como um caso isolado, único. Ao contrário, a partir daí a noção de sinthoma é universalizada. Inclusive para a neurose, ajudando a desfazer a semelhança, apenas aparente, entre os sujeitos com esta estrutura. Para não falar do campo que isso abre para o estudo das psicoses não desencadeadas. 15 14 A esse respeito ver a Introdução e as Notas de Leitura da versão brasileira do capítulo 1 de Finnegans Wake, em Schüller, 1999, ou ainda em Carpeaux, 1984. 15 A esse respeito ver a Conversação de Arcachon e outras que se seguiram sobre o mesmo tema, como a Conversação de Antibes. 10

Neste sentido Lacan passará a pluralizar os Nomes-do-Pai (1973), apontando com isso para a idéia de diferentes possibilidades de enlaçamento dos três registros por um 4º elo em diferentes sujeitos. O sinthoma passa a designar, então, a forma particular de gozo de cada sujeito o modo como cada sujeito goza do inconsciente, na medida que o inconsciente o determina, segundo a formulação do Seminário 23. Um núcleo de gozo além do Simbólico, um Real como resto, inanalisável, que não é susceptível à interpretação. Não se trata de desfazer o sinthoma na análise. Muito pelo contrário, já que é aquilo que permite a cada sujeito organizar de forma singular seu gozo. Assim, o que deve estar em jogo em um final de análise é o que Lacan passa a chamar de identificação ao sinthoma, e um saber fazer com ele ( savoir y faire ). Como o caso Joyce demonstra, trata-se de uma invenção original, um rechaço das soluções universais que correspondem à função do falo, do Pai, do Édipo, do complexo de castração, etc. na neurose. Apontando desta forma para o fato de que é para além de tudo isso que deve visar um final de análise, no sentido que o último Lacan atribui a essa expressão. Identificação, sinthoma e final de análise Após termos abordado os conceitos de identificação e de sinthoma, trata-se agora de procurar articulá-los e, com isso, articular ambos ao tema do final de análise. Como lembramos na discussão sobre a identificação, em termos dos quatro discursos, a experiência analítica visa levar um sujeito do discurso com que ele chega a uma análise (o Discurso do mestre), passando pelo Discurso da histérica (através da chamada histerização discursiva), para chegar finalmente ao Discurso do analista. Isso implica transformar o S1 binário inicial, articulado a S 2, como na parte superior do Discurso do mestre (S 1 ---> S 2 ), em um S 1 unário, disjunto de S 2, no lugar da produção, na parte inferior, à direita, do Discurso do analista (S 2 // S 1 ). 11

Com isso, desloca-se a fantasia ($ <> a) de sua posição inicial, na parte inferior (abaixo das barras) do Discurso do mestre ($ // [<>] a), para a parte superior (acima das barras) do Discurso do analista, e, além disso, escrita na ordem inversa, como Lacan escreve a fantasia do perverso (a ---> [<>] $). Podemos ler aí o que corresponde à noção de travessia da fantasia, outra noção fundamental para dar conta do que deve estar em jogo em um final de análise na perspectiva do último Lacan. O S 1 unário, ao contrário do binário, não está articulado a S 2. Está, digamos, solto, o que Miller escreve 16 : S 1 S 1 S 1 S 1 S 1 S 1. Mas, como vimos, na definição do ideal do eu como uma constelação de insígnias, Lacan usa, para falar disso, o termo constelação, que é uma invenção. Invenção de uma relação entre elementos (como no caso dos corpos celestes das ditas constelações ) que não têm, a princípio, nenhuma relação intrínseca entre si. É isso que o sinthoma faz: inventar uma relação entre esseuns unários. Referências bibliográficas BRODSKY, G. Short Story: Os princípios do ato analítico. Rio de Janeiro: Contra Capa livraria, 2004. Ver : O princípio de redução (ou como comer um caracol). CARPEAUX, O. M. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Alhambra, 1984. Ver: As revoltas modernistas, volume 8, capítulo I. FREUD, S Sobre as teorias sexuais das crianças (1908), op.cit., vol. IX. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides) (1911), op.cit., vol. XII. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), op. cit., vol. XIV. Luto e melancolia (1917), op. cit., vol. XIV. Psicologia de grupo e análise do ego (1921), op. cit., vol. XVIII. O ego e o id (1923), op. cit., vol. XIX. A dissolução do complexo de Édipo (1924), op. cit., vol. XIX. Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925), op. cit., vol. XIX. HORNE, B. (1999) Fragmentos de uma vida psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1999. Ver: Passe: da IPA a Lacan, Parte I. JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem (1914). São Paulo: Siciliano, 1992. Ulisses (1922). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. (1939) Finnegans Wake / Finnicius Revém, Livro I, São Paulo, Ateliê / Porto Alegre, Casa de Cultura Guimarães Rosa, 1999. 16 MILLER, J.-A.- Los signos del goce, op. cit., capítulo XX. 12

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