A MATERNIDADE NO CONTEXTO DO PRESÍDIO ESTADUAL FEMININO MADRE PELLETIER

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Transcrição:

A MATERNIDADE NO CONTEXTO DO PRESÍDIO ESTADUAL FEMININO MADRE PELLETIER Luiza Dias de Oliveira 1 Resumo Este trabalho apresenta o conteúdo de uma pesquisa de mestrado em andamento, referente à experiência da maternidade no contexto carcerário do Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A pesquisa tem por objetivo identificar quais as formas de constituição do Estado a partir das relações, práticas, rotinas, procedimentos e discursos dentro do estabelecimento prisional. Para tanto, será realizada uma etnografia, complementada com entrevistas narrativas com as detentas e técnicas do presídio, amparada em uma bibliografia a respeito da Antropologia do Estado e sobre os processos normativos impostos às mulheres mães encarceradas. As legislações atuais também serão abordadas a fim de identificar se elas são cumpridas ou não no estabelecimento mencionado. Palavras-chave: Encarceramento feminino. Maternidade. Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier. O presente trabalho traz o conteúdo reunido até o momento para a pesquisa As grades que envolvem o berço: a maternidade no contexto do Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier. Os resultados integrarão a dissertação que será defendida em 2019, portanto, este é um trabalho em andamento. A pesquisa aborda o contexto da maternidade dentro do sistema penitenciário, focando, especificamente, no Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier (PEFMP), em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O objetivo é analisar como a experiência da maternidade acontece dentro de um ambiente vigiado e controlado pelo Estado. Vivemos em um período de eclosão da violência urbana e de encarceramento em massa. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2016, fornecido pelo Ministério da Justiça, de 2000 a 2016, o aumento da população carcerária feminina foi de 698%. Já o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou dados referentes à população de mulheres grávidas e lactantes nos presídios brasileiros em 2017. De acordo com o levantamento, havia 622 mulheres presas gestantes ou lactantes no país. Dessas, 373 estavam grávidas e 249 amamentavam. São Paulo é o estado com o maior número de detentas nessa condição: eram 235 (CNJ, 2017). 1 Mestranda no PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), diasoliveira.luiza@gmail.com.

No Rio Grande do Sul, ainda segundo o levantamento do CNJ, havia 9 gestantes e 5 lactantes. No entanto, em notícia veiculada em fevereiro desse ano, o site GaúchaZH (2018) divulgou que havia 34 gestantes no sistema prisional gaúcho. Desse total, 17 estavam no PEFMP. Ainda segundo a notícia, três bebês nasceram durante o feriado de Carnaval. As informações foram repassadas ao veículo pela juíza da Vara de Execuções Criminais responsável pelo presídio, Patrícia Fraga. As denúncias a respeito da não garantia de direitos dessas mulheres crescem a cada ano. Em outubro de 2015, por exemplo, uma presa deu à luz na solitária da Penitenciária Talavera Bruce, no Rio de Janeiro. Apesar desse fato ter repercutido e ganhado as páginas de jornais, outros casos semelhantes acontecem no país sem que sejam noticiados, ficando restritos a conversas informais sobre o tema e permanecendo sem registros. Além dessas graves violações, a análise da aplicação da legislação também revela um descaso quanto ao encarceramento feminino. Embora existam leis que prevejam a obrigatoriedade de celas e/ou dormitórios específicos para gestantes, como a Lei de Execução Penal (LEP), apenas 34% dos estabelecimentos prisionais destinados às mulheres possui, segundo o Infopen Mulheres 2014. Em relação às unidades mistas, ou seja, que recebem homens e mulheres, apenas 6% possuem o espaço adequado. Outra legislação que deve ser mencionada é o Marco Legal da Primeira Infância, aprovada em 2016. Entre outras disposições, o Marco alterou parte do artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP), garantindo que mulheres grávidas e mães de crianças com até 12 anos incompletos possam ter a prisão preventiva (ou seja, elas ainda não foram condenadas) substituída por prisão domiciliar. No âmbito do Poder Judiciário, no dia 20 de fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um Habeas Corpus coletivo, impetrado pela Defensoria Pública da União e pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos. O objetivo do pedido era conseguir a conversão da prisão provisória em domiciliar para todas as mulheres que se enquadram no que está disposto no referido artigo 318. Por maioria de votos, o STF concedeu o HC, abrangendo também as mulheres que possuem a guarda de pessoas com deficiência. A decisão deverá ser aplicada em até 60 dias, ou seja, até o final de abril de 2018. É importante ressaltar que a decisão não é válida para as mulheres que já foram condenadas e cumprem a sentença em regime fechado. Para essas presas, a despeito da falta de investimentos que visem a melhoria da qualidade de vida delas e de seus bebês, os estabelecimentos prisionais se tornam um lugar privilegiado para a normatização de gênero perpetrada pelo Estado (CUOZZO, 2016; PEREIRA, 2012). Essas práticas têm origem na

formação das prisões destinadas para as mulheres. Inicialmente, nas primeiras décadas após a sua inauguração, o PEFMP focava na recuperação das mulheres criminosas a partir do ensino de trabalhos domésticos ou de corte e costura. Ou seja, nas atividades que ainda hoje são atribuídas às mulheres e que recaem sobre uma domesticação e estereótipos de gênero, sob o objetivo de recuperá-las e torná-las boas esposas, mães e donas de casa religiosas (KARPOWICZ, 2017). Segundo Leni Colares (2012), em uma pesquisa sociológica a respeito das questões de sociação em um presídio feminino, a partir das cartas enviadas pelas reclusas ao Ministério Público, mesmo mais recentemente, a concepção de mãe inadequada servia para justificar esse efeito normativo do Estado sobre as mulheres. Hoje em dia, a maior parte dos serviços realizados pelas internas está relacionado à produção artesanal e de lavagem de roupas, reforçando preconcepções relacionadas ao gênero (PEREIRA, 2012). Além disso, pouco se contribui na formação profissional que servirá para essas mulheres extramuros. Dentro disso, a maternidade surge e é encarada como um fator propulsor de normatização. Até mesmo nos discursos proferidos no Tribunal do Júri (FACHINETTO, 2012), criam-se teses sobre a mulher mais criminosa e menos criminosa, buscando-se a inocência ou a condenação baseada no desempenho da ré enquanto mãe, conforme estudo realizado por Rochele Fachinetto, no qual foram abordados os discursos dos agentes do Sistema de Justiça em casos em que mulheres haviam assassinado homens, e em que homens haviam assassinado mulheres. As normativas sobre a maternidade no cárcere podem ser encaradas como uma forma de docilização do corpo feminino, conforme teoriza Foucault (2014; 2015). Segundo o autor, o adestramento dos corpos deve sempre levar em consideração os meios disponíveis para tanto. Ser mãe dentro do cárcere, pelo período possível, destina todos os recursos e pensamentos das mulheres para os bebês. É com eles que elas passam 24 horas do dia, sete dias por semana. São elas as responsáveis por todos os cuidados, inclusive a administração de medicamentos quando as crianças ficam doentes. Essa tarefa se torna ainda mais complicada pelo fato de as detentas não poderem ter um despertador, o que significa noites em claro para ministrar os remédios nos horários corretos (PEREIRA, 2012). Considerando essas informações e o fato de que o Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier possui a Unidade Materno-Infantil (UMI), essa instituição foi escolhida para realização do campo. O presídio referido é um dos dois únicos no Rio Grande do Sul que possui berçário, o que o torna referência. Nesta pesquisa, serão estudadas as experiências da

maternidade no contexto carcerário, focalizando atenção nas práticas sociais e nas narrativas das apenadas no PEFMP. Em relação ao PEFMP, em outubro de 2009, houve uma mudança nas diretrizes da creche. Até aquele momento, havia 32 crianças com as mães e apenas quatro berços, além de não haver uma idade determinada para a permanência das crianças lá. A partir daquele mês, um esforço conjunto entre a Vara de Execuções Criminais, o Juizado da Criança e do Adolescente e o próprio presídio, retirou a maior parte das crianças de lá. A determinação era de que as presas ficassem com os bebês até que eles completassem seis meses de idade. Assim, as crianças foram entregues às famílias ou à adoção, caso não houvesse um parente que se responsabilizasse por elas (COLARES, 2012). Cabe ressaltar que, hoje, os bebês permanecem com as mães no PEFMP até completarem seis meses. Depois, eles podem ser transferidos junto com a mãe para a Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba (PEFG), podendo ficar lá por mais seis meses. Se a interna preferir, a criança pode ser entregue à família, ao invés de ser feita a transferência nesse marco etário. Quando o bebê completa um ano, ele deve ser entregue para a família, ou, caso não haja nenhum familiar que possa ficar com a tutela, ele ficará em um abrigo do Estado até que a mãe termine de cumprir a pena. Atualmente, 239 mulheres estão encarceradas no PEFMP, conforme a SUSEPE. Os dados oficiais concernentes à quantidade de gestantes e lactantes serão confirmados nas entrevistas e incursões ao campo. Desse total de mulheres, serão escolhidas três trajetórias de três mulheres que apresentem contextos sociológicos distintos (raça/cor, idade, tempo de pena, etc.), a fim de diversificar os dados coletados. Com isso posto, essa pesquisa tem por objetivo contribuir com o tema a partir da seguinte questão: como são construídos os significados da experiência da maternidade no contexto carcerário? Busco explorar a temática a partir das narrativas das internas no Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier por meio de um estudo etnográfico. Considerando que a etnografia proposta será realizada a partir de uma instância do Estado, interessa compreender os seus processos de constituição a partir das relações, práticas, rotinas, procedimentos e discursos dentro do presídio. Para tanto, baseio-me nas ideias de Abrams (2006) quanto à concepção do Estado como algo ideológico (Estado-ideia) e como Estado-sistema. O primeiro apresenta poder politicamente institucionalizado de uma forma que é, de uma única vez, integrado e isolado, e por satisfazer essas duas condições, cria para o nosso tipo de sociedade uma base aceitável para aquiescência (ABRAMS, 2006, p. 117,

tradução minha)2. Já o segundo diz respeito às práticas institucionalizadas, à administração, uma face mais objetiva e interventiva, focada no governo (ABRAMS, 2006, p. 125). Para Mitchell (2006), o Estado-ideia e o Estado-sistema são melhor vistos como dois aspectos do mesmo processo (p. 170)3, ou seja, estão relacionados e são complementares. Ainda segundo Abrams (2006, p. 125 e 126), esses dois conceitos devem ser estudados nas suas relações com outras formas de poder, levando a uma compreensão dos processos de formação do Estado. Segundo Foucault (1999, p. 29), a tríade poder, direito e verdade está intimamente ligada. Segundo o autor, o poder depende da produção de discursos de verdade: somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar. Ou seja, o poder institucionaliza a verdade e é propulsionado por ela. Esses discursos de verdade podem ser representados pelas regras de direito, que são decisórias, obrigatórias, compulsórias. No caso dos presídios femininos brasileiros, esse estabelecimento de poder, no que diz respeito aos processos de formação do Estado, é importante de ser observado na medida em que ele rege as relações intramuros, tanto entre internas e técnicos, quanto entre as próprias internas. As relações de poder se formam a partir dos discursos, práticas e normativas, mas também pela relação técnico e detenta. Essa última representando um espectro do Estado que é, por um lado, baseado em um imaginário, e, por outro, objetivo e diretivo, assim como as concepções definidas por Abrams e citadas anteriormente. Referências ABRAMS, Philip. Notes on the Difficulty of Studying the State. In: SHARMA, Aradhana; GUPTA, Akhil. The Anthropology of the State. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2006. BRASIL. Código de Processo Penal, decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: dez. 2017.. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: dez. 2017. 2 Citação original: It presents politically institutionalised power to us in a form that is at once integrated and isolated and by satisfying both these conditions it creates for our sort of society an acceptable basis for acquiescence. 3 Citação original: The state-idea and the state-system are better seen as two aspects of the same process.

. Lei n. 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, a Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: mar. 2018. BRASIL TEM 622 GRÁVIDAS OU LACTANTES EM PRESÍDIOS. CNJ. 2017. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86062-brasil-tem-622-gravidas-ou-lactantes-empresidios >. Acesso em: maio 2018. COLARES, Leni Beatriz Correia. Sociação de mulheres na prisão: disciplinaridades, rebeliões e subjetividades. 2011. 301 p. Tese de doutoramento Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. CUOZZO, Juliana Depra. Os caminhos da transmissa o da mensagem Narco ticos Ano nimos na Penitencia ria Feminina Madre Pelletier em Porto Alegre, RS. 2016. 110 p. Dissertação de mestrado Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016. FACHINETTO, Rochele Fellini. Quando eles as matam e quando elas os matam: uma análise dos julgamentos de homicídio pelo Tribunal do Júri. 2012. 421 p. Tese de doutoramento Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.. Vigiar e Punir. Pretróplis, RJ: Vozes, 2014.. A Sociedade Punitiva. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015. KARPOWICZ. Débora Soares. Do convento ao cárcere: do caleidoscópio institucional da Congregação Bom Pastor D Angers à Penitenciária Feminina Madre Pelletier. 2017. 334 p. Tese de doutoramento Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2017. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen - 2016. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presasno-brasil/relatorio_2016_junho.pdf>. Acesso em: mar. 2018.. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres 2014. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacaopenitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: mar. 2018.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE - FURG Catalogação na Publicação: Bibliotecária Simone Godinho Maisonave CRB -10/1733 S471a Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade (7. : 2018 : Rio Grande, RS) Anais eletrônicos do VII Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade, do III Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade e do III Luso-Brasileiro Educação em Sexualidade, Gênero, Saúde e Sustentabilidade [recurso eletrônico] / organizadoras, Paula Regina Costa Ribeiro... [et al.] Rio Grande : Ed. da FURG, 2018. PDF Disponível em: http://www.7seminario.furg.br/ http://www.seminariocorpogenerosexualidade.furg.br/ ISBN:978-85-7566-547-3 1. Educação sexual - Seminário 2. Corpo. 3. Gênero 4. Sexualidade I. Ribeiro, Paula Regina Costa, org. [et al.] II. Título III. Título: III Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade. IV.Título: III Luso-Brasileiro Educação em Sexualidade, Gênero, Saúde e Sustentabilidade. CDU 37:613.88 Capa e Projeto Gráfico: Thomas de Aguiar de Oliveira Diagramação: Thomas de Aguiar de Oliveira