S u l C a l i f ó r n i a e A r i z o n a E U A T e x t o N e l s o n S á
Epilepsia Um déjà vu em preto e branco, uma projeção em outra velocidade, um gosto doce. E então uma convulsão de Sol. Dia 1, no apartamento de vidro: A tela acendeu, com o registro. O-90 está subindo. Dia 2, no auditório: I-330 sentouse do meu lado. O-90 reagiu, Ele está registrado em meu nome. I-330 falou, Apareça amanhã na casa antiga. A mulher tinha um efeito incômodo sobre mim. Fiquei com O-90, que ergueu os olhos azuis, Eu queria ir até você hoje. Mas no controle o próximo dia vai demorar. Dia 3, na casa antiga: Abracei as pernas de I-330, beijei-a e supliquei, do chão, Tem que ser agora. Ela me mostrou o horário, 4h48. Eu sabia o que significava estar do lado fora depois das 5h. Saí em disparada. Dia 4, no apartamento de vidro: O-90 está subindo, tudo será de novo regular como um círculo. Dia 5, na casa antiga: O quarto escuro, a luz âmbar, as paredes saturadas por uma vida dourada. Sem contagem, sem controle. Somente os seus olhos dourados. Através deles eu via mais fundo, mais e mais. Vesti meu uniforme. I-330 se levantou de uma vez, vestiu seu uniforme e seu sorriso afiado. Meu anjo caído, falou ela, você acabou de morrer, sabia? Não está com medo? Dia 6, no apartamento de vidro: O-90 entrou, me abraçou, mas percebeu e soltou, Você não é mais meu. Dia 7, na famosa câmara de gás: Eles me levaram e realizaram a grande cirurgia da imaginação. Contei então o que sabia dos inimigos da felicidade. E vi quando trouxeram aquela mulher para interrogar. Ao tirarem o ar, jogou sua cabeça para trás e fechou os olhos. Com eletrochoque, acordou. Passou pela rotina três vezes. Sem nada contar, sem dizer uma palavra, amanhã ela será submetida à máquina. A partir de Nós, de Yevgeny Ivanovich Zamyatin Mas não a nossa luz hoje constante, azul, que chega através das paredes de vidro. Um Sol feroz, cruel, como revolução. Eu vi o número. I-330, num vestido arcaico preto, com um sorriso cortante branco. Muitos riam dela, ao vê-la dançar sem a nossa mecânica, sem a nossa escala racional. Mas eu não ria.
O s l o N o r u e g a 2 0 0 1-2 0 1 4 T e x t o S í l a s M a r t i
Numa de suas muitas fotografias em que retratou a família, Bjorn Sterri aparece junto da mulher e dos filhos de olhos fechados. Na mão direita, ele segura o disparador da câmera, dando a entender que ele montou a cena e está no comando dela. É dele a escolha do momento que o público verá depois, em uma posteridade desconhecida e incontrolável. Também o fato de estar ali o disparador, sem truques ou disfarces, confere à imagem algo de brechtiano. Estão vestidos, mas esse é um ato fotográfico de plena nudez, que revela todos os seus artifícios. Olhando as imagens, esta em particular me fisgou. My Family, com esse nome sintético, desafia a ideia arquetípica de família e afasta o registro do repertório padrão que publicitários plasmaram décadas a fio em comerciais de margarina. Essa é uma família, mas não a família. E que estejam de olhos fechados, num devaneio encenado, sublinha algo de impenetrável ali. Não se sabe o que pensam e ao mesmo tempo não dão ao espectador a chance de ver seus olhos, aquilo que revela em instantes o estado de espírito, a índole, farpas de personalidade de alguém. Sterri, ao mesmo tempo sujeito e objeto da ação fotográfica, também tem os olhos fechados no momento do disparo, como se confiasse no acaso para finalizar a composição. E tem algo nisso da atitude de uma criança que com medo do escuro corre para a cama dos pais. Ela se acalma, as luzes voltam a se apagar e todos dormem, como se de comum acordo adentrassem um território de trevas. Esses olhos fechados em sintonia me remetem a uma paz mesmo que passageira, a confiança em laços inabaláveis diante das crueldades do mundo e ao mesmo tempo certa vulnerabilidade. Em cena, todos estão vulneráveis, pelo menos até o momento do disparo, quando voltarão a abrir os olhos. Mas antes disso, nesse intervalo de escuridão, adensado pelo registro em preto e branco, difícil não pensar em anjos. A mulher encostada no fundo do estúdio, a mão esquerda apertando o braço do filho pequeno, o filho mais velho imóvel, com o rosto emoldurado por uma cabeleira platinada, faiscante, e o pai no comando sereno de tudo, como se dissesse que tudo ficará bem. Não deixo de pensar em anjos improváveis. Rastros deles aparecem nas tatuagens nos braços de Sterri. Num autorretrato em que se mostra sem camisa, aparecem pelo corpo do fotógrafo palavras como father e son. Não entendo por que um artista norueguês vivendo em Oslo tenha escolhido os vocábulos em inglês, mas nessa imagem solitária Sterri parece buscar a transcendência de um arquétipo, o macho, adulto, branco sempre no comando. É ele ali, mas ele é ao mesmo tempo todos.
T e x t o D a i g o O l i v a S ã o P a u l o B r a s i l 2 0 1 3
Latido de cachorro, choro de criança. Porta improvisada, caminho improvisado, ponto de ônibus, tédio, calor, rosto colado no vidro, desvia, empurra, desce, tédio, conversa mole, bom dia. Ponto, aperta, desloca, improvisa, ponto. Come, meia volta. Aperta, desloca, improvisa, repete. Cinco da tarde. Ponto, boa tarde, tédio, sobe, empurra, desvia, rosto colado no vidro, duas horas e meia, troca, conversa alheia, calor, desce. Repete vezes mil, hoje não. Desce, burburinho, comentário geral, dona Dalva desesperada, seu Claudio também, latido de cachorro, choro de criança. Amanhã, é de manhã, não era lenda, eu não acredito, vai acontecer, o velho é cretino. Vão vir, vêm com tudo, esquece, pega as coisas, recolhe as caixas, guarda as fotos. Reza bastante, fala com o vizinho, organiza de novo, caminha pela rua, porta em porta, recolhe tudo. Prepara. Avisa. Capacete de cachorro louco, barril vinte litros cortado no meio, faz dois. Taco de madeira, prego, gradil jogado fora, bota de enchente, latido de cachorro, choro de criança. Tropa. e d i t a d o p o r C a s s i a n a D e r H a r o u t i o u n i a n C a s s i a n a D e r H a r o u t i o u n i a n e D a i g o O l i v a e d i t o r a f o t o g r a f i a s e r a f i n a f o l h a s. p a u l o e n t r e t e m p o s. b l o g f o l h a. u o l. c o m. b r S ã o P a u l o M a r ç o 2 0 1 4 2 8 p g s. i m p r e s s o n a g r á f i c a I m p r i m a e m p a p e l p ó l e n 8 0 g s i g n L u c i a n o S c h m i t z t i r a g e m 4 0 c ó p i a s M o n a K u h n 1 9 6 9 - N a s c e u e m S ã o P a u l o, v i v e e m L o s A n g e l e s w: 18,5 mm linha a 0,5 pt B j ö r n S t e r r i D a i g o O l i v a L u c i a n o S c h m i t z S i l a s M a r t í w: 50 mm linha a 0,75 pt 1 9 6 0 - V i v e e t r a b a l h a e m O s l o, N o r u e g a e d i t o r - a s s i s t e n t e i l u s t r a f o l h a s. p a u l o d i r e t o r a r t e s e r a f i n a f o l h a s. p a u l o r e p ó r t e r a r t e s v i s u a i s f o l h a s. p a u l o w: 100 mm Tlinha r a ë1,5 mpt a N e l s o n S á r e p ó r t e r e s p e c i a l f o l h a s. p a u l o 2 0 1 3 - C o l e t i v o p a u l i s t a f o r m a d o p o r F i l i p e R e d o n d o, G a b o M o r a l e s, R o d r i g o C a p o t e e L e o n a r d o S o a r e s
e n t r e t e m p o s z i n e e n t r e t e m p o s. b l o g f o l h a. u o l. c o m. b r