A Sociedade São Vicente de Paulo: perspectivas e experiências religiosas na cidade de Barbacena/MG. Diego Luis da Silva (Graduado em Ciências Sociais UEMG/Barbacena) Rafael Antônio Pimenta de Carvalho (Graduado em Ciências Sociais - UEMG/Barbacena) Agnaldo Lúcio Ferreira (Graduando em Ciências Sociais-UEMG/Barbacena) RESUMO A Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP) é uma instituição voltada fundamentalmente para a assistência material e espiritual àqueles que vivem em situação de risco social, através dos ensinamentos e práticas da Igreja Católica. Possui a sua inspiração no trabalho desenvolvido por São Vicente de Paulo, que dedicou sua vida aos pobres e às missões populares. Dessa forma, entendemos que por existir uma missão de caráter religioso em sua proposta, podemos tratar as experiências dos membros dessa instituição (denominados de vicentinos ) como experiências religiosas. Experiência essas que pode ser pessoal, mas que ao ser praticada em um determinado espaço geográfico (com contextos sociais diversos) pode-se encontrar diferenças na atuação e entendimento da sociedade deles. Nesse contexto, o nosso intuito é descrever o que a sociedade é, a partir da ótica dos próprios vicentinos. Dessa forma, o objetivo desse trabalho é buscar uma compreensão da SSVP a partir da ótica dos vicentinos de Barbacena/MG, através de um trabalho etnográfico, usando como aporte teórico a interpretação de identidade baseada em Clifford Geertz, que nos permita observar as diversas categorias e especificidades regionais dessa instituição. A partir dessa observação realizada com o suporte de entrevistas, observação participativa em reuniões e visitas realizadas pelos conferencistas, pretendemos fazer a descrição proposta acima e interpretar se o espectro regional da SSVP transcende ou não o ideal vicentino proposto pelo seu fundador. Palavras-chave: SSVP; Experiências Religiosas; Vicentinos; Perspectivas.
INTRODUÇÃO A Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP) é uma instituição voltada fundamentalmente para a assistência material e espiritual àqueles que vivem em situação de risco social, através dos ensinamentos e práticas da Igreja Católica. Possui a sua inspiração no trabalho desenvolvido por São Vicente de Paulo, que dedicou sua vida aos pobres e às missões populares. Dessa forma, entendemos que por existir uma missão de caráter religioso em sua proposta, podemos tratar as experiências dos membros dessa instituição, denominados de vicentinos e ou associados, como experiências religiosas, de íntima ligação à santificação pessoal segundo a doutrina católica. Nesse contexto, o nosso intuito é interpretar a vivência do vicentino a partir das experiências de seus membros. Dessa forma, o objetivo desse trabalho é buscar uma compreensão da SSVP a partir da ótica de seus associados na cidade de Barbacena/MG, através de um trabalho etnográfico, usando como aporte teórico a interpretação de identidade baseada em Clifford Geertz. A partir de observações e de entrevistas, observação participativa em reuniões e visitas realizadas pelos conferencistas, pretendemos fazer a descrição proposta acima e interpretar a noção de pertencimento dos membros perante a instituição, segundo os preceitos de seu fundador. Para realizarmos este trabalho dentro dos objetivos propostos se fez necessário, primeiramente, realizarmos observação participante das atividades dos vicentinos dentro das conferências através de reuniões estruturadas, que seguem um modelo organizacional peculiar para coordenar os seus trabalhos, além de manifestações religiosas e espirituais e as atividades externas que fazem, ou seja, as visitas domiciliares aos pobres, que são efetivamente o âmago da instituição, juntamente com análise bibliográfica e documental da Igreja Católica e da SSVP e sua estrutura enquanto instituição. Em segundo plano fizemos coletas de dados qualitativos sobre a visão dos vicentinos com relação a SSVP, de modo a nos organizamos no sentido de encontrar manifestações que permitissem a análise do objeto dentro da perspectiva da antropologia interpretativista, buscando dados a partir de entrevistas estruturadas e não estruturadas com os vicentinos.
Metodologia Após as entrevistas, percebemos que todos eles nos proporcionaram elementos que poderiam ser utilizados sob a sustentação das perspectivas qualitativas, e desse modo tratamos esses dados coletados como objetos igualmente permeáveis à análise. Dessa forma utilizaremos princípios metodológicos para a etnografia, sustentados na descrição densa de Clifford Geertz que defende o conceito de cultura como algo essencialmente semiótico, mostrando-nos o porquê de sua antropologia ser simbólica. Para ele a cultura é pública e uma de suas grandes críticas em cima disso é o debate incansável da antropologia sobre o fato da cultura ser subjetiva ou objetiva. Para Geertz antes de tudo temos de compreender o que é a ciência, e para essa compreensão deve-se analisar e perceber o que os praticantes da ciência fazem e, no caso da antropologia, os praticantes fazem etnografia. Para ele, o etnógrafo não deve apenas se ater aos métodos, mas também estabelecer relações com todos e principalmente com os seus informantes que devem ser bem selecionados, após isso ele deve fazer a transcrição dos dados coletados sempre se lembrando de todos os detalhes, levantar genealogias, entre outras práticas. Geertz enfatiza que a etnografia é uma descrição densa, marcada pela compreensão de uma hierarquia estratificada de estruturas significantes, pois perceber os dados vai além do elo da significação. As estruturas são percebidas, produzidas e interpretadas pelos homens em ação. Para exemplificar esse conceito e melhor explicá-lo, Geertz nos mostra como seria essa descrição densa utilizando de Gilberto Ryle no caso das piscadelas : O caso é que, entre o que Ryle chama de "descrição superficial" do que o ensaiador (imitador, piscador, aquele que tem o tique nervoso...) está fazendo ("contraindo rapidamente sua pálpebra direita") e a "descrição densa" do que ele está fazendo ("praticando a farsa de um amigo imitando uma piscadela para levar um inocente a pensar que existe uma conspiração em andamento") está o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos às quais os tiques nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam (nem mesmo as formas zero de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, são tanto não-piscadelas como as piscadelas são nãotiques), não importa o que alguém fizesse ou não com sua própria pálpebra (GEERTZ, 1989, p. 5).
Dessa forma, segundo Geertz, os textos produzidos pelos etnógrafos jamais serão de primeira mão, aja visto que só o observado é quem a possui. E assim percebemos que tudo que é falado num discurso está sempre carregado de significados e com base na descrição densa, que exige que se compreenda o que fora dito e que se interprete o acontecimento e os fatos decorridos. Tendo essas percepções em mente, seguimos para a efetivação dos nossos objetos de investigação, de onde extraímos pontos convergentes na maior parte das entrevistas, que nos permitiram traçar um parâmetro quase uniforme do entendimento pessoal dos associados da SSVP dentro da instituição. É importante frisar que muitas outras hipóteses e objetos vieram à tona nesta pesquisa, o que será melhor estudado em trabalhos posteriores. A SSVP e os vicentinos A Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP) é uma organização civil de leigos, homens e mulheres, chamados de confrades e consócias, dedicada ao trabalho cristão de Caridade. No Brasil é premissa fundamental para participar do movimento, ser cristão católico. Foi criada em 24 de abril de 1833, em Paris, na França, por um grupo de seis jovens universitários católicos e um senhor mais maduro, com o objetivo de aliviar o sofrimento das pessoas vulneráveis e fortalecer a fé de seus membros. Rapidamente a Sociedade espalhou-se pelo mundo e já está presente em 150 países. Em seu trabalho caritativo auxilia diariamente cerca de 30 milhões de pessoas, por meio da dedicação dos cerca de 800 mil voluntários que formam a SSVP. Internacionalmente, a Sociedade de São Vicente de Paulo é membro da Organização das Nações Unidas, participando do Conselho Econômico e Social (Ecosoc). A SSVP é organizada no mundo inteiro por uma hierarquia de diversificada abrangência municipal, estadual e nacional, onde as conferências que se reúnem semanalmente e fazem efetivamente o trabalho de auxilio às famílias socorridas são a principal esfera do movimento. Diferente de outros movimentos pastorais da igreja Católica, a SSVP não está agregada a uma paróquia específica: sua divisão hierárquica é particular. No Brasil, a instituição foi fundada em 1872. No nosso país são aproximadamente 153 mil membros, também conhecidos como confrades
(homens) e consócias (mulheres). Aqui a instituição mantém creches, escolas, projetos sociais, lares de idosos, em contato semanal com cerca de 74 mil famílias em necessidade. Em Barbacena-MG, a primeira conferência Vicentina foi fundada em 1896 e logo o movimento se espalhou por toda cidade e região. Hoje na cidade existem aproximadamente 120 unidades, distribuídas em todos os bairros, com mais de 1500 associados. Em linhas gerais, as conferências da cidade são compostas de membros de sexo, idade e classes sociais diferentes. Estima-se que aqui são assistidas semanalmente mais de 200 famílias em estado social vulnerável com mais de 800 membros. Existem também na cidade, duas vilas e um lar para idosos, mantidos pela instituição. Na pesquisa realizada foram realizadas 8 entrevistas com confrades ou consócias da Sociedade de São Vicente de Paulo da cidade de Barbacena, qualitativamente significantes, entrevistados estes membros das conferências de Santo Emídio, São Benedito, Santa Teresa de Calcutá e Nossa Senhora da Boa Morte, cujas reuniões ocorrem semanalmente em dias e locais específicos para cada uma. Estas unidades estão dispostas nos bairros Centro, São Sebastião, Boa Morte e Grogotó. Nestas unidades participam cerca de 30 associados entre homens e mulheres, de maioria adulta. Seus associados visitam e fornecem gêneros alimentícios entre outros materiais de necessidade, semanalmente oito famílias socorridas que possuem trinta membros na sua totalidade. Além do auxílio material, fazem também o trabalho de evangelização e aconselhamento familiar. É importante mencionar que estes vicentinos visitam também instituições de longa permanência, hospitais, o manicômio judiciário, entre outros trabalhos. Os recursos angariados para manutenção do trabalho destas conferências são gerados por meio de coletas realizadas em cada reunião, bem como com a ajuda de membros não frequentadores das reuniões, chamados de benfeitores. O acompanhamento feito com as famílias socorridas é num primeiro momento de auxílio imediato de carências materiais, mas se torna mais amplo no decorrer do trabalho, já que sempre é almejada a promoção social destes. Concomitante a isto, os vicentinos fazem o trabalho de evangelização Cristã com estes socorridos, sendo para eles de suma importância o crescimento espiritual dos mesmos. Este aspecto nos chama a atenção e daremos a ele sua devida relevância. Em nossas entrevistas, verificamos que o principal objetivo comum aos Vicentinos, seja através de declarações explícitas ou implícitas, é a busca da santificação
através da caridade inspirada primeiramente em Cristo e seguida por São Vicente de Paulo e Beato Frederico Ozanam. Para entendermos a santidade, buscamos afirmações em conformidade com a constituição dogmática Lumen Gentium do Concílio Vaticano II, nº 40. O Senhor Jesus, mestre e modelo divino de toda perfeição, pregou a todos e a cada um dos seus seguidores, de qualquer condição que fossem, a santidade de vida, de que Ele próprio é autor e consumador, nesse sentido, todo cristão pode atingir a santidade. Outra observação embasada em documentos, afirma que a caridade é, segundo o Catecismo da Igreja Católica nº 1822, a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por si mesmo, e a nosso próximo como a nós mesmos, por amor de Deus. Desse modo, o amor ao próximo ao praticar a caridade é considerado o distintivo dos discípulos de Cristo. Os vicentinos entrevistados corroboraram todos estes conceitos, visto que defendem suas práticas de caridade em consonância com o regulamento da SSVP, já que elas se destinam à prática da caridade cristã, buscando, através da oração e ação, diminuir o sofrimento, restituir a dignidade humana e promover a cidadania, independentemente de cor, raça, sexo, nacionalidade credo religioso ou convicção política. (Regra, Artigo 1º). O significado da santificação para os associados está então atrelado a uma série de elementos teológicos, imaginários e práticos, onde a conduta dos trabalhos de assistência aos pobres incorpora todo este arcabouço de conceitos. Uma vez que a SSVP é consoante à Igreja Católica Apostólica Romana e constituída por leigos, era necessário definir a nossa compreensão da SSVP como uma instituição, e para isso, através de análise documental, estritamente feita sob o respaldo da Regra da Sociedade São Vicente de Paulo no Brasil, entendemos ela como uma instituição de identidade leiga e de autonomia própria, que desenvolve os seus trabalhos em colaboração e concordância com a Igreja Católica Apostólica Romana. A maior parte dos entrevistados corroborou essa afirmativa, mas apontaram empecilhos no que tange à proximidade dos Presbíteros com a SSVP. Este distanciamento da Igreja, principalmente dos Padres, neste caso Párocos, geralmente impossibilita o crescimento do movimento nas comunidades vinculadas às paróquias onde estão inseridas as conferências objeto desta pesquisa. As dificuldades encontradas no trabalho com os pobres não esmoessem o trabalho dos vicentinos, pelo contrário, os fazem trabalhar com mais empenho ainda.
É perceptível que quanto maior o desafio de promoção humana que encontram, com mais empenho traçam perspectivas para sanar os problemas. Emparelhados com a ajuda material, executam trabalhos de evangelização, com os quais almejam levar os assistidos à plenitude dos sacramentos e doutrinas da Igreja Católica. É notória que esta busca pela evangelização e participação dos pobres na catolicidade é força motriz da santificação dos vicentinos. Os entrevistados afirmam isso com toda a clareza. A SSVP faz parte da minha vida [...] Meu pai me convidou para ver o que era o trabalho da conferência [...] Trabalhar na SSVP não é um favor que faço pra ninguém é um dever que tenho e pretendo ficar até quando eu puder. A gente está encantado com o próximo, não só com os assistidos mas com todos os companheiros da conferência. Gosto muito da conferência. Nós somos organizados, se uma família assistida precisa da gente, nós vamos lá e fazemos uma sindicância. (M.G.C. 68 anos) Para mim a SSVP é um complemento da minha vida. [...] Considero a SSVP como a extensão do céu aqui na terra. [...] Nós fizemos muitos trabalhos em prol dos menos favorecidos. Recentemente fizemos a cozinha comunitária. Quantas e quantas construções e reformas foram feitas. Tem hora que a gente brinca que SSVP é a construtora de São Vicente. Estamos fazendo isso como se fosse para um filho nosso. A parte espiritual é intensa. A gente faz o trabalho da conferência com dois objetivos: primeiro para ajudar o próximo e depois para buscar nossa santificação pessoal. A parte espiritual é louvável e significante. (C.E.V. 60 anos) A SSVP é vocação, é seguir Jesus Cristo servindo aos que precisam, dando testemunho de seu amor libertador. Nós confrades e consócias mostramos nossa entrega mediante o contato pessoa a pessoa, isso tudo me encanta fazendo com que me torne melhor como pessoa, como cristã, buscando sempre o melhor para os nossos mestres e senhores, os pobres. Nós vicentinos tentamos ajudar os pobres a serem independentes, fazendoos dar conta de que eles podem mudar o seu destino e de todos os que estão a sua volta, não esquecendo as múltiplas graças que recebem daqueles que visitamos, reconhecendo que os frutos dos trabalhos não vêm unicamente da sua pessoa, mas especialmente de Deus e dos pobres que servimos. (T.M.F. 36 anos) Percebemos que estas frações das entrevistas nos auxiliam a interpretar a forma como os vicentinos se compreendem na instituição: assumem o papel transformador por meio do auxílio aos mais necessitados e mediante disto, buscam sua santificação pessoal perante os dogmas da Igreja Católica. É notório que o participar não envolve apenas frequentar as reuniões da conferência, muito pelo contrário, é preciso estar num contado direto com os assistidos. Todos entrevistados enfatizaram isto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Como partimos de uma interpretação do que vivenciam, cumpre-nos endossar o aspecto de pertencimento dos seus membros à Igreja Católica por meio da SSVP, visto que, como premissa do legado de Cristo de amar o próximo como a si mesmo buscam os vicentinos cumprir este mandamento por via da instituição que participam. Concluímos que ao incorporar os elementos observados e analisados em nossa pesquisa, nos esforçamos em realizar uma descrição densa e microscópica, além disso, apreciamos o curso das manifestações sociais, mantemos a sua estrutura interpretativa e não nos dispersamos, no sentido de que sempre nos atemos à análise dos objetos às fontes pesquisáveis. E a partir da observância dessas características, descreveremos os Vicentinos: mesmo reconhecendo a distinção institucional entre a Igreja e a SSVP, eles são indivíduos pertencentes à Igreja Católica Apostólica Romana, tanto em suas atribuições associativas assim como nas religiosas e espirituais. Eles possuem um propósito claro e comum, que é a prática da caridade, através de seus trabalhos de natureza material e espiritual, que na concepção vicentina é o melhor meio de alcançar a santificação. Contudo, com o que discorremos neste artigo, podemos perceber a complexidade e relevância desse trabalho que os vicentinos fazem, estando sempre atentos para melhorias de mecanismos que auxiliem seus assistidos e suas missões. Dessa forma, ao estabelecer o que entendemos por vicentino, pela instituição e pela ação deles, chegamos ao final desse artigo, sem concluirmos, com a certeza de que as discussões e reflexões, aqui expostas, precisam avançar, e mais do que isso, podemos nos aprofundar em outros aspectos e dimensões que envolvem a realidade desses vicentinos.
REFERÊNCIAS GEERTZ, Clifford. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropológico. In: O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 85-107. GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989. Sociedade de São Vicente de Paulo. Regra da Sociedade de São Vicente de Paulo 30. ed. Rio de Janeiro/RJ CNB da SSVP, 2007