As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica 1

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Transcrição:

As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica 1 Maira Prieto Bento Dourado 2 RESUMO Esta pesquisa tem o objetivo compreender as relações de cuidado da criança hospitalizada dentro do cotidiano hospitalar. Ao mesmo tempo pretende compreender como os cuidadores, entendem a noção de cuidar e cuidado, e como estes vivenciam esta prática. A pesquisa é de natureza qualitativa, tendo sido realizadas entrevistas semi-estruturadas com cuidadores. O método utilizado é o fenomenológico. A discussão teórica sobre a noção de cuidado e cuidar baseia-se na contribuição dos filósofos Heidegger, no saber médico e na legislação brasileira. Assim acredito que a importância desse trabalho consiste na clareza e na sensibilidade que o assunto foi abordado, contribuindo então para melhorar a compreensão das relações de cuidado na enfermaria pediátrica e para a compreensão do sentido que cuidado e cuidar tem para os cuidadores. Palavras-Chave: cuidado, Heidegger, criança. Artigo Original: Elaborado em: setembro / 2010. Recebido em: dezembro / 2010. Publicado em: dezembro / 2010. 1 Trabalho apresentado no Congresso de Psicologia Fenomelógico-Existencial Fundação Guimarães Rosa 2010. 2 Psicóloga formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ (2007); Pós graduada em Psicologia Clínica na abordagem Fenomenológico-Existencial/IFEN (2007); Pós graduada em Psicoterapia Infantil/IGT (2009). mairadourado@ig.com.br Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas Fundação Guimarães Rosa Página web: www.fgr.org.br l E-mail: bibliotecafgr@fgr.org.br

2 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica O presente trabalho o objetivo compreender as relações de cuidado da criança hospitalizada dentro do cotidiano hospitalar, na enfermaria pediátrica do Hospital Universitário Gaffrée Guinle (HUGG), e ao mesmo tempo, pretende compreender como os cuidadores, entendem a noção de cuidar e cuidado, e como estes vivenciam esta prática. Neste trabalho utilizo o termo cuidadores como sinônimo de equipe médica: médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, acadêmicos, nutricionista, assistente social, psicólogos, enfermeiros do riso e equipe de limpeza. A pesquisa de natureza qualitativa foi realizada a partir observações durante o período de atuação da autora na enfermaria de pediatria do referido hospital, entre os meses fevereiro de 2006 e janeiro de 2007, e realizadas entrevistas semiestruturadas com cuidadores. O método utilizado é o fenomenológico, o qual busca investigar o fenômeno em si, assim como ele acontece na experiência, de forma a descrevê-lo, analisá-lo e interpretá-lo hermeneuticamente. A discussão teórica sobre a noção de cuidado e cuidar baseia-se na contribuição dos filósofos Heidegger, no saber médico e na legislação brasileira. No primeiro ponto dessa discussão Heidegger, considera o cuidado (sorge) como o próprio modo de ser do homem no mundo, a autora concorda com este pensamento e busca trazer para a concretude as reflexões ontológicas de Heidegger; no segundo ponto o cuidado está diretamente ligado à prática das suas profissões de saúde, cuidar do paciente, tratá-lo e curá-lo; por fim o terceiro ponto demonstra como o Brasil concretizou as relações de cuidado com as crianças hospitalizadas em direitos e deveres. Na filosofia alguns autores consideram que o cuidado (sorge) é ontológico, precede o ser e é inerente a ele, ou seja, o homem é cuidado (BOFF, 1999, 1988; HEIDEGGER, 2005). Na área médica o cuidado está diretamente ligado à prática das suas profissões, cuidar do paciente, tratá-lo e curá-lo, que apesar da visão cartesiana, está se voltando para um olhar mais humanizado do serviço. No que tange a legislação, o Brasil concretizou tardiamente as relações de cuidado com as crianças, e a atenção para aquelas que estavam hospitalizadas. Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 2 de 20

Maira Prieto Bento Dourado 3 Martin Heidegger, na sua filosofia defende a busca às coisas mesmas, e descarta os conceitos sedimentados historicamente, bem como desenvolve uma crítica ao uso indiscriminado da técnica moderna, sugerindo que possa se relacionar com a técnica sem tornar-se dominado por ela, a partir da serenidade. Ela visa chegar à base ontológica do fenômeno da vida, ou seja, o sentido da vida, o sentido do viver, e, responder a questão: qual o sentido de ser? O filósofo alemão iniciou sua busca com seu precursor Edmund Husserl, que defendia a epoché, ou seja, ir às coisas mesmas como uma metodologia. A partir de então, Heidegger lança mão da hermenêutica, onde ele afirma, na analítica do Dasein feita em Ser e Tempo (2005), a impossibilidade da prática da epochè, considerando que desde sempre o homem é ser-no-mundo, e dessa forma, não há como realizar a suspensão de valores e conceitos preestabelecidos. A hermenêutica é, para Heidegger, a arte de interpretar a partir da compreensão do fenômeno, compreensão esta que, só é possível a partir do próprio fenômeno tal qual ele se apresenta. O sentido do ser, segundo Heidegger, é o Dasein 3, que pode ser explicado como ser-aí, o ser aberto às coisas do mundo, as possibilidades que estão disponibilizadas. O Dasein no seu modo de ser mais próprio é o ser-em e o ser-com, ou seja, o ser no mundo e o ser com os outros seres e entes do mundo. Nesta leitura ontológica, cuidado é o próprio Dasein, o estar no mundo é cuidado. Da mesma forma que estar no mundo não é algo estático, o Dasein também não é, ele está em relação com o mundo que é passível de mudanças de acordo com as necessidades do ser. 3 Dasein (pre-sença): Pre-sença não é sinônimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comumente traduzida por existência. Em Ser e Tempo, traduz-se, em geral, para as linguas neolatinas pela expressão ser-aí, être-là, esser-ici etc. Optamos pela tradução da pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não fique aprisionado às implicações do binômio metafísico essênciaexistência; 2) para superar o imobilismo de uma localização estática que o ser-aí poderia sugerir. O pre remete ao movimento de aproximação, constitutivo da dinâmica dos ser, através das localizações; 3)para evitar um desvio de interpretação que o ex de existência suscitaria caso permaneça no sentido metafísico de exteriorização, atualização, realização, objetivação e operacionalização de uma essência. O ex firma uma exterioridade, mais interior e estetrário; 4) presença não é sinônimo nem de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica do homem, ser humano e humanidade. É na pre-sença que o homem constrói seu modo de ser, a sua existência, a sua história ect(cf. entrevista de Heidegger ao Der Spiegel, Ver. Tempo Brasileiro, n.50, jullho-set. 1997) (Nota do tradutor, Ser e Tempo, 2005 p. 309) Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 3 de 20

4 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica Para Heidegger, o ente 4 é algo simplesmente dado, o qual não reflete sobre o seu estar no mundo, não questiona o seu sentido dentro do contexto, o ente, portanto não se reduz àqueles que não são dotados de racionalidade, ou seja, animais e coisas materiais (inanimadas) pode ser também àquele homem que está, sem se saber, sem se compreender. Não no sentido oposto, mas complementar, o ser 5 é aquele que se mostra e oculta, e compreende-se a si mesmo no mundo em que vive e com as coisas e pessoas a sua volta, na sua vivência. O ser não pode ser reduzido ao conceito de ente, assim o homem não pode ser o Dasein sem que haja uma compreensão mínima do sentido do ser homem. Assim o ente é aquilo que pode ser percebido, conceituado, generalizado, e por vezes estático, enquanto o ser deve ser compreendido no seu modo de ser, agir e se transformar. Desde sempre, o próprio Dasein é cuidado, isto, por já ser e estar num mundo em relação com outros entes. Estar no mundo não é apenas o que já se sabe do senso comum: no ciclo da vida, pessoas nascem, crescem, reproduzem e morrem. Não é meramente algo mecânico ou instintual. Estar no mundo envolve o querer viver, a relação com os entes que envolvem o ser do ente. O cuidado pode englobar o sentido do ser (Heidegger, 2005), pode se disser que ele é o viver e o viver em relação com o seu contexto, compreendendo o sentido da existência e da relação que se dá no mundo. Entretanto, cuidado é relação, é um fenômeno que se transforma de acordo com as necessidades do ser, as quais não se mostram quando o ser está fechado para as possibilidades da vida. Para que o ser se abra para suas necessidades, é fundamental um ponto de partida, Heidegger complementa que para compreender o ser como cuidado é preciso estar ciente que é na angústia que o sujeito pode se mobilizar é na angústia que ele é capaz de levantara questão do sentido do seu ser. 4 Ente é tudo aquilo que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. (HEIDEGGER, 2005, p. 32) Ente é tudo aquilo que pode ser restringido a um significado, a um conceito, pode ser nomeado, caracterizado, definido. 5...o ser não pode ser concebido como ente, [...] o ser não pode ser determinado, acrescentando-se um ente. Não se pode derivar o ser no sentido de uma definição a partir dos conceitos superiores e nem explicá-los através de conceitos inferiores. [...] O ser é o conceito evidente por si mesmo. (HEIDEGGER, 2005, p. 29) Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 4 de 20

Maira Prieto Bento Dourado 5 A angústia, segundo Heidegger, é inerente à existência humana, é um existencial. A partir disso, os questionamentos sobre si se fazem naturais, por exemplo, um cliente doente pode começar a questionar sua doença e sobre o sentido da vida a partir do diagnóstico. Isto o torna sujeito da ação. Essa mudança de posição permite ao sujeito se responsabilizar pelo que pode acontecer a partir de então: uma relação de cuidado consigo. Com a angústia o sujeito é capaz de questionar o sentido de ser e a partir de então perceber-se diferente do outros seres, ou seja, a angústia permite ao sujeito a singularização. Ao fazer-se diferente, segundo Heidegger, o ser não se perde nas coisas do mundo, não fecha as possibilidades, retira o ser do lugar de imobilidade diante do mundo para um lugar de escolha. Este lugar, contudo mantém o ser na angústia: Em sua completude, o fenômeno da angústia mostra, por tanto, a presença como ser-no-mundo que de fato existe (HEIDEGGER, 2005, p. 255). O homem desenvolve várias formas de se relacionar com a doença, a doença angustia e gera angústia, e isto é cuidado, do ponto de vista ontológico, antes da doença, qualquer relação existente na vida deste homem, também é cuidado. Estar doente é a impossibilidade de corresponder aos apelos do mundo e do próprio corpo, ou melhor, é um limite para as possibilidades do ser no mundo (SÁ, 2000). Do ponto de vista ontológico não cabe dizer a falta de cuidado, mas sim que o modo de ser do Dasein é impróprio, visto que não sendo Dasein, também não é cuidado. O ser para apropriarse do seu modo de ser mais próprio deve questionar-se, ser alavancado pela angústia para que o fenômeno de compreensão seja completo, e paradoxalmente não se compreenda totalmente para que se mantenha aberto a novas possibilidades. Isto caracteriza o poder ser, que não necessariamente é que o ser esteja sempre no seu modo mais próprio, mas que se reconheça abertura de poder ser próprio e impróprio. A propriedade, do viés ontológico, é: em seu ser a pre-sença já sempre precedeu a si mesma (HEIDEGGER, 2005, p. 256). O cuidado, como Dasein, encontra-se na ontologia dos fenômenos e está existencialmente precedendo qualquer atitude ou situação vivida por esse ser, logo, Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 5 de 20

6 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica o cuidado está e é toda situação e atitude de fato, o que não significa que a prática é anterior à teoria, mas que ambas são possibilidades ontológicas do Dasein. O fenômeno cuidado (sorge) pode ser dividido em dois modos de existir: ocupação (bersorgen) e preocupação (fusorge). O primeiro refere-se ao cuidado no mundo (manualidade) e relacionado com o mundo dos entes simplesmente dados, e o segundo, o cuidado com os seres deste mundo que estão em relação constante com os entes que são o Dasein, abertura de sentido (HEIDEGGER, 2005). Sá (2000) em sua leitura de Heidegger menciona que preocupação desvela-se a dois modos: o mais comum para aqueles se relacionam com o cuidado ôntico, é a preocupação como substituição (einspring) que é caracterizada pelo domínio de um ser sobre o outro, ou seja, onde uma pessoa assume as ocupações de outra, transformando sua experiência em algo que não precise mais de reflexão. No segundo modo, a preocupação é anteposição, ou seja, ao invés de substituir, orienta ao ser um caminho de reflexão diante de si e de suas possibilidades como existente. Este último seria o cuidado, segundo Heidegger, no seu modo mais próprio. Contudo, ambas são possibilidades que podem se mostrar mescladas no cotidiano do ser. Assim o cuidado descrito por Heidegger se distância do sentido ôntico, do senso comum, que é difundido e reconhecido no dia a dia: No contexto da hospitalização, o cuidado está ligado á prática do tratamento das doenças. Estudos desenvolvidos na área procuram mostrar que o cuidado numa instituição de saúde pode ir além da mecânica de cuidar de uma doença, por isso são comuns trabalhos que envolvem a temática de humanização do trabalho hospitalar ou do tratamento dos doentes. Esse processo de humanização mostra uma aproximação com a ontologia do cuidado, onde se busca diminuir a relação com o objeto e acentuar a relação com uma pessoa que está doente que além do saber médico demanda diversos tipos de relação. Este é o cuidar ôntico, que se mostra para os seres, não é o cuidado ontológico. Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 6 de 20

Maira Prieto Bento Dourado 7 Nos Seminários de Zollicon (1989), Heidegger menciona que relação também não se reduz simplesmente ao relacionamento entre duas pessoas, como se percebe no senso comum: A relação, com algo ou alguém, na qual eu estou, sou eu. Entretanto, relação não deve ser objetivamente entendida no sentido moderno, matemático de relação. A relação existencial não pode ser objetivada. Sua essência fundamental é ser aproximado e deixar-se interessar, um corresponder, uma solicitação, um responder, um responder por baseado no ser tornando claro em si da relação. Comportamento = a maneira pela qual eu estou em minha relação com o que me interessa, a maneira como se corresponde ao ente. (HEIDEGGER, 1989, p. 202) Considerando o pensamento Heideggeriano, onde o cuidado é e está em qualquer tipo de relação, poderíamos dizer o cuidado médico-paciente, pois envolve elementos que estão além da doença e da medicação, envolve a vida e a forma como o paciente descreve a sua vivência, bem como a forma como será acolhida pelo profissional. A enfermaria pediátrica tem suas particularidades, é um misto de dor e fantasia, choros e gargalhadas, isto porque são crianças que estão internadas. São pequenos seres no mundo, estão iniciando sua descoberta e o desvelamento de serem o que elas são, da forma como são, como se mostram e como são percebidas. No caso das crianças encontradas na enfermaria pediátrica do HUGG, são crianças que estavam doentes, mas isso não englobava todo o ser daquelas crianças. Durante o período que está hospitalizada, a criança passa a estar cercada por pessoas desconhecidas: a equipe hospitalar, que é constantemente remanejada. Tal situação pode ser mais claramente observada nos hospitais escola, nos quais o pequeno paciente é visto como objeto de estudo, e não como criança, independente do tempo que passa internada. No entanto, a equipe e seus componentes ainda serão as responsáveis por cuidar do infante durante este período No hospital a criança, mesmo acometida por uma doença, ainda é criança, e como tal, apresenta o mundo emocional aflorado, assim ela percebe o mundo, o que reflete no seu comportamento. É seu modo de estar no mundo. Ela ainda não está totalmente inserida no mundo da razão e da verbalização, elaborando, então, suas Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 7 de 20

8 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica questões através do lúdico e da sua imaginação (OAKLANDER, 1980). Brincar é relação, enquanto brinca, está elaborando suas questões e essa atividade, diminuída ou aumentada, permite perceber como se estabelecem as relações durante o período de internação. No processo de adoecimento o comportamento da criança pode sofrer mudanças, elas podem ser um sinalizador da doença e, posteriormente, o resultado destas mudanças podem representar a forma que a criança encontrou para elaborar esse processo. Esta elaboração pode ser explicada quando Boff (1999) defende que quem é saudável pode ficar doente e, adoecer não corresponde apenas a uma parte do corpo, mas sim a totalidade existencial do homem. O homem pode desenvolver formas de se relacionar com a doença, e tornar-se são com determinada doença, o que se diferencia de um ser doente. As estratégias para entrar em contato com a doença são desenvolvidas por cada um, são singulares e, são influenciadas pelo contexto no qual essa pessoa está. A criança cria, no seu modo de ser, pode desenvolver suas estratégias através do brincar, do lúdico, da sua imaginação. Sá (2005, p. 333) concorda com a idéia de Boff do adoecimento da relação, defendendo que toda doença é uma restrição mais ou menos grave do poder dispor livremente do conjunto de possibilidades da relação em que o homem sempre se encontra. Valle (2000, p. 93), complementa que não existe um sujeito e uma doença separados, mas um ser que adoece que se revela em sua vivência singular. A criança adoecida necessita de atenção especializada, os cuidados domésticos não são mais suficientes para o restabelecimento da saúde desta criança, percebe-se então, a necessidade de uma internação. Com a hospitalização, o cotidiano da criança é transferido para o hospital, seu ritmo de vida e suas relações anteriores são interrompidas, ou até rompidas; este lugar torna-se referência. O hospital passa a ser incluído na vida, nos roteiros da criança com uma doença crônica e da mãe, torna-se um ambiente onde novas relações podem se estabelecer, dependendo da experiência da sua naquele período. A criança é capaz de construir seu modo de ser com uma doença grave, se conhecendo, compreendendo seus limites e possibilidades, tornando-se responsável Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 8 de 20

Maira Prieto Bento Dourado 9 pelas suas escolhas, se apropriando no seu tratamento ou abandonando (VALLE, 2000). Na fenomenologia a criança é compreendida como sujeito, ser-no-mundo, ou seja, um ser dentro de um contexto histórico, econômico, político que está em relação com o mundo. A criança doente pertence a uma família, brinca, freqüenta uma escola, está situada numa rede de relações e ao ser hospitalizada inicia uma nova rede de relações. Permitir a criança brincar e estimular seu pensamento mágico faz com que elabore esse processo de adoecimento, no entanto, de acordo com Maichin (2004), nem tudo que aparece nas atividades lúdicas representam aquilo que ela está vivenciando no real. Pode ser simplesmente um brincar sem significados. O brincar é a forma de relação da criança com o mundo, ou melhor, do mundo infantil para o mundo adulto. A criança pode utilizar da brincadeira para se comunicar, expressar suas angústias, seus medos e seus desejos. Da mesma forma, a experiência lúdica livre ou estimulada por um profissional, pode ser terapêutica, possibilitando à criança a re-significação da doença, que ela não pode mudar, se reconhecendo na sua condição existencial e assumindo a responsabilidade nas escolhas efetuadas (VALLE, 2004). A reação da criança à relação que é estabelecida com o cuidador é o que muitas vezes o move a trabalhar com criança. Para esse tipo de trabalho é preciso estar aberto, ou seja, disponível, para os pequenos pacientes. Os cuidadores relatam o prazer proporcionado por um sorriso, um abraço durante o tratamento, no momento da alta ou a qualquer instante pelos corredores do hospital. É nesse momento que eles se sentem reconhecidos como profissionais. Além da melhora clínica da criança, a receptividade e aceitabilidade de todo aquele processo que pode ter começado de forma dolorida mostra que, naquele momento, acabou bem. Ou a doença foi curada ou no caso de uma doença crônica se restabeleceu o equilíbrio clínico e emocional daquela criança, a criança saudável é o objetivo primeiro a ser alcançado quando a criança é hospitalizada. O seguinte fato levou a autora a refletir sobre como os modos de cuidados se revelavam: Numa determinada manhã presenciei um fato me levou, a saber, sobre Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 9 de 20

10 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica a política de brinquedos da presente enfermaria. Eu observava poucos brinquedos disponíveis a todos, que não eram higienizados com freqüência. Numa conversa informal a enfermeira chefe confirmou o que eu observara e descreveu a situação de acordo com a sua vivência e da sua equipe: a criança em questão tinha uma patologia ainda não diagnosticada, tinha sintomas como enjôo e diarréia constante. Não brincar no chão significava proteger a criança de maiores contaminações, não brincar no leito era para não levar tal perigo para o local onde dormia e passava a maior parte do dia, visto que os brinquedos não eram lavados nem antes nem depois das crianças brincarem, outro fator era a possibilidade da patologia da criança ser contagiosa, o que colocaria em risco as crianças que fossem brincar em seguida com os mesmos brinquedos. Nessa situação está clara a preocupação da auxiliar de enfermagem em proteger a criança, o que não aconteceu com a preocupação do esclarecimento à acompanhante e à criança. Heidegger diferencia ambos em ocupação e preocupação, a primeira está ligada a manualidade, ao exercício da profissão de auxiliar de enfermagem que se ocupa dos cuidados de impedir uma maior contaminação ou piora da criança. A preocupação está ligada ao todo do ser, a compreensão completa da relação que corresponde a explicar, se fazer compreender, e perceber se está sendo compreendido, se a profissional de saúde tivesse explicado seus motivos consequentemente teria dado sentido à proibição da brincadeira. A preocupação é uma atitude de cuidado com a relação, enquanto a ocupação é uma atitude de cuidado com a doença. Na visão da equipe entrevistada cuidar da criança como um todo consiste em cuidar a partir das especialidades profissionais presentes na equipe de funcionários da enfermaria, ou seja, um cuidado fragmentado que pode ser, ou não, unificado nas reuniões clínicas. Os médicos entrevistados entendem seu cuidar como cuidado com o tratamento clínico, mas não fecham o seu olhar para o ser da criança e para a sua família. O tratamento medicamentoso faz-se necessário e prioritário, e, paralelo a esse cuidado, os cuidadores mostram-se atentos ao lado emocional e social da criança. Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 10 de 20

Maira Prieto Bento Dourado 11 Da mesma forma que a foi descrito que ser médico não é apenas exercer uma profissão técnica, mas, é o modo de ser do médico, Heidegger na sua descrição distância a compreensão do ser, do conhecimento técnico: Todo o fenômeno é compreendido de um modo total, não isolado. O sujeito que compreende toma sempre consigo o seu mundo, a partir do qual realiza a projeção do sentido e no qual somente se abre o conteúdo individual em seu sentido daí uma estrutura circular da compreensão entre o particular e o todo. A compreensão não é um modo de conhecimento, é um modo de ser (AUGRAS citado por FEIJOO, 2000, p. 87). Os cuidadores estão cientes do cotidiano da criança além do hospital, ela vai à escola, tem sua casa, seus amigos, seus brinquedos, bem como daquele que acompanha a criança, geralmente, a mãe, que tem que faltar o seu emprego e muitas vezes é demitida, o que não será positivo para essa família. Nesse ponto há a tentativa de conciliar a estadia da criança às suas condições globais, por exemplo, algumas mães que não podem ficar 24 horas na enfermaria acompanhando o filho, mas pode dormir a noite, a enfermagem procura suprir essa falta, em outros casos a mãe é falecida ou não há possibilidade dela estar com a criança, pode-se então abrir a exceção para a presença do pai. Cytrinowicz (2000) concorda que a ausência de um familiar pode leva a criança, que está num lugar diferente e diante de uma nova situação, a experimentar extrema angústia, isso porque se percebe também, um ser voltado para o futuro. Os profissionais os cuidadores estão constantemente relacionando-se com o outro dentro das suas limitações, físicas e sociais. A atenção às condições sociais leva o paciente a ser internado antes do previsto ou apenas para exames. É comum a internação pela necessidade de execução de exames o que seria possivelmente realizável em um serviço ambulatorial, no entanto devido aos entraves do serviço público e a urgência nos exame, a internação se faz necessário para a realização dos mesmos e pesquisa do diagnóstico. Outro fator de internação é a questão econômica, por exemplo, o paciente vai à consulta na sexta-feira e tem que internar na segunda-feira, se ele não tiver como arcar economicamente com o dinheiro da passagem a internação é feita no mesmo Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 11 de 20

12 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica dia da consulta. É um cuidado com a mãe também, uma compreensão das suas condições econômicas. No HUGG, por haver a obrigatoriedade do Estado em fornecer o material necessário para a estadia, alimentação e medicamento do paciente, os profissionais buscam oferecer aos pacientes aquilo que há de melhor para a sua melhora, no entanto não escapa do olhar da equipe que, ao sair do hospital a criança retornará para a sua casa com os seus próprios recursos, que muitas vezes são escassos. Nesse sentido, observa-se a orientação dos cuidados que a criança necessitará fora do ambiente hospitalar, visando adequar as necessidades das crianças às possibilidades da sua família. Dessa forma, torna-se incoerente querer que a melhora da criança em casa seja semelhante a que se dá na enfermaria pediátrica, tamanha articulação de pessoal e material ali existente. A partir da alta hospitalar, ela estará de volta ao seu ambiente, sua casa. O médico não tem como intervir na sua vida além do hospital. Segundo informações colhidas nas entrevistas, a orientação é a única alternativa para um tratamento em casa, e a pesquisa para saber das condições sociais, econômicas e de articulação prática se dá no decorrer da internação e, com esse material em mãos, a equipe médica é capaz de adaptar a conduta ideal para uma conduta possível de ser realizada pela família da criança hospitalizada. Quando a gente interna um doente, interna uma pessoa que está doente, que no caso é um menor de idade, então a pediatria tem algumas características muito peculiares. Às vezes é uma criança que não sabe dizer o que sente e que a gente tem que ter uma interação muito grande com essa família e perceber que toda internação ou pelo menos, a maior parte delas é um momento de fragilidade, a doença é um momento de fragilidade imagina uma doença que tira essa criança e essa família do contexto habitual do cotidiano, que é o lar, coisas do dia a dia dessa família. (Fala da médica professora da enfermaria) A equipe médica fragmentada com vários saberes sobre uma única pessoa podem gerar uma noção de cuidado segmentado. O cuidado é dividido em funções, como cada profissão, existe o discurso de cuidado como um todo, ver a criança como um todo, mas não há o trabalho do todo em conjunto, cada um atua dentro do seu saber, interpela pelo saber do outro, compartilha seus saberes e, no entanto o Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 12 de 20

Maira Prieto Bento Dourado 13 cuidado ainda é dividido entre o cuidado terapêutico, o cuidado das brincadeiras, o carinho, a atenção, entre outras formas de relação. Na pediatria do hospital nos fazemos um trabalho de equipe, e a criança só tem a ganhar. [...] se precisar do acompanhamento dos diversos setores, ela já vai ser encaminhada para os diversos setores para ter acompanhamento e a família já sai toda orientada. (fala da assistente social responsável pela enfermaria pediatria) Para além da relação médico-paciente, é existe a relação entre médicos professores e médicos alunos e residentes, que é envolvida pela preocupação na formação do futuro profissional. Antes de aprender a lidar com a limitação do outro, o cuidador deve enfrentar os seus próprios limites como ser-no-mundo. Diante da solicitação de cuidar de uma criança, Cytrynowicz afirma, que o adulto se depara também, ao mesmo tempo, tanto com a sua própria possibilidade de realizar-se como responsável pelo crescimento da criança, como com a condição da criança de ainda não está descoberta para si e para os outros (CYTRYNOWICZ, 2000, p. 75). Dessa forma junto com a criança, o adulto está aberto à possibilidade de escolher entre responder ou não a solicitação de cuidado da criança. Essa demanda da criança que remete a uma falta, do que ela não é e ainda vai vir a ser, está sendo compreendida como fragilidade infantil, que pode acabar ao chegar à fase adulta. Entretanto está é uma compreensão errônea do viver da criança e do viver do adulto, a falta existirá sempre (CYTRYNOWICZ, 2000). A profunda ligação entre o adulto e a criança é o que torna mais difícil compreender e expressar o que e como se origina num ou o que e como vem do outro (CYTRYNOWICZ, 2000). Quando não há uma maior atenção para essa diferença o cuidador pode se compreender como ditador da vida da criança, o que Sá (2000) descreve como substituição. A possibilidade do adulto viver na anteposição ou na substituição se dá, pois seu modo de existir permite antecipar as experiências a ser descobertas pelas crianças. Ao antecipar essas experiências, o cuidador está representando a criança em suas escolhas. Cuidar ao modo mais próprio do crescimento da criança é o que Heidegger denomina pre-ocupação, que permite a partir do afastamento daquilo que atrapalha Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 13 de 20

14 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica abrir o caminho para que a criança caminhe sozinha, para uma vida sadia. Por outro lado essa responsabilidade no cuidado com a criança pode gerar angústia no cuidador, visto que põe em jogo as limitações se possibilidades. Tal cuidado pode revelar-se a partir da comunicação. Percebeu-se que o diálogo da linguagem infantil com a linguagem dos cuidadores faz-se compatível no momento em que ambos, como seres-no-mundo, se mostram na intenção de se comunicar. Essa facilidade de falar, ouvir, se fazer entender e perceber-se compreendido exige sensibilidade do profissional. Heidegger denomina tal fenômeno de disposição. Mesmo não sabendo se está sendo compreendido pela criança os profissionais mantém com a mesma um diálogo verbal e, na maioria das vezes se fazem compreender. Segundo Carmo (2004), o sujeito falante carrega consigo uma força pré-pessoal, involuntária, e só revela seu segredo quando fala (p. 96), assim para além da verbalização há uma pessoa que não é só voz, tem uma postura, um tom de voz, articula gestos, um conjunto de linguagem não verbal que comunica ao outro. O fato desse outro ser uma criança que não compreende os signos e significados da linguagem verbal não o impede de entender e sentir as intenções do não verbal. A fala não deve ser considerada apenas como comunicação, mas primordialmente como revelação de um ser singular em sua autenticidade e/ou inautenticidade. A linguagem permite ao pesquisador, assim como ao psicoterapeuta, acessar o mundo vivido do sujeito, aprender como se organiza esse mundo, que é constantemente criado, questionado, ameaçado, reconstruído (AUGRAS citado por FEIJOO, 2000, p. 87). Segundo Feijoo (2000, p. 87), a fala pressupõe ouvir. Escutar é abrir-se ao outro, ao sentido que faz para si a fala do outro, com limites contradições, falhas, ocultamentos, valorização de certas situações o que pode ser revelador do seu modo de existir. Dessa forma, o adulto que trabalha com criança precisa gostar do seu trabalho, e esta é uma condição fundamental para o bom relacionamento com a criança e com a equipe. A atenção do Estado brasileiro com o cuidado com a criança hospitalizada mostra-se através de leis e, da inclinação dos órgãos responsáveis em cumpri-la. Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 14 de 20

Maira Prieto Bento Dourado 15 CONCLUSÃO Cuidado é, antes de qualquer coisa, existir, e é ao mesmo tempo, a compreensão da sua existência. Concordo com Heidegger ao ver o cuidado como ontológico, com inerente ao ser do homem, é a própria relação do homem com ele mesmo e com o mundo que o cerca. O cuidado ontológico foge à percepção daquele tem o pensamento cartesiano, dividido, não é percebido nem compreendido, não é para ser praticado, não tem um para quê. É como a descrição do ser em Ser e Tempo, não tem como denominá-lo, o que não diminui o potencial de questionamento do sentido. Questionar o sentido do ser é também questionar o sentido do cuidado. Percebe-se, que se fosse possível, a reunião de todos os saberes em um espaço comum para a discussão de cada caso, tornaria o cuidado completo e o trabalho seria mais rico. Pois é apenas, na união desse quebra cabeças de funções que cuida-se do todo da criança, é no compartilhamento dos saberes que o ser da criança é compreendido, seja nas reuniões clínicas ou nas discussões individuais. É nesse conjunto que pode-se se aproximar do descrito por Heidegger como cuidado. O hospital como nova rede de relações, é um local de referência para a criança com doença crônica. Contudo todas as crianças, que passam algum período internada, estão atravessadas por essa experiência e, mesmo que no futuro, não se lembrem do que de fato aconteceu, a experiência permanecerá, pois o adoecimento passará a fazer parte do horizonte histórico de cada criança. O pouco tempo de vida como existente no mundo, faz com que, a criança que passa alguns dias privada das boas condições de saúde e do seu contexto, tenha uma grande proporção na vida do pequeno paciente. A intensidade e a qualidade das relações estabelecidas também são fatores que influenciam na sua formação como pessoa. O diálogo da linguagem infantil com a linguagem dos seus cuidadores faz-se compatível no momento que ambos, como seres-no-mundo, mostram-se na intenção de se comunicar. Essa facilidade na comunicação está diretamente legada à Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 15 de 20

16 As contribuições de Heidegger para a compreensão das relações de cuidado em uma enfermaria pediátrica disposição de ambos. O adulto que trabalha com criança precisa gostar, e esta é uma condição fundamental para o bom relacionamento com a criança e com a equipe. O modo-de-ser criança permite, através do brincar e do lúdico a possibilidade de elaboração do processo de adoecimento e cura. A angústia gerada pelo encontro da criança com novas pessoas, novos lugares e, experiências até então desconhecidas, é a alavanca para novas significações. A angústia leva a criança a estabelecer novas formas de relacionar-se consigo, com seu corpo e com os outros (seres e entes) que estão na sua relação com o mundo. A angústia leva a criança a cuidar de si, estabelecendo novas relações. A falta de brinquedos, apropriados para o espaço hospitalar, torna a instrumentação do brincar precária, o que não impede que o material usado nos procedimentos médicos diários sejam transformados em um material lúdico. Brincar com aquilo que, geralmente, fere e invade a criança, auxilia a mesma na elaboração das suas angústias. Assim acredito que a importância desse trabalho consiste na clareza e na sensibilidade que o assunto foi abordado, contribuindo então para ampliar a compreensão das relações de cuidado na enfermaria pediátrica e para ampliar o sentido que cuidado e cuidar tem para os cuidadores. REFERÊNCIA ANGERAMI, V. A.(Org.). O atendimento infantil na ótica Fenomenológica e existencial. São Paulo: Pioneira Thompson, 2004. ANTUNES, J. L. Por uma geografia hospitalar. Tempo social. São Paulo, v. 1, n. 1, p. 227-234, 1989. Biblioteca Virtual Fantásticas Veredas FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 16 de 20

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