Edição nº41 São Paulo, novembro de 2004 As eleições de 2004 e a transição de paradigmas As eleições de 2004 estiveram muito longe de confirmar a primeira aposta da oposição em um voto da desesperança, confirmando o PT como o partido mais votado do país. Mas reposicionou com centralidade o PSDB como líder da oposição liberal-conservadora à transição para um paradigma republicano de Estado. Assim como Fernando Henrique Cardoso, em artigo publicado nos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo, no dia 3 de outubro, acusava o PT de ser uma ameaça no sentido da instalação de uma dinâmica de partido único no país, agora, após os resultados do segundo turno, a palavrade-ordem é superdimensionar a derrota do PT. O colunista da Folha de S.Paulo, Vinícius Torres Freire, ecoando o tom panfletário das páginas do jornal, chegou a afirmar no dia 1º de novembro que o PT só não perdeu mais que o PFL. No dia 2, em sua coluna, levada à primeira página do mesmo jornal, o jornalista Jânio de Freitas chega a afirmar que uma derrota tão extensiva é uma anomalia. Em sua análise tendenciosa, o colunista sequer examina os resultados eleitorais de 2000, quando o partido do então presidente FHC colheu uma derrota muitas vezes mais expressiva nos grandes centros e sequer foi ao segundo turno na cidade de São Paulo, onde o governador era também pessedebista. Os resultados eleitorais, no entanto, desmentem categoricamente esses veredictos. Em número de votos, o PT, que já havia saltado de quarta para a primeira colocação entre os partidos no primeiro turno, confirmou a condição de partido mais votado no segundo turno: obteve 6.912.038 votos contra 6.267.364 votos conferidos ao PSDB. Se o critério for o número de cidadãos sob administrações petistas, mesmo com a derrota em São Paulo, o PT situa-se em segundo lugar, após o PSDB, governando 17 milhões de brasileiros e brasileiras em 411 cidades. Apesar de ser honra receber prioritariamente os votos dos pobres e dos nordestinos, não é exata a afirmação de que as vitórias do partido ficaram restritas às áreas menos desenvolvidas. Em Minas, por exemplo, ganhou na capital no primeiro turno, e por larga margem no segundo turno, a segunda maior cidade do Estado, Contagem. O PT está muito longe de ter se tornado o partido dos grotões: entre as 96 cidades, capitais e municípios com mais de 150 mil eleitores, o recuo foi de apenas 29 para 24 administrações. Também devem ser, em alguma medida, relativizadas algumas derrotas do segundo turno. Em São Paulo, por exemplo, os 45,14% dos votos obtidos contra Serra no segundo turno têm um significado em um certo sentido mais expressivo que uma maioria contra Maluf em 2000 já que, como indicaram as pesquisas, 74% dos votos dados a Maluf em 2004 no primeiro turno convergiram para Serra. Em geral, nas disputas do segundo turno o PT obteve sempre mais que 40% dos votos: 46,68% em Porto Alegre; 44,29 % em Goiânia; 47,15% em Cuiabá; 41,72% em Belém; 45,22% em Curitiba; 44,8 % em Anápolis; 46,49% em Maringá; 48,22% em Ponta Grossa; 47,57% em Caxias do Sul; 47,62% em Pelotas; e 49,63 % dos votos em Santos. O PT perdeu na maior cidade do país e em sua cidade símbolo, sede do Fórum Social Mundial. Isto
não é pouco, mas está muito longe de configurar um resultado que desmoraliza ou indica rejeição frontal. A resistência e dignidade de Marta em São Paulo, sob uma campanha que em alguns momentos invadiu ostensivamente até a sua vida pessoal, a campanha coerente e militante de Raul Pont, as lições de rebeldia de Luizianne em Fortaleza, o estilo mineiro de vencer com Pimentel em Belo Horizonte, as vitórias confirmadas em Santo André e Diadema, a renovação da força do PT no Espírito Santo com Coser, a raiz pernambucana da vitória em Recife e no norte do país, a vitória de Lindberg em Nova Iguaçu e tantos outros exemplos de lideranças que se consolidam ou que emergem mostram a força viva do PT. O princípio da esperança continua ativo na sociedade brasileira ao final do segundo ano do governo Lula. As vitórias do PSDB Não há dúvida, por outro lado, que o PSDB recebeu nestas eleições um mandato renovado e fortalecido para liderar a oposição ao governo Lula nos próximos dois anos. Principalmente com as vitórias em São Paulo, na capital e no interior, mas também em Curitiba e Florianópolis (com um candidato recém egresso do PFL). Com estas vitórias e a votação de conjunto obtida, embora tenha vencido em um menor número de cidades do que nas eleições de 2000, o PSDB restabelece uma dinâmica possível de centro-direita que apareceu nitidamente em crise nas últimas eleições presidenciais. Estas vitórias obtidas principalmente no segundo turno refletiram um terceiro momento da conjuntura eleitoral iniciado sete dias antes das eleições do primeiro turno. Poderíamos, para efeito analítico, dividir a conjuntura eleitoral em três momentos: um primeiro, ainda marcado pelo precário posicionamento dos candidatos e das candidatas petistas e por uma conjuntura nacional de queda da popularidade do governo Lula (até agosto); um segundo momento, que fez coincidir uma dinâmica de recuperação da popularidade do governo Lula com, em geral, a vigorosa ascensão de candidaturas petistas; um terceiro, iniciado nas vésperas do primeiro turno, e que prosseguiu até a votação do segundo turno, marcado em geral pela ascensão de candidatos(as) pessedebistas ou de oposição ao PT. Estes tempos foram muito visíveis na disputa em São Paulo e, em geral, pesaram nas disputas de segundo turno. Em geral, com exceção certamente de alguns grandes centros urbanos dotados de uma dinâmica eleitoral mais particularizada, as eleições se polarizaram entre a esquerda e frentes de centrodireita, sob a legitimidade renovada do argumento democrático antipetista brandido por FHC e por intelectuais do PSDB, com ampla divulgação na mídia. Isto é, votar no PT seria apoiar uma dinâmica antidemocrática, anti-republicana, de um partido voraz e tendencialmente voltado para dominar com exclusividade, utilizando poderes de Estado, a cena política do país. Este argumento certamente teve um peso na definição de voto em favor de Serra na última semana do primeiro turno em São Paulo e foi apropriado sob o lema da alternância no governo em Porto Alegre. Com a visibilidade destas disputas, certamente operou como um vetor de nacionalização das eleições no segundo turno. As vitórias do PSDB em São Paulo confirmam a autoridade nacional de suas lideranças daquele Estado, frente ao enfraquecimento dos pólos alternativos de Minas Gerais e Ceará. Renovam a sua capacidade de disputar a influência em partidos que compõem a base parlamentar do governo Lula, como o PMDB e o PPS. E, principalmente, projetam para os próximos dois anos uma agenda oposicionista de sentido liberal-conservador ao governo Lula, a qual desembocará em uma incerta disputa para as próximas eleições presidenciais.
A disputa democrática da transição Em sua expressão mais profunda, os resultados das eleições de 2004 revelam o quadro parcial, contraditório e ainda inacabado da transição de paradigmas de um Estado neoliberal para um Estado republicano. Se o governo Lula fosse, como quer uma certa crítica sectária, mera continuidade do governo FHC, os(as) candidatos(as) petistas teriam recebido contra si nestas eleições, de forma generalizada, o golpe violento e amargo da decepção dos brasileiros. Não foi o que ocorreu. Mas se o princípio da transição republicana estivesse bem composto no governo e soldado democraticamente com suas bases em expansão, os resultados eleitorais não revelariam uma força renovada da oposição liberal-conservadora. Distante seis meses das eleições, o PT estava tensionado por uma votação do salário-mínimo, cujo argumento de rigor fiscal foi profundamente desmentido alguns meses depois, com as sobras no superávit primário almejado. Às vésperas do segundo turno, o governo Lula tomou decisões duríssimas de elevação do superávit primário e de elevação dos juros, em geral bastante criticados pelas diversas configurações da consciência democrática brasileira. Vários programas fundamentais do governo, de forte impacto social, ainda sofrem de graves restrições fiscais. Tais situações não deixam de desorganizar a base política e social histórica do PT e de suas alianças progressistas. É interessante, neste sentido, analisar a dinâmica mais geral da votação em relação à força dos partidos. O partido que mais perdeu com as eleições foi o PFL (comandava 1.028 cidades e agora apenas 789), não tendo eleito prefeito em nenhuma capital, exceto no Rio de Janeiro. As derrotas de Antonio Carlos Magalhães na Bahia e de Bornhausen em Santa Catarina foram profundas. O PP de Maluf saiu também fortemente derrotado: caiu de 618 para 551 cidades. Não elegeu prefeito em capitais brasileiras. Partidos que mantém uma identidade de centro-esquerda no espectro político como o PSB, PDT e PPS (exceto em Porto Alegre onde galvanizou uma frente de centrodireita), cresceram, indicando dinâmica contrária aos períodos de hegemonia neoliberal no país. Em 2004, o PSDB foi ao cerne de sua identidade liberal, maximizando o seu potencial de ação política através da liderança pública de FHC, como temos analisado desde o início deste ano. É como se ao contrário do que dizem os intelectuais do PSDB, o movimento ascensional do PT forçasse o partido da ordem neoliberal a reorganizar seus argumentos e sua identidade sob o risco de viver uma agonia lenta e duradoura. E como em uma lógica mutuamente referida, a clarificação do ideário oposicionista do maior partido liberal brasileiro força o PT e o governo Lula a clarificarem sua identidade republicana nestes próximos anos decisivos para ser capaz de liderar as forças progressistas muito heterogêneas da sociedade brasileira no sentido de uma radicalização da democracia.
Por que a corrupção vai diminuir no Brasil durante o governo Lula? Com a criação no dia 19 de outubro do Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção, presidido pelo ministro Waldir Pires e formado por dez membros do governo e dez representantes das entidades da sociedade civil que vêm cumprindo um papel chave nesta área, o governo Lula dá um passo institucional decisivo no sentido de abrir um novo período para a ética republicana no país. Coube à filósofa Marilena Chaui identificar toda uma linha de oposição ao governo Lula que visava desconstruir a identidade de ética republicana e compromissos sociais do partido da estrela. A mídia do país deu um destaque importante (no Jornal Nacional da TV Globo e na Folha de S.Paulo) à divulgação do Índice de Percepções de Corrupção da Transparência Internacional, tornada pública no dia 20 de outubro. Pelo índice, o Brasil ocuparia a 59ª posição entre 146 países pesquisados. Em 2003 e 2004, os dois primeiros anos do governo Lula, o Brasil teria alcançado a nota 3,9 (o índice máximo de não corrupção seria o da Finlândia com 9,7). Segundo Cláudio Weber Abramo, diretor Executivo da Transparência Brasil, o índice não é apenas do governo federal, mas ele tem o papel de liderança para dar exemplo e atuar com mais vigor contra a corrupção, o que Lula tem feito timidamente, assim como Fernando Henrique Cardoso. Aliás, o Brasil de FHC em seu último ano de governo teria colhido um índice de 4,0. O ministro da Controladoria Geral da União (CGU), Waldir Pires, fez quatro observações importantes sobre o índice da Transparência Internacional, apenas muito parcialmente divulgadas. O primeiro deles é sobre a sua frágil consistência: em 1999, a Itália após nove anos de ação da histórica Operação Mãos Limpas, que incidiu de forma profunda sobre a cultura da corrupção no país, obteve apenas um aumento de 1,71 pontos na sua nota, segundo a Transparência Internacional. Além disso, o índice, como o próprio nome indica, mede a percepção sobre a corrupção. Isto é, se o combate à corrupção em um país torna-se mais público e efetivo, o índice degrada a sua posição porque, evidente, haverá mais notícias sobre corrupção. Em terceiro lugar, o público pesquisado limita-se a empresas comerciais internacionais, grandes escritórios de advocacia nacional e internacional, banqueiros e organismos internacionais. O trabalho da Transparência Internacional faz, na verdade, parte da agenda liberal ampla do Fórum Econômico Mundial, ecoando o princípio de que onde há muito Estado haverá mais possibilidade de corrupção. O Estado, neste campo teórico, é sempre o agente ativo da corrupção; a função do empresário corruptor é relativizada. Por fim, como a pesquisa também indica, ela mede as três esferas do Estado, federal, estadual e municipal. Pode não haver simetria ou imediato desdobramento entre ações de combate à corrupção federal e a sua incidência nos planos estadual e municipal. Segundo a CGU, por exemplo, uma das áreas onde mais se pratica a corrupção é na cobrança do ICMS, que é atribuição dos governos estaduais.
Sinergia fundamental Por coincidência, um dia antes da divulgação, em 19 de outubro, do relatório da Transparência Internacional (contendo dados sobre um ano que, inclusive, ainda não terminou), o governo Lula havia dado posse ao Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção. A notícia desta criação teve discretíssima, quase nula, divulgação. E, no entanto, a sua criação é fundamental para estabelecer uma poderosa sinergia entre o trabalho institucional e os atores da sociedade civil que mais conhecem e têm legitimidade na luta contra a corrupção. Os grandes avanços da democracia brasileira nesta área resultaram, em geral, desta sinergia. Participam do Conselho, presidido por Waldir Pires, representantes da OAB, CNBB, ABI, ONG Transparência Brasil, CUT, Igrejas Evangélicas, Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Associação Brasileira de ONGs, Confederação Nacional da Agricultura. Eles estão em número paritário com representantes do Ministério das Relações Exteriores, da Fazenda, da Casa Civil, do Planejamento, da Advocacia Geral da União e da Comissão de Ética da Presidência da República. São membros convidados o Ministério Público da União e o Tribunal de Contas da União. Além de sugerir medidas de controle, de transparência na administração pública, ele indicará estratégias de combate à corrupção. Na contramão de que o governo Lula tem reproduzido o déficit ético republicano fundamental de governos anteriores, a CGU tem apostado desde 2003 em vários programas chaves. O Programa de Sorteio, iniciado em abril de 2003, indica cada mês 60 municípios que passam por uma rigorosa auditoria. Até agora, 561 municípios já foram auditados, com resultados fortemente expressivos no que diz respeito ao diagnóstico de irregularidades e corrupções. Há um programa de capacitação de gestores e divulgação de cartilhas que ensinam como cumprir os requisitos legais de transparência e controle do dinheiro público. O processo educativo volta-se também para os membros de conselhos municipais em larga expansão no país. Uma parte importante das irregularidades constatadas nos municípios auditados deriva não de corrupção mas de gestão irregular. Foi criado o Portal da Transparência, através do qual, sem restrições ou necessidades de uso de senhas, pode-se acompanhar toda a execução orçamentária do governo federal. Tem sido posta em prática uma ação envolvendo vários ministérios, prevendo 32 medidas de combate à lavagem de dinheiro, circuitos exponenciados nos anos 1990 no Brasil. Os recentes desmantelamentos de quadrilhas de doleiros enquadram-se entre estas ações. Além disso, as ações especiais da Polícia Federal têm se multiplicado (Anaconda, Albatroz, Farol da Colina), resultando até agora na prisão de 151 servidores públicos e 44 policiais federais corruptos. Enfim, todo este trabalho governativo mais que justifica a previsão de que a corrupção sistêmica tende a diminuir de modo significativo nestes anos de governo Lula. Título. Referencias. Radar
Descrição. Periscópio Boletim eletrônico da Fundação Perseu Abramo e