Sessão de Abertura da I Conferência Ibérica de Justiça Restaurativa
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- Thomas de Caminha Gama
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1 Sessão de Abertura da I Conferência Ibérica de Justiça Restaurativa José de Faria Costa, Provedor de Justiça SENHOR PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE CASCAIS SENHOR PRESIDENTE DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA SENHOR PRESIDENTE DA CONFIAR PRISON FELLOWSHIP (PORTUGAL) SENHORAS E SENHORES Ao longo da História temo-nos perguntado, de um jeito não só interessado mas pungentemente angustiado, por que é que punimos? Qual o fundamento, justificação ou motivo que preside à aplicação de uma sanção penal? As respostas que, ao longo dos milénios, foram sendo elaboradas oscilam entre as teorias retributivas e as teses preventivas. Nos últimos anos temos assistido, porém, a uma nova proposta de resposta, a qual se ancora em uma maior participação da vítima e do agressor na concretização da justiça penal: a justiça restaurativa. 1 O cometimento de um crime representa uma quebra na relação comunicativa que se tece e tece-se, note-se, por necessidade ôntica do ser humano, devido à incompletude que o caracteriza em torno de todos os membros da comunidade. Nós somos seres relacionais: relacionamo-nos com os outros e relacionamo-nos, de igual modo, com nós mesmos. Esta teia de relacionamentos em que se baseia a nos- Este texto teve a colaboração da Mestre Marlene Neves, Adjunta do meu Gabinete, e foi proferido na sessão de Abertura da I Conferência Ibérica de Justiça Restaurativa, que decorreu nos dias 15 e 16 de julho de 2016, em Cascais.
2 sa vivência individual e comunitária é, como já o disse e o escrevi em tantos e tantos lugares, ofendida quando uma infração criminal é perpetrada. A aplicação de uma pena tem por fim, destarte, o restabelecimento daquela relação que o crime fragmentou. Neste sentido, o direito penal é uma ordem relacional. Mais: é uma ordem duplamente relacional, uma vez que, além da mencionada relação comunicacional que entre todos se entretece e que é violada com a prática do delito, o direito penal pode, em uma ótica fenomenológica, ser compreendido como o relacionamento triangular entre o autor do crime, a vítima e o Estado. O Estado surge, assim, em uma comunidade que, como a nossa, se esteia em valores democráticos e na cabal observância pelo princípio da dignidade da pessoa humana, como um terceiro imparcial, detentor do ius puniendi. Do poder punitivo que, de modo legitimado porque resultado de um processo penal respeitador das garantias de defesa do arguido, pode, perante a prova da existência de um crime e de quem foi o seu agente, determinar a limitada restrição da liberdade de uma pessoa. Não deve, porém, a pena (de prisão) ser perspetivada como um mal que acresce ao mal que o comportamento delitivo consubstancia. Pensar desta forma seria cair no absurdo da maldade. A sanção penal deve, ao invés, ser entendida como um bem, na medida em que restabelece a relação comunicacional que o crime ofendeu. Ou, dito por outras palavras, a pena restaura a paz jurídica que foi abalada com a infração criminal. E, assim sendo, a justiça penal é uma justiça restaurativa. 2 É, contudo, com um significado distinto que se fala, em este nosso tempo, de justiça restaurativa. Fala-se hoje de justiça restaurativa como uma resposta à pergunta que primeiramente formulámos. Isto é, como um modelo que tem o propósito de justificar a aplicação de uma pena ao autor do crime, não esquecendo antes, pelo contrário, reclamando a intervenção da vítima na realização da justiça penal. Da
3 justiça que, para verdadeiramente o ser, necessita não só de ser espacial e temporalmente situada, como também urge que atenda aos concretos ofensores e ofendidos. Porém, em nome da verdade intelectual é bom não esquecer que o chamado direito penal clássico já alberga, de há muito, alguns afloramentos que se compaginam com a atual justiça restaurativa. Assim, refiro-me, por exemplo, ao efeito extintivo que o consentimento do ofendido produz na responsabilidade criminal do autor do crime de furto caso este tenha procedido, até à publicação da primeira sentença, à restituição da coisa furtada ou à reparação dos danos causados. Ou, para vos deixar um outro exemplo, na possibilidade de dispensa de pena no crime de ofensa à memória de pessoa falecida se o ofendido ou quem legalmente o representa considerar satisfatórias as explicações do seu agente. Também no âmbito do direito processual penal encontramos sinais da participação da vítima (ou de quem legalmente a represente), intervenção que, mesmo não se constituindo assistente e não sendo, por essa razão, sujeito processual, pode conformar a tramitação do processo. E pode fazê-lo, desde logo, em uma fase inicial, mormente nas situações em que, por se considerarem de menor gravidade ou que tocam a esfera da vida familiar ou mais reservada da vítima, se lhe atribui o primeiro e, por vezes, imprescindível impulso: a apresentação de queixa. A par da possibilidade de adesão de um pedido indemnizatório, de índole civil, ao processo penal, o ofendido pode, de igual modo, promover uma solução divertida ou, dito por outros termos, uma solução diversa do processo judicial normal, como sejam a suspensão provisória do processo, subordinada ou não a injunções ou regras de conduta, e, mais recentemente, a mediação penal. Estas são, portanto, manifestações de oportunidade em um processo penal que tem como característica essencial o princípio da legalidade. 3
4 Não se pense, contudo, que a participação da vítima se esgota no decurso do processo penal. No terminus deste é ainda possível, aquando da execução da sanção privativa da liberdade, que o ofendido tenha um papel ativo na responsabilização do agente do crime. A intervenção pós-sentencial da vítima motivada por um salutar confronto entre ofensores e ofendidos, ainda que não diretos, com vista ao auto-reconhecimento da culpa nos primeiros e à cicatrização dos danos (por sobre tudo psicológicos) que o crime gerou nos segundos é a base do projeto Building Bridges que, de forma pioneira, se concretizou no Estabelecimento Prisional do Linhó e que constitui o mote das conferências que ocuparão o presente dia. O projeto Building Bridges é, pois, um projeto diferente e inclusivo. Uma proposta que vai ao encontro de uma das finalidades da punição: «a reintegração do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» (n.º 1 do artigo 2.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas das liberdade). 4 Em qualquer um dos casos importa que não nos esqueçamos, porém, que, como já dizia o meu Mestre, o Professor Eduardo Correia, «o direito penal não quer fazer dos homens sábios, artistas, heróis ou santos». Não é, nem tem de ser, este o fim da justiça penal. Antes de forma mais comezinha tem de ser um fim que exprima uma justiça que não esquece o ofendido. Por outro lado, a vítima tem de ter uma voz no direito penal. Uma voz que pode requerer uma solução diversa e, até, intermediada por um terceiro que não é um juiz. Não se ignore, todavia, que o juízo de censura em que assenta a aplicação de uma pena tem de ser realizado por um tribunal e esta realidade é uma conquista, esta sim, civilizacional. É um juízo heterónomo de censura. Um juízo que, em tempo côngruo, afere, de modo imparcial, a culpa de uma determinada pessoa em relação a factos concretos, independentemente do reconhecimento da própria culpa. Só assim
5 se realiza o valor maior da justiça. Só assim se restaura a relação que, com o crime, foi quebrada com todos os membros de uma comunidade. Só assim vamos encontrando o fundamento da punição. No entanto, sejamos humildes e aceitemos, sem preconceitos, uma nova forma de responder à questão da punição criminal. A justiça restaurativa no seu sentido mais restritivo é uma legítima e bem intencionada, repetimos, resposta à pergunta que desde que a humanidade é humanidade fazemos: por que razão punimos? Ora, bastaria este valor de intenção, para continuarmos a empregar uma linguagem cara à dogmática penal, para ficarmos serenamente despertos e expectantes quanto ao futuro valor de resultado que uma tal prática pode trazer ao melhoramento sensível das relações dos cidadãos com a atividade criminal. 5
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