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Glória Diegues Canto
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1 FICHA TÉCNICA facebook.com/manuscritoeditora 2018 Direitos reservados para Letras & Diálogos, uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo Barcarena Título original: Quem Ama Não Esquece Autor: André Sousa Copyright André Sousa, 2018 Copyright Letras & Diálogos, Lisboa, 2018 Revisão: Florbela Barreto/Editorial Presença Imagem da capa Alexandra Cameron/Arcangel Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo Artes Gráficas, Lda. ISBN Depósito legal n. o /18 1. a edição, Lisboa, maio, 2018 Este livro é uma obra de ficção e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

3 1. Aqui estamos os dois. Com os corações partidos, com as lágrimas a escorrerem pelo rosto, com o futuro adiado e uma mão-cheia de nada. Estamos aqui caídos nesta saudade que já é tanta, presos a este destino que em breve irá separar-nos. Ver-te partir é como ver tudo aquilo que sou a desabar, ver ir quem eu sempre soube amar, quem me completa muito para além de mim. Não quero acreditar que isto possa ser um fim, um ponto final, e, se o for não quero mais acreditar neste maldito amor que em tempos me fez feliz e que agora tanto me faz sofrer. Enquanto pego nas tuas malas, não sei o que sinto. Decidiste ir porque ao meu lado nem sempre tudo foi fácil. Decidiste ir porque não querias adiar mais a tua vida. Decidiste ir em busca do teu sonho. Da tua felicidade. E eu aceito. Aceito estar aqui agora, neste aeroporto, a ver-te partir, sabendo que ao partires levas contigo tudo o que é meu. Se algum dia me arrependi de tudo aquilo que fiz, este é um desses dias, e sinto um arrependimento como nunca senti antes. Deixei-te ao abandono tantas vezes, e os sentimentos nunca resistem à falta de cuidado. E eu calado admito. Admito que falhei tantas vezes, sempre que chegava tarde a casa e não tinha tempo 11

4 para ti, sempre que te tomei como garantida quando no amor nada está garantido, sempre que me pedias um abraço e eu não to dava, sempre que adiei decisões que não mereciam ser adiadas, sempre que me olhavas intensamente e eu te pedia mais um momento para não te dar nada. Foram alguns anos assim. Demasiados. Nem sempre as prioridades que escolhemos para a nossa vida são as melhores, mas nem sempre ela nos permite escolher. Somos empurrados pela vida a tomar decisões que não queremos. Somos reféns do nosso tra balho, das nossas escolhas falhadas, das nossas obrigações impos tas por terceiros sem que tenhamos uma palavra a dizer, das nossas rotinas que nos esmagam a criatividade e o impulso, dos nossos passados marcados por desilusões, ou por aqueles medos que nos minam por dentro e tantas vezes nos impedem de mudar. Agora sei que vais e egoísta seria se te pedisse para ficares. Ouço fazerem a última chamada para embarcares rumo aos teus sonhos. O avião já chegou e está parado, do outro lado dos vidros, e eu em silêncio, seguro nas tuas malas e caminho até ao momento em que te despedes de mim. Sei que vais rumo a uma aventura que sempre quiseste viver. Sempre me falaste nisso, em fazer voluntariado, sair de Portugal, da tua zona de conforto, dar um pouco de ti a quem tem menos, mas nunca liguei, nunca te ouvi como devia ter ouvido, nunca cuidei dos teus sonhos, alheado que estava nas minhas conquistas profissionais. Agora, segues o teu caminho. O teu sonho de fazeres voluntariado na Guiné-Bissau. E eu sinto-me vazio, de amor e de sonhos. Admiro-te por isso, por nunca desistires dos teus projetos, por nunca desistires de ti. Mas custa-me custa-me tanto ver-te ir. Partires para além do meu abraço, ires muito para lá da saudade que já sinto dentro de mim. Era tão feliz perto de ti e não o sabia Tento prender as lágrimas, enquanto seguimos os dois pelo corredor repleto de pessoas que se amontoam na excitação da partida 12

5 e de malas de variadas cores e tamanhos. Tão pouco me interessa tudo o que está acontecer ao meu redor. Sinto o meu estômago às voltas e o peito tão apertado que quase não consigo respirar. Falhei tanto, meu amor. Falhei quando fazia da minha vida o meu trabalho, dos meus amigos a minha prioridade, quando fazia dos nossos serões as minhas horas extra, quando fazia dos teus mimos a minha desculpa para adormecer mais cedo. Agora tenho medo, tenho tanto medo de que o amor que sentias por mim já se tenha dissipado, que queiras ir para outro continente só para nunca mais cruzares o teu destino com o meu. Tenho medo de que me esqueças Será que ainda te lembras de tudo o que vivemos juntos? De como nos conhecemos? De como nos entregámos? De como começámos a nossa história e de tudo aquilo que construímos em conjunto? Será que não faço parte do teu futuro? Agarro-me às pequenas grandes coisas da nossa história. Recordo-me de quando te vi pela primeira vez. Estava sentado à mesa de um bar a beber um copo de vinho no final de um dia duro de trabalho com os amigos de sempre, e tu entraste. Trocámos olhares e tu sentaste-te ao balcão. Não consigo esquecer o vestido que te cintava o corpo e que me despertou a atenção. Não sei se foi paixão mas não duvido de que foi amor à primeira vista. Levantei-me da mesa, com uma confiança que até então desconhecia, e fui até aonde estavas sentada. Tu estavas sozinha. Tentei meter conversa, mas não me deste muita confiança. Pouco falaste e o pouco que dizias só acentuava ainda mais o teu mistério. Convidei-te para te sentares comigo e não cedeste, preferiste ficar onde estavas, e eu perguntei-te se te podia fazer companhia. Acredita que foi essa tua resistência que me cativou, que foi essa tua subtil sedução que me fez lutar, desde logo, por ti. Era uma noite de inverno e a chuva que caía lá fora fez-nos ficar mais tempo no bar. Aos poucos foste cedendo e abrindo a tua 13

6 muralha, que ao princípio parecia impenetrável, para eu entrar. Falámos um pouco de tudo, do estado do país, das viagens que ambos gostávamos de fazer, de coisas banais Foi logo nesse dia que me disseste, com os olhos a brilhar e o discurso pautado por um entusiasmo que me cativou, que um dos teus objetivos de vida era fazer voluntariado, que já tinhas feito formação nessa área e que independentemente do lugar, do continente, independentemente de teres de voar para longe da tua margem de conforto, querias dar-te aos outros. Ajudar a construir um mundo melhor. Nem sempre conseguimos pensar a vida desta forma. Nem sempre tivemos os mesmos objetivos. Os mesmos desejos. Às vezes custa-me compreender-te. Sei que seria incapaz de viver uma vida assim, viver uma vida na descoberta, na liberdade de tudo aquilo que pensamos, na humanidade e no cuidado com os outros, de quem tanto nos esquecemos no nosso egocentrismo diário. Sou um egoísta? Só penso em mim e no meu umbigo?, como tantas vezes me acusaste nas discussões que aos poucos foram minando o nosso dia a dia. Talvez seja. Enquanto seguimos em direção à porta, seguro-te na mão, olho-te nos olhos e deixo que o meu coração te diga tudo aquilo que tenho guardado dentro de mim. Custa-me ver-te partir sussurro. Vou e não sei se volto, porque a vida nem sempre pode ser planeada, nem sempre podemos ter tudo certo, tudo dado como garantido, tudo estruturado segundo aquilo que pensamos ser o mais correto dizes num tom de voz duro, baixando os olhos. Demasiado duro. Foi nesse momento que senti tudo o que estavas a dizer-me com uma intensidade atroz. É como se me tivessem esmurrado bem no estômago com toda a verdade que tinha de ouvir. Será que ainda vamos a tempo? pergunto a medo. A tempo de quê, Santiago? Não sei. Neste instante não sei mais nada. Apenas vou, vou porque tenho de ir. Porque é o meu 14

7 sonho e está na hora de pensar em mim. Vou para fugir a este nosso amor que agora só me fere. Já discutimos tanto. Dissemos tantas palavras de que nos arrependemos. Falámos tanto e nada mudou neste tempo. Tu não mudaste, deixavas-me à mercê da minha solidão, à mercê de cada noite em que as lágrimas me escorriam pelo rosto enquanto estavas fora de casa. E do que te serviu isso? Para quê tantas horas a mais de trabalho? Tanta vontade de querer sempre mais? Tanta farra com os amigos? Sempre a adiar sonhos maiores. Os meus sonhos! Agora estamos aqui e é assim que vamos acabar? Neste aeroporto? Tenho pena de ver o ponto a que chegámos mas também sei que, se tivermos de voltar, voltamos depois de nos descobrirmos a nós mesmos. Nunca mais conseguirei esquecer as tuas palavras. Não consegui dizer mais nada. Não havia mais nada a dizer. Abraçámo-nos, beijei-te o rosto e seguiste o teu caminho. Pedi, baixinho, enquanto te via a caminhar até te perder de vista, que não me esquecesses, mas se o fizeres, sei que mereço esse esquecimento, que sou merecedor de cada noite de solidão que vou viver, de cada lágrima que vou derramar sozinho entre as quatro paredes do nosso quarto. O caminho de volta ao carro foi doloroso. Cada passo pareceu uma eternidade. Sentia o olhar dos outros, de todos aqueles que, entusiasmados, ali estavam à espera para partir ou que estavam a chegar. Eu só queria desaparecer, esquecer-me daquela despedida, daquela manhã, da minha cobardia, da felicidade que deixei escorrer-me por entre os dedos. Quando cheguei finalmente ao carro, liguei o rádio. Estava a tocar a música que tantas vezes ouvimos juntos. Desliguei rapidamente. Tudo o que agora menos quero é recordar-me de nós, de tudo o que fomos e já não somos. Quero esquecer. Liguei o carro. E deixei para trás tudo aquilo que sou contigo. 15

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