Atingidas por barragens : Uma história de vida e luta enquanto Mulheres e Militantes de um Movimento Social
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- Júlio César Fragoso Galindo
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1 Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Atingidas por barragens : Uma história de vida e luta enquanto Mulheres e Militantes de um Movimento Social Alexandra Martins Silva (Universidade de Coimbra UC) Mulheres; Barragens; Meio ambiente ST 12 - Gênero e Ambiente 1. Introdução O presente artigo busca problematizar as formas de resistência das comunidades atingidas por barragens, destacando que desde o final da década de sessenta, estas comunidades opuseram-se ao programa de desenvolvimento hidroelétrico elaborado pelo regime militar. As controvérsias em torno destes grandes projetos tiveram início a partir do reconhecimento dos impactos sociais, ambientais e imateriais destas obras sobre as vidas das populações atingidas. Contudo, estas comunidades não puderam expressar qualquer evidência de descontentamento durante este período. A ditadura impossibilitou que os atingidos e atingidas por estas grandes obras, pudessem se organizar e reivindicar os seus direitos. Na década de oitenta, com o fim da ditadura militar e com o processo de abertura política, estas populações tiveram a possibilidade de se organizarem e de exigirem, das empresas construtoras de barragens e do próprio governo, uma maior transparência e divulgação de informações sobre os projetos a serem construídos. Esta mobilização ocorreu de diversas maneiras, porque diversa é a estrutura agrária, a cultura e a organização destas comunidades. Diversa também foi a forma como estas populações iniciaram a sua luta. Neste aspecto, apontamos que esta luta foi desencadeada a partir de um sentimento comum de expropriação, espoliação e exploração, às quais estas populações foram submetidas. Destacamos ainda que esta época foi marcada por uma intensa pressão popular, caracterizada por conquistas localizadas, ou seja, que expressavam uma região, um rio ou uma barragem. Assim, as populações atingidas de diversas regiões brasileiras começaram por constituir as suas lutas a partir das suas próprias experiências e especificidades. Esta diversidade cultural pode ser considerada como um dos fatores mais positivos para o fortalecimento nascente do movimento em questão, afirmando, desta forma, a riqueza das diferenças culturais, da organização e da experiência de cada luta e de cada organização local ou regional. 2. A Luta de Atingidos ou Atingidas? A história de luta das comunidades atingidas por barragens no Brasil, como vimos foi uma narrativa de conflitos cotidianos e de resistência, marcada por impasses e vitórias. Estes embates
2 2 sociais não podem ser considerados, sem que façamos menção à diversidade de atores que participaram deste processo. Essas lutas tiveram como protagonistas homens, mas também mulheres. A resistência contra a construção destes grandes projetos consolidou-se em muitos países do Sul, com a participação conjunta destes dois atores. Esta mobilização não foi construída apenas em torno da reconquista dos seus bens materiais e imateriais, mas também engendrou o processo de formação da identidade de atingida por parte de mulheres, as quais, ao romperem com as mais diversas formas de opressão, se transformaram em personagens principais no conflito contra a construção destes projetos. Desse modo, ao se mobilizarem, protagonizaram, principalmente, o fortalecimento da sua identidade enquanto mulheres, num espaço marcadamente masculino. Gohn destaca que as pesquisas não têm enfatizado o papel das mulheres nas ações coletivas, sob o ângulo do gênero. Essas pesquisas constatam apenas que a presença e participação das mulheres são preponderantes na composição dos movimentos, centrando o foco da análise nas demandas dos mesmos, sem analisar os conflitos cotidianos vivenciados por aquelas, tanto no universo doméstico e laboral, como no próprio exercício de participação no âmbito dos movimentos, face a uma sociedade na qual imperam valores machistas (1). Com o objetivo de não cair nos erros analíticos abordados por Gohn, pretendemos analisar o processo de luta destas mulheres, através dos seus conflitos cotidianos. Neste sentido, gostaríamos de destacar a inserção e ação da mulher na luta contra barragens, e priorizar a especificidade do embate existente entre três dimensões que consideramos fundamentais: a mulher enquanto provedora da força de trabalho, da família e por último, como participante ativa no movimento. 3. O Impacto da Construção de Barragens na Vida das Mulheres A importância da análise do impacto da construção de barragens na vida das mulheres atingidas por estas obras torna-se fundamental, na medida em que, para alguns autores e para a própria Comissão Mundial de Barragens, as conseqüências advindas da construção de grandes empreendimentos hidroelétricos, contribuíram para o desequilíbrio das relações de gênero existentes (2). Contudo, não podemos deixar de destacar que as mulheres atingidas pelas barragens são, na sua grande maioria, residentes em áreas rurais e, por esse motivo, mantêm uma relação muito estreita com a terra. São usuárias dos recursos naturais, devido principalmente à produção de alimentos e de outros bens destinados ao consumo da sua família. Em termos gerais, o interesse por esta temática surge a partir das referências de Shiva, Mies, McCully (3), entre outros autores, os quais colocam em evidência a relação entre os impactos resultantes da construção de barragens e as conseqüências dos mesmos para a vida cotidiana das
3 3 mulheres. Para estes autores, este processo caracteriza-se como traumático, devido à ligação próxima destas mulheres com o meio ambiente local. O autor em seu livro Rios Silenciosos, diz-se surpreendido com o pouco que se tem investigado acerca da forma como as mulheres e os homens sofrem os impactos causados pelas barragens, de maneira diferenciada. O autor destaca que a Comissão Mundial de Barragens solicitou o que pode ser considerado como a primeira visão geral dos impactos das barragens sobre as mulheres e as relações de gênero. Contudo, destaca também que os estudos baseados no Relatório da Comissão indicam que, com o empobrecimento das comunidades, a crise social e os impactos resultantes dos deslocamentos forçados acabam por ser mais drásticos nas mulheres do que nos homens. No entanto, afirma que, na sua grande maioria, os projetos de barragens têm ignorado as relações de gênero e as estruturas de poder das comunidades afetadas (4). 3. Considerações Finais Esta desigualdade na relação de gênero resultante do impacto de grandes barragens corresponde, para Shiva e Mies, ao papel que a mulher tem desempenhado através da história, principalmente, as mulheres do Sul. Para as autoras, na maior parte das culturas, as mulheres têm sido as guardiãs da biodiversidade. Elas produzem, reproduzem, consomem e conservam a biodiversidade na agricultura. Por sua vez, segundo Shiva e Mies, tal como em todos os outros aspectos do trabalho e do saber das mulheres, o seu papel no desenvolvimento e na conservação da biodiversidade, tem sido considerado como não-trabalho e não-conhecimento (5). Podemos abordar que a atribuição de papéis diferenciados a homens e mulheres foi, ao longo da história, sustentada por uma rígida divisão sexual do trabalho, a qual tem relegado a mulher para um papel secundário, no que diz respeito não só àquele, mas também à vida política e às lutas sociais. A rejeição deste papel secundário e a afirmação da sua presença ativa nos movimentos sociais contribuíram para que estas mulheres pudessem organizar e lutar pelos seus direitos de gênero, e também como participantes do Movimento de Atingidos por Barragens MAB. Esta participação emerge quando estas mulheres são obrigadas a abandonar as suas casas e terras. A falta de indenizações e reassentamentos tornam-se o ponto principal de luta destas populações. No entanto, este constituiu apenas um dos muitos elementos do processo de construção da luta destas mulheres. A importância do seu lugar pode constituir um dos principais fatores de mobilização e principalmente, de conservação da sua casa, terra e de todas as suas relações de vida. Neste processo, pareceu-nos unânime a forte identificação que estas mulheres faziam com as suas casas e as atividades que desempenhavam anteriormente à implementações destas obras. Desta forma, entendemos que o processo de luta destas mulheres foi construído a partir de uma
4 4 mudança drástica no seu modo de vida. A situação de empobrecimento e de privação de seus direitos constituiu um dos fatores fundamentais que as levaram a entrar neste conflito e a construírem a sua resistência. Ingressaram na luta pela recuperação de seu patrimônio (material e imaterial), reivindicando-o enquanto direito fundamental para a sua própria sobrevivência. Cabe agora compreendermos a inserção e ação destas mulheres na luta contra o processo de construção de barragens e perceber como aquelas, com diferenciadas histórias de vida, tornaramse participantes fundamentais de um movimento de resistência em torno da reconquista de seu patrimônio. Estas questões tornam-se importantes, na medida em que a construção da resistência feminina foi cimentada após o reconhecimento destas mulheres enquanto participantes de um movimento social, mas acima de tudo, enquanto mulheres desapropriadas. A participação destas mulheres atingidas por barragens se manifestou de uma forma incipiente, pois primeiramente participaram de reuniões locais, regionais e, gradualmente, foram conquistando o seu espaço. No entanto, não podemos deixar de destacar que, neste processo, quando estas mulheres decidem participar ativamente do Movimento e se inserem na luta política, passam a assumir uma nova identidade, ou seja, a idéia de pertença a um grupo, que compartilha os mesmos valores e partilha as mesmas responsabilidades. Como forma de opressão a esta participação, as entrevistadas (6) referiram-se, na sua grande maioria, ao patriarcado e às suas formas de atribuir distintos papéis sociais às mulheres e aos homens. Destacamos que, o termo patriarcado descreve um sistema de organização social, formado a partir de células familiares estruturadas de tal forma que as tarefas, as funções e a noção de identidade de cada um dos sexos estão definidas de uma forma distinta e opostas, sendo estabelecido que as posições de poder, privilégio e autoridade pertencem aos elementos masculinos, quer ao nível familiar, quer ao nível mais lato da sociedade no seu todo (7). Para as participantes do MAB, esta condição social permitiu a exclusão sistemática das mulheres e da sua participação nas iniciativas de mobilização dos movimentos sociais. Apontam que as suas atividades sempre estiveram vinculadas às atividades domésticas e que a sua intervenção política foi inicialmente sancionada pela família e pela sociedade. Nesta perspectiva, para as mulheres atingidas, o patriarcado criou um sistema discriminatório, em que o gênero feminino se restringiu à esfera privada, criando inúmeras exclusões. As mulheres brasileiras que integram este movimento organizaram-se em defesa do seu patrimônio e principalmente, pelos seus direitos de gênero e de atingidas por barragens. Neste conflito, estas mulheres enfatizaram, por um lado, a presença feminina mobilizada contra as grandes barragens e, por outro, este movimento social como sujeito, no processo de formação da identidade da mulher deslocada da sua terra.
5 5 Nesse sentido, como tivemos oportunidade de analisar, a organização do Movimento brasileiro de resistência à construção de barragens (MAB) foi caracterizada por homens e mulheres. Nessa luta, ambos os gêneros protagonizaram avanços e conquistaram espaços de emancipação. Vivendo o cotidiano dos impactos destes grandes projetos, estas protagonistas acabaram por engendrar a sua resistência, mas principalmente, a sua existência enquanto mulheres e participantes de um movimento social. 4. Notas (1) GOHN, M (2002: 237), Teoria dos movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola. (2) WCD (2000); In MCCULLY, P (2004: 36), Ríos silenciados. Ecología y política de las grandes represas. Argentina: Proteger Ediciones. (3) SHIVA, V; MIES, M (1993), Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget. (4) MCCULLY, P (2004: 36), Ríos silenciados. Ecología y política de las grandes represas. Argentina: Proteger Ediciones. (5) SHIVA, V; MIES, M (1993: 220), Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget. (6) As entrevistas foram feitas durante o IIº ENMAB (Segundo Encontro Nacional do Movimento de atingidos por Barragens), na cidade de Curitiba, no ano de (7) ROSENBLANT (1994), In MACEDO, G; AMARAL, A (2005: 145), Dicionário da crítica feminista. Porto: Edições Afrontamento. 5. Referência Bibliográfica LEFF, E (2000), Saber Ambiental: sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder, Ciudad de México: Siglo XXI. ROY, A (2001), Pelo Bem Comum. Edições Asa. ROSA, P (1988), Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. Aspectos econômicos e tecnológicos, sociais e ambientais. São Paulo: Editora Marco Zero. SANTOS, B (2004a), Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento. SANTOS, M (2005), O retorno do território, In: Territorio y movimientos sociales. OSAL (Observatório Social da América Latina) Ano VI N.º(Enero-Abril). Buenos Aires: CLACSO. SHERER-WARREN, I (2005), Redes de Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loyola. SIGAUD, L (1988), Efeitos sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. Rio de Janeiro: Museu Nacional - UFRJ.
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