O QUE AS CÉLULAS SOMÁTICAS REALMENTE REPRESENTAM?

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1 O QUE AS CÉLULAS SOMÁTICAS REALMENTE REPRESENTAM? 1 Adil Knackfuss Vaz CAV/UDESC, LAGES, SC Introdução No mundo todo, as células somáticas se tornaram a principal ferramenta de avaliação da qualidade do leite. Elas adquiriram este papel porque representam um espelho do estado sanitário da glândula mamária, e porque são fáceis de medir de maneira automatizada, permitindo a análise de muitas propriedades de forma prática e barata. Isto faz com que com freqüência elas passem a representar apenas um número em um resultado recebido rotineiramente de um laboratório. Muitas vezes, nem o técnico responsável pela propriedade nem o produtor estiveram envolvidos nas coletas das amostras, e especialmente este último só se interessa pelo aspecto econômico do resultado recebido quanto vou receber pelo leite? Esta banalização da Contagem de Células Somáticas (CCS) deve ser evitada, pois é importante ter consciência do que elas efetivamente representam, ou seja, um processo de defesa da glândula mamária, baseado em mecanismos imunitários fisiológicos. A eficácia desse processo fará com que uma infecção possa ou não se estabelecer, o que de certa forma determina se aquela vaca terá sua produção leiteira diminuída e se seu proprietário terá seu lucro reduzido na mesma medida. Tipos de células As células somáticas são principalmente de dois tipos: células epiteliais e células brancas, de origem sanguínea (Concha, 1986; Laranja Da Fonseca e Veiga Dos Santos, 2000). As células epiteliais existem normalmente no leite e são predominantes em glândulas mamárias não infectadas. Elas não tem papel imunológico, mas podem liberar substâncias chamadas citoquinas que atraem células brancas. As células brancas são, na glândula normal, macrófagos, e na glândula infectada, neutrófilos e células T (Paape, Mehrzad et al., 2002; Leitner, Eligulashvily et al., 2003). Nas mastites agudas, por exemplo as causadas por Escherichia coli, os neutrófilos podem representar praticamente 100% das células encontradas na secreção mamária(philpot e Nickerson). Nas mastites crônicas o quadro é diferente, com as células T apresentando uma maior participação (Leitner, Eligulashvily et al., 2003). Como elas chegam lá As células epiteliais já estão presentes, e seu aparecimento é conseqüência do processo natural de desprendimento de células velhas. As demais têm origem sanguínea. São atraídas para o interior da glândula mamária através da inflamação produzida por uma infecção. O processo inflamatório produz substâncias que são quimiotáticas para neutrófilos.(persson, Sandgren et al., 1992; Paape, Mehrzad et al., 2002) Estas substâncias se ligam ao endotélio vascular nos locais próximos à infecção, fazendo com que os neutrófilos, que apresentam

2 receptores para estas substâncias em suas membranas, rolem sobre a parede interna do vaso sanguíneo. Quando sua velocidade se reduz o suficiente, elas são capazes de atravessar o endotélio e se transferirem para o leite (Janeway, Travers et al., 2001). Fagocitose Há muito se sabe que a imunidade na glândula mamária é baseada na combinação anticorpos/fagocitose por neutrófilos. Esta associação é necessária porque a presença de fatores como caseína e glóbulos de gordura fazem o neutrófilo esgotar suas energias fagocitando estas substâncias, ao invés de fagocitar patógenos (Paape, Mehrzad et al., 2002). A opsonização dos antígenos direciona a fagocitose contra eles, aumentando sua eficácia (Hogan, Todhunter et al., 1992; Guidry, Berning et al., 1993). Também os agentes patogênicos procuram evitar a fagocitose, produzindo cápsulas anti-fagocíticas, como no caso de Staphylococcus sp. (O'riordan e Lee, 2004). A opsonização causa a ativação do complemento, substância presente no leite e no soro, cujo componente C5a é intensamente quimiotático para neutrófilos, sendo inclusive responsável pelo maior número de células somáticas presentes na infecção por E. coli. Ao contrário, Staphylococcus sp. é menos capaz de estimular a produção de C5a, o que pode em parte explicar a maior dificuldade em eliminar este agente (Riollet, Rainard et al., 2000). C5a existe em pequena quantidade em leite normal, mas é aumentado cerca de cinco vezes na presença de mastite subclínica, e mais de vinte vezes em leite de vacas com mastite por E. coli (Rainard, Sarradin et al., 1998). A capacidade de produção de C5a varia grandemente entre vacas, sendo uma das explicações para a capacidade genética de resistir à mastite (Rainard e Poutrel, 2000). Como melhorar a atuação das células somáticas As primeiras tentativas de se melhorar a atuação das células somáticas foram aumentando seu número. Parecia lógico pensar que mais células somáticas exerceriam mais fagocitose, resultando na resolução de um número maior de infecções (Kenny, Bastida et al., 1984; Paape, Norcross et al., 1986; Nickerson, Boddie et al., 1990; Sears, Smith et al., 1990; Hill, 1991). Foram utilizadas desde infecções com bactérias de baixa patogenicidade até o uso de um fio de nylon dentro da cisterna mamária como formas de aumentar o número de células. O uso da CCS como forma de medir a qualidade do leite inviabilizou estes métodos, uma vez que a CCS mais alta não faz sentido do ponto de vista econômico, pois à medida que esta sobe, a produção de leite diminui (Philpot e Nickerson). Em uma glândula mamária normal, o importante é a capacidade de mobilização das células somáticas, e não seu número. Vacas capazes de mobilizar um grande número de células somáticas apresentam maior resistência à mastite (Hibbitt, 1983; Rainard e Riollet, 2003), sendo possível a seleção genética desses indivíduos, pois a herdabilidade desta característica é relativamente alta (Monardes, 1995a; b). Uma forma de aumentar a mobilização de neturófilos é a imunização. A vacinação contra a mastite estafilocócica melhora a capacidade de mobilização de células para o leite (Smith, Colditz et al., 1983; Herbelin, Poutrel et al., 1997). Desta forma, animais previamente imunizados são capazes de transferir neutrófilos do sangue para o leite mais rapidamente. 2

3 A imunização traz ainda a vantagem de melhorar a eficiência da fagocitose através da opsonização dos agentes patogênicos. A quantidade, e principalmente o tipo de anticorpo produzido e transferido para a glândula mamária são importantes. Por exemplo, IgA e IgG1 não atuam como opsoninas, enquanto IgM e IgG2 o fazem (Barrio, Rainard et al., 2003). Isto parece ocorrer porque neutrófilos de ruminantes apresentam receptores específicos para o fragmento Fc dessas imunoglobulinas, mas não para IgG1 (Guidry, Miller et al., 1985; Guidry, Berning et al., 1993). Conclusões As células somáticas, além de indicadoras da saúde da glândula mamária, desempenham um importante papel na imunidade contra mastite. O conhecimento do papel das células somáticas na imunidade é tão importante quanto a CCS, pois permite a adoção de estratégias de imunização e seleção genética. Referências Bibliográficas Barrio, M. B., P. Rainard, et al. Assessment of the opsonic activity of purified bovine siga following intramammary immunization of cows with Staphylococcus aureus. J Dairy Sci, v.86, n.9, Sep, p Concha, C. Cell types and their immunological functions in bovine mammary tissues and secretions - a review of the literature. Nord.Vet.Med., v.38, p Guidry, A. J., L. M. Berning, et al. Opsonization of Staphylococcus aureus by bovine immunoglobulin isotypes. Journal of Dairy Science, v.76, p Guidry, A. J., R. H. Miller, et al. Variation in immunoglobulin isotype concentrations in milk and their relationship to phagocytosis by bovine polymorphonuclear neutrophil leukocytes (PMNL). Kieler Milchwirtschaftliche Forschungsberichte, v.37, n Herbelin, C., B. Poutrel, et al. Immune recruitment and bactericidal activity of neutrophils in milk of cows vaccinated with staphylococcal alpha-toxin. Journal of dairy science, v.80, n.9, Sept, p Hibbitt, K. G. Immunity factors in mastitis. Proceedings, British Cattle Veterinary Association Hill, A. W. Somatic cells - friends or foes? Flem. Vet.J., v.62, n.suppl. 1, p Hogan, J. S., D. A. Todhunter, et al. Opsonic activity of bovine serum and mammary secretion after Escherichia coli J5 vaccination. J Dairy Sci, v.75, n.1, p Janeway, C. A., P. Travers, et al. Immunobiology: Garland Publishing

4 Kenny, K., F. D. Bastida, et al. The susceptibility of bovine udder quarters colonized with Corynebacterium bovis to experimental infection with Staphylococcus aureus or Streptococcus agalactiae. Can J Comp Med, v.48, n.2, p Laranja Da Fonseca, L. F. e M. Veiga Dos Santos. Qualidade do leite e controle da mastite. São Paulo: Lemos Editorial Leitner, G., R. Eligulashvily, et al. Immune cell differentiation in mammary gland tissues and milk of cows chronically infected with <i>staphylococcus aureus</i>. Journal of Veterinary Medicine. Series B, v.50, n.1, 2003, p Monardes, H. Contagem de celulas somaticas e melhoramento genetico da resistencia a mastite - parte I. Gado Holandes, v.fevereiro, n.437, p a.. Contagem de celulas somaticas e melhoramento genetico da resistencia a mastite - parte II. Gado Holandes, v.marco, n.438, p b. Nickerson, S. C., R. L. Boddie, et al. Effects of novel intramammary device models on incidence of mastitis after experimental challenge. Journal of Dairy Science, v.73, n.10, p O'riordan, K. e J. C. Lee. Staphylococcus aureus capsular polysaccharides. Clin Microbiol Rev, v.17, n.1, Jan, p Paape, M., J. Mehrzad, et al. Defense of the bovine mammary gland by polymorphonuclear neutrophil leukocytes. J Mammary Gland Biol Neoplasia, v.7, n.2, Apr, p Paape, M. J., N. L. Norcross, et al. Effects of abraded IMD and immunization on neutrophil function and response to challenge. Journal of Dairy Science Persson, K., C. H. Sandgren, et al. Studies of endotoxin-induced neutrophil migration in bovine teat tissues, using indium-111-labeled neutrophils and biopsies. Am J Vet Res, v.53, n.12, p Philpot, W. N. e S. C. Nickerson. Vencendo a luta contra a mastite. Napperville: Westphalia Landtechnik do Brasil Rainard, P. e B. Poutrel. Generation of complement fragment C5a in milk is variable among cows. J Dairy Sci, v.83, n.5, May, p Rainard, P. e C. Riollet. Mobilization of neutrophils and defense of the bovine mammary gland. Reprod Nutr Dev, v.43, n.5, Sep-Oct, p Rainard, P., P. Sarradin, et al. Quantification of C5a/C5a(desArg) in bovine plasma, serum and milk. Vet Res, v.29, n.1, Jan-Feb, p

5 5 Riollet, C., P. Rainard, et al. Differential induction of complement fragment C5a and inflammatory cytokines during intramammary infections with Escherichia coli and Staphylococcus aureus. Clin Diagn Lab Immunol, v.7, n.2, Mar, p Sears, P. M., B. S. Smith, et al. Protective effect of Staphylococcus chromogenes infection against Staphylococcus aureus infection in the lactating bovine mammary gland. J Dairy Sci, v.73, n.12, p Smith, K. L., I. G. Colditz, et al. Properties of neutrophils recruited into inflammatory foci with homologous or heterologous antigen in immunized ewes. Inflammation, v.7, n.3, p