Levantamento do estado de conservação da pintura Retrato de Marcel Duchamp de Albuquerque Mendes
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- Júlio Angelim de Abreu
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1 Resumo Levantamento do estado de conservação da pintura Retrato de Marcel Duchamp de Albuquerque Mendes Albuquerque Mendes (Trancoso, 1953) é um dos mais destacados e versáteis artistas contemporâneos portugueses, em que a prática da pintura se combina com manifestações do domínio da instalação e da performance. Tendo feito parte do Grupo Puzzle, Albuquerque fundou e dirigiu, em conjunto, com Gerardo Burmester o Espaço Lusitano. Com o objectivo principal de divulgar a arte portuguesa, o espaço mostrou importantes exposições, sempre aliadas a um valor performático, como a série de 14 pinturas Os retratos de Marcel Duchamp, da qual faz parte a presente obra. Baseado nas fotografias que Man Ray fez de Marcel Duchamp travestido de Rose Sélavy, Albuquerque fez em 1980/81 catorze múltiplos dessa imagem. Embora tivessem o mesmo motivo, Albuquerque procurou que os trabalhos fossem algo diferentes ao nível de técnicas, conferindo ora um cariz matissiano ou impressionista ou então pollockiano, com drippings e escorrimentos de tinta, como é o caso da pintura em questão. Figura 1 - Retrato de Marcel Duchamp Técnica mista; 69,5x96cm; 1980/81. Colecção particular. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal Processo nº (QREN) 1
2 Estudo Técnico Suporte Estrutural Como suporte estrutural, a pintura apresenta uma grade de madeira de natureza resinosa, provavelmente pinho, composta por 4 travessas, em sistema de encaixe macho/fêmea e um local para 6 cunhas (Fig. 2). Tendo ainda ao centro um reforço através de uma régua horizontal, a grade encontra-se presa à moldura através de agrafes metálicos, que por sua vez foram aplicados, directamente, na camada cromática (Fig. 3). Figura 2 Fotografia sob luz directa do tardoz da pintura. Observa-se a total ausência de cunhas, o que origina falta e diferenças de tensão no suporte da pintura. Figura 3 Fotografia sob luz directa da extremidade esquerda no reverso da pintura; pormenor de um agrafe utilizado para fixar a pintura à moldura. Suporte em tela A pintura foi executada sobre uma tela, provavelmente, de algodão, de densidade média, aspecto regular e com uma estrutura em tafetá 2:1 2 fios juntos no sentido vertical e um fio mais grosso no sentido horizontal. Contagem dos fios por 0,5 cm2 10 fios no sentido vertical e 3 fios no sentido horizontal (Fig. 4). A tela deverá ter sido cortada pelo próprio artista, pois além de se observar um corte irregular com fios soltos, visualizam-se remates desiguais e assimétricos que não correspondem a um acabamento industrial (Fig. 5). Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal Processo nº (QREN) 2
3 Figura 4 - Microfotografia (OM, ampliação de 60x) da estrutura do tecido em tafetá 2:1 2 fios no sentido vertical e um fio mais grosso no sentido horizontal. Contagem dos fios em 0,5cm2 10 fios no sentido vertical e 3 fios no sentido horizontal. Figura 5 Fotografia sob luz directa. Pormenor do bordo superior da pintura, onde se visualizam sujidades acumuladas e restos da camada de preparação. Camada de preparação A pintura, propriamente dita, encontra-se executada sobre uma camada de preparação de natureza espessa e de cor branca. A aparência heterogénea e os restos deixados nos bordos e no tardoz da pintura deixam antever que este estrato terá sido preparado, manualmente, pelo artista. Esse aspecto foi confirmado através de uma entrevista realizada ao pintor, que se recorda de ter aplicado por cima do pano cru de algodão, uma tinta branca comercial de revestimento de paredes, da marca Barbot. Para identificação dos materiais constituintes, foram efectuadas análises científicas através de espectroscopia de infravermelho com transformada de Fourier (FTIR), espectrometria de fluorescência de raios X dispersiva em energia (EDXRF) e microscopia electrónica de varrimento com espectroscopia de raios X associada (SEM-EDS), que revelaram tratar-se de uma preparação à base de polivinil-acetato (PVA), carbonato de cálcio e caulinite. Camada cromática Segundo o autor, em relação à pintura terão sido misturadas tintas acrílicas de artista com cola e com tinta comercial de revestimento de paredes da marca Barbot. No entanto, de acordo com as análises científicas efectuadas às cores branca e azul, somente foi identificado o PVA como aglutinante. Os acrílicos que o artista mencionou ter utilizado, provavelmente, terão sido utilizados nos traços mais finos do rosto da figura, local onde não foi possível recolher amostra para analisar. Ao nível de execução, a pintura revela tanto camadas finas de tinta de pouca espessura que deixam transparecer os vincos do tecido, como camadas grossas e empastadas, que deixaram as marcas do pincel bem visíveis. À superfície e com especial enfoque no chapéu da figura, foi aplicada uma tinta branca mais fluida que, fruto de gestos livres, confere um efeito de pingos e drippings (Fig. 6 e 7). Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal Processo nº (QREN) 3
4 Figura 6 Fotografia sob luz rasante. Aspecto geral de drippings e detalhe dos vincos do tecido na superfície da pintura, junto à aba direita do chapéu da figura. Figura 7 - Microfotografia ((OM, ampliação de 60x); pormenor da fissuração da camada cromática num dripping, localizado na parte superior do chapéu. A camada pictórica estende-se até aos bordos e tardoz da pintura (Fig. 5), o que significa que o artista engradou a tela depois de a ter pintado. Este procedimento também foi confirmado em entrevista pelo pintor, sendo uma prática corrente na sua obra. A paleta cromática revela uma predominância de tons claros brancos, azuis claros, amarelos e rosas. Camada de revestimento final Não se consegue visualizar a olho nu uma camada de revestimento final. No entanto e de acordo com a entrevista, o artista terá aplicado, no final e de modo manual, uma camada de cola branca (PVA) misturada com água. Moldura A pintura apresenta uma moldura de aspecto recente e de produção em série unida, directamente, à superfície pictórica através de agrafes (Fig.3). Intervenções anteriores Não se observam intervenções anteriores. Estado de conservação Ao nível de suporte estrutural, a obra apresenta um bom estado geral de conservação. No entanto, a camada cromática encontra-se, globalmente, fragilizada, ostentando fissuras, lacunas e tendência para se destacar da tela. À superfície observam-se algumas diferenças de brilhos, bem como acumulação de poeiras. Sujidades De um modo geral, a sujidade superficial afecta toda a pintura, destacando-se, sobretudo, no reverso do suporte, a acumulação de pó e a formação de teias de aranha. De referir que o Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal Processo nº (QREN) 4
5 pó é uma fonte de sujidade e acidez, podendo servir como veículo transportador de insectos e esporas microbianas. As poeiras também se encontram depositadas sobre as camadas superficiais da policromia, o que revela alguma falta de manutenção (Fig. 5). Deterioração do suporte Suporte estrutural grade A estrutura da grade de madeira apresenta um bom estado geral de conservação, não se visualizando deformações nem acção de insectos xilófagos. Constata-se a total ausência de cunhas, o que origina falta e diferenças de tensão no suporte da pintura (Fig. 2). Suporte estrutural tela O tecido, de natureza grossa e cortado pelo artista, encontra-se num bom estado geral de conservação, no entanto, devido à ausência de cunhas na grade, a tela encontra-se pouco esticada e algo frouxa. Reconhecem-se ligeiras deformações planares, especialmente na parte lateral esquerda, devido à falta de tensão do tecido (Fig. 8). Figura 8 Fotografia sob luz rasante onde se visualizam deformações planares, na extremidade superior direita e inferior esquerda, devido a falta de tensão na tela. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal Processo nº (QREN) 5
6 Além disso, o pano manifesta vincos em toda a superfície pintada, sobretudo visíveis no tardoz da pintura (Fig. 9). Os vincos não proporcionam uma superfície totalmente lisa, o que não favorece a adesão da tinta. Figura 9 Fotografia sob luz rasante. Pormenor dos vincos observados em toda a superfície do tecido. Deteriorização da camada preparatória e cromática Camada de preparação Observa-se alguma aderência entre a camada de preparação e o suporte de tela, bem como entre a camada de preparação e a camada cromática. No entanto, nos bordos da pintura, nas partes onde se pode reconhecer apenas a camada de preparação, verifica-se que esta se encontra enrijecida, algo que não favorece a flexibilidade da camada pictórica e que propicia o destacamento. De igual modo, a manipulação da amostra, para efeitos de exames científicos, revelou consistir numa preparação quebradiça, rígida e com tendência a partir, o que indicia muita quantidade de carga em relação ao aglutinante. Esta suposição viria a ser, posteriormente, confirmada através da análise realizada por FTIR. Em comparação com as amostras das cores branca e azul, a preparação revelou bandas mais intensas de caulinite, o que denota muita quantidade de carga inerte - carbonato de cálcio e caulinite, em relação ao aglutinante PVA. Camada cromática A camada cromática encontra-se algo fragilizada ao nível de coesão e aderência. À superfície observam-se fissuras, estalados e levantamentos pontuais que afectam todos os estratos da camada pictórica, deixando por vezes o suporte de tela à vista, como se pode constatar a olho nu ou através do microscópio (Figs. 10,11,12). Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal Processo nº (QREN) 6
7 Figura 10 Fotografia sob luz directa; aspecto geral de estalados e levantamentos pontuais que deixam o suporte à vista, na parte superior esquerda da pintura. Figura 11 Microfotografia (OM, ampliação de 60x). Figura 12 Microfotografia (OM, ampliação de 60x). A procedência destas patologias prematuras surge, provavelmente, devido à demasiada rigidez constatada na camada de preparação da pintura, o que significa que a sua aderência é superior à pintura, do que ao tecido. O tipo de estalado assemelha-se ao de idade, no entanto aqui, apesar de também afectar todas as camadas até ao suporte, não se deve ao envelhecimento natural dos materiais constituintes. Neste caso concreto, a tendência da camada pictórica em fissurar e formar estalados, poderá estar relacionada com o excesso de carga inerte na camada de preparação, revelado através dos exames científicos realizados. Embora a preparação tenha formado uma camada contínua com a pintura, a sua perda de flexibilidade, pode dar origem a que a camada cromática não consiga acompanhar os movimentos de contracção e expansão do suporte, Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal Processo nº (QREN) 7
8 provocando patologias prematuras como fissurações e estalados que, progressivamente, se vão desprendendo do suporte até cair, causando lacunas na camada pictórica (Fig. 13 e 14). Figura 13 Fotografia sob luz directa; pormenor de uma lacuna na camada cromática, localizada na parte inferior da aba esquerda do chapéu. Figura 14 - Microfotografia (OM, ampliação de 60x). Os bordos da pintura encontram-se, particularmente, fragilizados, ostentando fissuras e estalados, provavelmente, devido ao facto de o artista ter engradado a pintura à posteriori. Os agrafes utilizados para fixar a grade à moldura e que se encontram aplicados, directamente, nas extremidades da superfície pintada, também constituem um perigo eminente para a camada cromática. Com a acção do tempo e da humidade do ar estes correm o risco de sofrer processos de corrosão, que por sua vez podem originar orifícios e manchas na superfície pictórica da obra (Fig. 3). Camada de revestimento final A nível superficial observam-se algumas diferenças de brilhos, que poderão estar relacionadas com o material e com o modo manual de aplicação da camada final. Embora não se detecte uma camada rígida nem diferenças de tonalidade à superfície da pintura, realça-se o facto de o PVA tender a amarelecer com a acção do tempo. Conclusão Apesar de, aparentemente, se tratar de uma vulgar pintura sobre tela, verifica-se que nesta obra foram utilizados materiais e técnicas pouco convencionais, com a mistura de tintas acrílicas com PVA, ou a aplicação de PVA diluído em água como verniz final. Estes procedimentos artísticos, embora deliberados e intencionais por parte do autor, estão origem das alterações precoces que já se verificam na pintura, cuja existência conta com apenas 29 anos. O excesso de carga inerte verificado na camada de preparação executada pelo próprio pintor, revela uma combinação desproporcionada de carga em relação ao aglutinante, o que tem como consequência a degradação acelerada da camada cromática, que, prematuramente, já manifesta patologias como fissuras, estalados e levantamentos. desenvolvido por co-financiamento
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