Agrupamento de Escolas Virgínia Moura 2017/2018
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- Heitor Wagner
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Transcrição
1 Pedra Filosofal Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham, 1
2 que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança. António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo' (Cantado por Manuel Freire) Poema do Futuro Conscientemente escrevo e, consciente, medito o meu destino. No declive do tempo os anos correm, deslizam como a água, até que um dia um possível leitor pega num livro e lê, lê displicentemente, por mero acaso, sem saber porquê. Lê, e sorri. Sorri da construção do verso que destoa no seu diferente ouvido; sorri dos termos que o poeta usou onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo; e sorri, quase ri, do íntimo sentido, do latejar antigo daquele corpo imóvel, exhumado da vala do poema. Na História Natural dos sentimentos tudo se transformou. O amor tem outras falas, a dor outras arestas, a esperança outros disfarces, a raiva outros esgares. Estendido sobre a página, exposto e descoberto, exemplar curioso de um mundo ultrapassado, é tudo quanto fica, é tudo quanto resta de um ser que entre outros seres vagueou sobre a Terra. António Gedeão, in 'Poemas Póstumos' 2
3 Fala do Homem Nascido (Chega à boca da cena, e diz:) Venho da terra assombrada, do ventre de minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém. Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci. Trago boca para comer e olhos para desejar. Com licença, quero passar, tenho pressa de viver. Com licença! Com licença! Que a vida é água a correr. Venho do fundo do tempo; não tenho tempo a perder. Minha barca aparelhada solta o pano rumo ao norte; meu desejo é passaporte para a fronteira fechada. Não há ventos que não prestem nem marés que não convenham, nem forças que me molestem, correntes que me detenham. Quero eu e a Natureza, que a Natureza sou eu, e as forças da Natureza nunca ninguém as venceu. Com licença! Com licença! Que a barca se fez ao mar. Não há poder que me vença. Mesmo morto hei-de passar. Com licença! Com licença! Com rumo à estrela polar. António Gedeão, in 'Teatro do Mundo' 3
4 Poema para Galileo Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano, aquele teu retrato que toda a gente conhece, em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce sobre um modesto cabeção de pano. Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença. (Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício. Disse Galeria dos Ofícios.) Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença. Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria Eu sei Eu sei As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia. Ai que saudade, Galileo Galilei! Olha. Sabes? Lá em Florença está guardado um dedo da tua mão direita num relicário. Palavra de honra que está! As voltas que o mundo dá! Se calhar até há gente que pensa que entraste no calendário. Eu queria agradecer-te, Galileo, a inteligência das coisas que me deste. Eu, e quantos milhões de homens como eu a quem tu esclareceste, ia jurar que disparate, Galileo! e jurava a pés juntos e apostava a cabeça sem a menor hesitação que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são. Pois não é evidente, Galileo? Quem acredita que um penedo caia com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia? Esta era a inteligência que Deus nos deu. Estava agora a lembrar-me, Galileo, daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente. Estavam todos a ralhar contigo, que parecia impossível que um homem da tua idade e da tua condição, se tivesse tornado num perigo para a Humanidade 4
5 e para a Civilização. Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios, e percorrias, cheio de piedade, os rostos impenetráveis daquela fila de sábios. Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas, desceram lá das suas alturas e poisaram, como aves aturdidas parece-me que estou a vê-las, nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas. E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal. E juraste que nunca mais repetirias nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma, aquelas abomináveis heresias que ensinavas e escrevias para eterna perdição da tua alma. Ai Galileo! Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo, que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços, andavam a correr e a rolar pelos espaços à razão de trinta quilómetros por segundo. Tu é que sabias, Galileo Galilei. Por isso eram teus olhos misericordiosos, por isso era teu coração cheio de piedade, piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos a quem Deus dispensou de buscar a verdade. Por isso estoicamente, mansamente, resististe a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas, foram caindo, caindo, caindo, caindo, caindo sempre, e sempre, ininterruptamente, na razão directa do quadrado dos tempos. António Gedeão, in 'Linhas de Força' 5
6 Lição sobre a água Este líquido é água. Quando pura é inodora, insípida e incolor. Reduzida a vapor, sob tensão e a alta temperatura, move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de vapor. É um bom dissolvente. Embora com excepções mas de um modo geral, dissolve tudo bem, bases e sais. Congela a zero graus centesimais e ferve a 100, quando à pressão normal. Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão, sob um luar gomoso e branco de camélia, apareceu a boiar o cadáver de Ofélia com um nenúfar na mão. António Gedeão Homem Inútil definir este animal aflito. Nem palavras, nem cinzéis, nem acordes, nem pincéis são gargantas deste grito. Universo em expansão. Pincelada de zarcão desde mais infinito a menos infinito. António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo' 6
7 Amor sem tréguas É necessário amar, qualquer coisa, ou alguém; o que interessa é gostar não importa de quem. Não importa de quem, nem importa de quê; o que interessa é amar mesmo o que não de vê. Pode ser uma mulher, uma pedra, uma flor, uma coisa qualquer, seja lá do que for. Pode até nem ser nada que em ser se concretize, coisa apenas pensada, que a sonhar se precise. Amar por claridade, sem dever a cumprir; uma oportunidade para olhar e sorrir. António Gedeão Eu, quando choro. não choro eu. Chora aquilo que nos homens em todo tempo sofreu. As lágrimas são as minhas mas o choro não é meu. António Gedeão 7
8 Lágrima de preta Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio. António Gedeão (cantada por Manuel Freire) 8
9 Máquina do mundo O universo é feito essencialmente de coisa nenhuma. Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. Espaço vazio, em suma. O resto, é a matéria. Daí, que este arrepio, este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo, esta fresta de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo. António Gedeão Recolhi as tuas lágrimas na palma da minha mão, e mal que se evaporaram todas as aves cantaram e em bandos esvoaçaram em tomo da minha mão. Em jogos de luz e cor tuas lágrimas deixaram os cristais do teu amor, faces talhadas em dor na palma da minha mão. António Gedeão 9
10 Calçada de Carriche Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas não dá por nada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu-lhe a mamada; 10
11 bebeu a sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada, salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga; toca a sineta 11
12 na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Poesias Completas ( ) 12
13 Poema da Memória Havia no meu tempo um rio chamado Tejo que se estendia ao Sol na linha do horizonte. Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia exactamente um espelho porque, do que sabia, só um espelho com isso se parecia. De joelhos no banco, o busto inteiriçado, só tinha olhos para o rio distante, os olhos do animal embalsamado mas vivo na vítrea fixidez dos olhos penetrantes. Diria o rio que havia no seu tempo um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte, onde dois grandes olhos, grandes e ávidos, fixos e pasmados, o fitavam sem tréguas nem cansaço. Eram dois olhos grandes, olhos de bicho atento que espera apenas por amor de esperar. E por que não galgar sobre os telhados, os telhados vermelhos das casas baixas com varandas verdes e nas varandas verdes, sardinheiras? Ai se fosse o da história que voava com asas grandes, grandes, flutuantes, e poisava onde bem lhe apetecia, e espreitava pelos vidros das janelas das casas baixas com varandas verdes! Ai que bom seria! Espreitar não, que é feio, mas ir até ao longe e tocar nele, e nele ver os seus olhos repetidos, grandes e húmidos, vorazes e inocentes. Como seria bom! Descaem-se-me as pálpebras e, com isso, (tão simples isso) não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada. António Gedeão, in 'Poemas Póstumos' 13
14 Soneto Não pode Amor por mais que as falas mude exprimir quanto pesa ou quanto mede. Se acaso a comoção falar concede é tão mesquinho o tom que o desilude. Busca no rosto a cor que mais o ajude, magoado parecer aos olhos pede, pois quando a fala a tudo o mais excede não pode ser Amor com tal virtude. Também eu das palavras me arreceio, também sofro do mal sem saber onde busque a expressão maior do meu anseio. E acaso perde, o Amor que a fala esconde, em verdade, em beleza, em doce enleio? Olha bem os meus olhos, e responde. António Gedeão, in Poesias Completas 14
15 Poema da Auto-estrada Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, Vermelho de alizarina, modelando a coxa fina de impaciente nervura. Como guache lustroso, amarelo de indantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta. Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa, e bem segura. Como um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, 15
16 bramir de rinoceronte, enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, o céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta lembra um demónio com asas. Na confusão dos sentidos já nem percebe, Leonor, se o que lhe chega aos ouvidos são ecos de amor perdidos se os rugidos do motor. Fuge, fuge, Leonoreta. Vai na brasa, de lambreta. António Gedeão, in 'Máquina de Fogo' 16
17 Estrela da Manhã "Numa qualquer manhã, um qualquer ser, vindo de qualquer pai, acorda e vai. Vai. Como se cumprisse um dever. Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos; nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar. E em seu impessoal desejo latejam todos os restos de quantos desejos ficaram antes por desejar. Abre os olhos e vai. Vai descobrir as velas dos moinhos e as rodas que os eixos movem, o tear que tece o linho, a espuma roxa dos vinhos, incêncio na face jovem. Cego, vê, de olhos abertos. Sozinho, a multidão vai com ele. Bagas de instintos despertos ressuma-lhe à flor da pele. Vai, belo monstro. Arranca as florestas com os teus dentes. Imprime na areia branca teus voluntariosos pés incandescentes. Vai Segue o teu meridiano, esse, o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais; o plano de barro que nunca endurece, onde a memória da espécie grava os sonos imortais. Vai 17
18 Lábios húmidos do amor da manhã, polpas de cereja. Desdobra-te e beija em ti mesmo a carne sã. Vai À tua cega passagem a convulsão da folhagem diz aos ecos «tem que ser». O mar que rola e se agita, toda a música infinita, tudo grita «tem que ser». Cerra os dentes, alma aflita. Tudo grita «Tem que ser»." António Gedeão, in Movimento Perpétuo 18
19 Impressão Digital "Os meus olhos são uns olhos, e é com esses olhos uns que eu vejo no mundo escolhos, onde outros, com outros olhos, não vêem escolhos nenhuns. Quem diz escolhos, diz flores! De tudo o mesmo se diz! Onde uns vêem luto e dores, uns outros descobrem cores do mais formoso matiz. Pelas ruas e estradas onde passa tanta gente, uns vêem pedras pisadas, mas outros gnomos e fadas num halo resplandecente!! Inútil seguir vizinhos, querer ser depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos! Onde Sancho vê moinhos, D.Quixote vê gigantes. Vê moinhos? São moinhos! Vê gigantes? São gigantes!" António Gedeão, in Movimento Perpétuo 19
20 Poema de me chamar António "Hoje, ao nascer do sol, de manhãzinha, ouvi cantar um galo no quintal quando eu tinha seis anos e fui passar as férias do Natal com a minha madrinha. Na cama improvisada no corredor sabiamente fingia que dormia muito embrulhado num cobertor, enquanto numa luz melada e quase fria, o mundo, sabiamente, fingia que nascia. E então apeteceu-me também nascer, nascer por mim, por minha expressa vontade, sem pai nem mãe, sem preparação de amor, sem beijos nem carícias de ninguém, só, só e só por minha livre vontade. Dobrado em círculo no ventre do meu cobertor, enrugado como um feto à espera da liberdade (viva a liberdade!) cerrava e descerrava as pálpebras, sabiamente, como se as não movesse, como se não sentisse nem soubesse, abrindo-as numa fenda dissimulada e estreita, insensível às coisas quotidianas, mas hábil para aquela alvorada puríssima e escorreita que me inundava o sangue através das pestanas. Fremiam-se-me as pálpebras sacudindo na luz um pó de borboletas, um explodir de missangas furta-cores, bacilos e vapores, rendas brancas e pretas. Cada vez mais feto, mais redondo, mais bicho-de-conta, mais balão, mais planeta, bola pronta a meter-se no forno, mais eterno retorno, mais sem fim nem princípio, sem ponta nem aresta, excremento de escaravelho aberto numa fresta. Foi então que o tal galo cantou. Looooooonge... Muito looooooonge... no quintal da vizinha, lá para o fim do mundo mesmo ao lado da casa da minha madrinha. Era uma voz redonda, débil, inexperiente, bruxuleante como a chama que está mesmo a apagar-se e esperta de repente 20
21 e novamente morre e de novo se inflama. Uma voz sub-reptícia, anódina, irresponsável, fugaz e insinuante, um canto sem contornos, aéreo, imponderável. Tudo isso e muito mais, mas principalmente distante. Foi assim que a voz do galo na capoeira do quintal da vizinha que tinha plantado ao centro uma nespereira mesmo junto da casa da minha madrinha, penetrou no ventre macio do meu cobertor. Era uma frente de onda, compacta e envolvente, pura já na garganta e agora mais que pura, filtrada e destilada nos poros ávidos da minha cobertura. Chegou e fulminou o meu ser indigente, exposto e carecido, naquele gesto mole e distraído do Deus omnipotente da Capela Sistina quando ergue a mão terrível e fulmina o coração de Adão. E pronto. Eis-me nascido. Cheio de sede e fome. António é o meu nome." António Gedeão, in Linhas de Fogo 21
22 Poema do Coração "Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração, e também a Bondade, e a Sinceridade, e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração Então poderia dizer-vos: "Meus amados irmãos, falo-vos do coração", ou então: "com o coração nas mãos". Mas o meu coração é como o dos compêndios Tem duas válvulas (a tricúspide e a mitral) e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos). O sangue a circular contrai-os e distende-os segundo a obrigação das leis dos movimentos. Por vezes acontece ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados e uma lâmina baça e agreste, que endurece a luz nos olhos em bisel cortados. Parece então que o coração estremece. Mas não. Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático, que esse vento que sopra e ateia os incêndios, é coisa do simpático. Vem tudo nos compêndios. Então meninos! Vamos à lição! Em quantas partes se divide o coração?" António Gedeão 22
23 Poema do Homem Só "Sós, irremediavelmente sós, como um astro perdido que arrefece. Todos passam por nós e ninguém nos conhece. Os que passam e os que ficam. Todos se desconhecem. Os astros nada explicam: Arrefecem Nesta envolvente solidão compacta, quer se grite ou não se grite, nenhum dar-se de outro se refracta, nenhum ser nós se transmite. Quem sente o meu sentimento sou eu só, e mais ninguém. Quem sofre o meu sofrimento sou eu só, e mais ninguém. Quem estremece este meu estremecimento sou eu só, e mais ninguém. Dão-se os lábios, dão-se os braços dão-se os olhos, dão-se os dedos, bocetas de mil segredos dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, e dão-se os dias, dão-se aflitivas esmolas, abrem-se e dão-se as corolas breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, como uma braçada rota dá-se tudo e nada fica. Mas este íntimo secreto que no silêncio concreto, este oferecer-se de dentro num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce, virgem de mal e de bem, este dar-se, este entregar-se, descobrir-se, e desflorar-se, é nosso de mais ninguém." António Gedeão, in Teatro do Mundo 23
24 Tempo de poesia "Todo o tempo é de poesia Desde a névoa da manhã à névoa do outro dia. Desde a quentura do ventre à frigidez da agonia Todo o tempo é de poesia Entre bombas que deflagram. Corolas que se desdobram. Corpos que em sangue soçobram. Vidas qu'a amar se consagram. Sob a cúpula sombria das mãos que pedem vingança. Sob o arco da aliança da celeste alegoria. Todo o tempo é de poesia. Desde a arrumação ao caos à confusão da harmonia." António Gedeão, in Movimento Perpétuo 24
25 "O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma. Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. Espaço vazio, em suma. O resto, é a matéria. Daí, que este arrepio, este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo, esta fresta de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo. " António Gedeão, in Máquina de Fogo 25
26 A minha aldeia Minha aldeia é todo o mundo. Todo o mundo me pertence. Aqui me encontro e confundo com gente de todo o mundo que a todo o mundo pertence. Bate o sol na minha aldeia com várias inclinações. Angulo novo, nova ideia; outros graus, outras razões. Que os homens da minha aldeia são centenas de milhões. Os homens da minha aldeia divergem por natureza. O mesmo sonho os separa, a mesma fria certeza os afasta e desampara, rumorejante seara onde se odeia em beleza. Os homens da minha aldeia formigam raivosamente com os pés colados ao chão. Nessa prisão permanente cada qual é seu irmão. Valência de fora e dentro ligam tudo ao mesmo centro numa inquebrável cadeia. Longas raízes que imergem, todos os homens convergem no centro da minha aldeia. António Gedeão 26
27 Poema do afinal No mesmo instante em que eu, aqui e agora, Limpo o suor e fujo ao Sol ardente, Outros, outros como eu, além e agora, Estremecem de frio e em roupas se agasalham. Enquanto o Sol assoma, aqui, no horizonte, E as aves cantam e as flores em cores se exaltam, Além, no mesmo instante, o mesmo Sol se esconde, As aves emudecem e as flores cerram as pétalas. Enquanto eu me levanto e aqui começo o dia, Outros, no mesmo instante, exactamente o acabam. Eu trabalho, eles dormem; eu durmo, eles trabalham. Sempre no mesmo instante. Aqui é Primavera. Além é Verão. Mais além é Outono. Além, Inverno. E nos relógios igualmente certos, Aqui e agora, O meu marca meio-dia e o de além meia-noite. Olho o céu e contemplo as estrelas que fulgem. Busco as constelações, balbucio os seus nomes. Nasci a olhá-las, conheço-as uma a uma. São sempre as mesmas, aqui, agora e sempre. Mas além, mais além, o céu é outro, Outras são as estrelas, reunidas Noutras constelações. Eu nunca vi as deles; Eles Nunca viram as minhas. A Natureza separa-nos. E as naturezas. A cor da pele, a altura, a envergadura, As mãos, os pés, as bocas, os narizes, A maneira de olhar, o modo de sorrir, Os tiques, as manias, as línguas, as certezas. Tudo. Afinal Que haverá de comum entre nós? Um ponto, no infinito. António Gedeão António Gedeão é pseudónimo poético do grande professor e historiador da Ciência Rómulo de Carvalho, licenciado em Ciências Físico-Químicas 27
sob tensão e a alta temperatura, move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de vapor.
Lição sobre a água Este líquido é água. Quando pura é inodora, insípida e incolor. Reduzida a vapor, sob tensão e a alta temperatura, move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de
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