APLICABILIDADE DAS ALTERAÇÕES DA LEI COMPLEMENTAR 147/14 AOS SERVIÇOS SOCIAIS AUTÔNOMOS

Transcrição

1 APLICABILIDADE DAS ALTERAÇÕES DA LEI COMPLEMENTAR 147/14 AOS SERVIÇOS SOCIAIS AUTÔNOMOS Por Julieta Mendes Lopes Vareschini 1 Consoante reiteradamente se discute nesta Coluna, o regime jurídico aplicável aos Serviços Sociais Autônomos desperta controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. Recentemente, vários julgados têm colocado em pauta a questão pertinente à aplicabilidade, ou não, da legislação federal a estas entidades, sendo salutar destacar que o Supremo Tribunal Federal em Medida Cautelar no Mandado de Segurança /DF determinou a suspensão dos efeitos de Acórdãos do TCU que vinculavam o Sistema S à aplicação subsidiária da Lei 8.666/93. Fato é que aludida discussão está longe de chegar ao fim. Dentro deste contexto, tema que desperta controvérsia é pertinente à aplicabilidade das alterações promovidas pela Lei Complementar 147/14, mormente em relação ao disciplinado nos arts. 47 a 49 da Lei Complementar 123/06. Com efeito, visando reforçar ainda mais a necessidade de se conferir o tratamento diferenciado e favorecido às micro e pequenas empresas nas licitações públicas, foi editada a Lei Complementar nº 147, de 07 de agosto de 2014, que alterou uma série de diplomas normativos, dentre eles, a própria LC nº 123/2006. Dentre as alterações promovidas pela LC nº 147/2014 no âmbito das licitações e contratos, destaca-se a necessidade de o ente licitante estabelecer em edital a possibilidade de os particulares devidamente qualificados como microempresas e empresas de pequeno porte participarem de suas licitações com alguma restrição fiscal, concedendo-lhes, posteriormente, o prazo de 05 (cinco) dias úteis, prorrogável por igual período, para regularizarem sua situação caso venham a ser declarados vencedores do certame licitatório (art. 1 Sócia Fundadora do Grupo JML Consultoria & Eventos, empresa especializada em Direito Administrativo e que já capacitou mais de profissionais na área de Licitações e Contratos. Mestre em Direito. Especialista em Direito Ambiental e Gestão Ambiental. Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Advogada e Consultora na área do Direito Administrativo, com ênfase em Licitações e Contratos Administrativos. Coordenadora técnica da JML Consultoria. Coordenadora e Professora do Curso de Especialização em Licitações e Contratos da UNIBRASIL. Professora do curso de Graduação em Direito da UNIBRASIL. Palestrante na área de Licitações e Contratos perante entidades da Administração Pública e Sistema S, com atuação em todo território nacional. Autora da obra Licitações e Contratos no Sistema S. 5. ed. Curitiba: JML, 2012 e da obra Discricionariedade Administrativa: uma releitura a partir da constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Organizadora da obra Repercussões da Lei Complementar 123/06 nas Licitações Públicas: de acordo com o Decreto 6.204/07. Curitiba: JML Editora, Autora de diversos artigos jurídicos, dentre os quais: Gestão Planejada do Sistema de Registro de Preços. In: Diálogos de Gestão: novos ângulos e várias perspectivas. Curitiba: JML Editora,

2 43, 1º, da LC nº 123/2006) 2 ; bem como a concessão do tratamento diferenciado e favorecido às ME e EPP objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica através da implementação das medidas objetivamente descritas no art. 48 da LC nº 123/2006 (arts. 47 e 48). Cumpre citar o disciplinado nos arts. 48 e 49, da Lei Complementar 123/06, com a alteração dada pela Lei Complementar 147/14: Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública: (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) I - deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ ,00 (oitenta mil reais); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) II - poderá, em relação aos processos licitatórios destinados à aquisição de obras e serviços, exigir dos licitantes a subcontratação de microempresa ou empresa de pequeno porte (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) III - deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) 1 o (Revogado). (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) 2 o Na hipótese do inciso II do caput deste artigo, os empenhos e pagamentos do órgão ou entidade da administração pública poderão ser destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas. 3 o Os benefícios referidos no caput deste artigo poderão, justificadamente, estabelecer a prioridade de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte sediadas local ou regionalmente, até o limite de 10% (dez por cento) do melhor preço válido. (Incluído pela Lei Complementar nº 147, de 2014) Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando: I - (Revogado); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) II - não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório; III - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado; IV - a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48. (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) Além disso, a LC nº 123/2006 já assegurava o direito de preferência de contratação para as micro e pequenas empresas em caso de empate, entendido este como aquelas situações em que as propostas apresentadas por tais categorias empresariais sejam iguais ou até 10% ou 5% (no caso da 2 Anteriormente o prazo era de 02 (dois) dias úteis, prorrogáveis por igual período. 2

3 modalidade pregão) superiores à proposta melhor classificada, caso esta tenha sido apresentada por uma média ou grande empresa (arts. 44 e 45). Conforme posição já externada em nossa obra Licitações e Contratos no Sistema S, os benefícios previstos na LC nº 123/2006, alterada pela LC nº 147/2014, como regra geral, devem ser aplicados também às licitações realizadas pelas Entidades componentes do Sistema S, ainda que os seus Regulamentos sejam omissos quanto ao tema. Isso porque, o tratamento diferenciado e favorecido destinado às micro e pequenas empresas é princípio geral orientador da ordem econômica e encontra-se objetivamente delineado nos arts. 170, inc. IX e 179, ambos da Constituição Federal de 1988, que, visando incentivá-las, prevê a simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias. Em decorrência disso, é preciso reconhecer que as licitações públicas, atualmente, não visam apenas o mero aprovisionamento de bens ou serviços necessários à satisfação das necessidades dos Serviços Sociais Autônomos pelo menor preço possível. Além disso, o processo de contratação deve ser visto como um instrumento de intervenção que busca produzir resultados mais amplos, promovendo a realização desse valor assegurado pela Constituição Federal. Nesse sentido, inclusive, já se manifestou o Tribunal de Contas da União, conforme se observa do teor do seguinte julgado: Nada obstante a existência do preceito constitucional da realização de licitação para as contratações públicas com o objetivo de melhor atendimento ao interesse público, assegurado o tratamento isonômico entre os participantes, não há que se olvidar que é também princípio constitucional o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte (CF/88, arts. 170, IX e 179), com o justo intuito de alçar à condição de iguais sujeitos desiguais. Creio que esses princípios não se antagonizam, ao contrário. Formam um todo harmônico em busca, justamente, da almejada isonomia, da igualdade. Penso, ainda, não ter sido outro o espírito com que o legislador ordinário promulgou a LC 123/2006, estabelecendo as normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e o Executivo baixou o Decreto 6204/2007, regulamentando o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado a ser aplicado aos entes em questão nas contratações públicas no âmbito da Administração Federal. Além do mais, como bem assentou o representante do parquet, o atendimento ao interesse público visado pelo instituto da licitação, lato sensu, compreende não só a melhor proposta financeira, mas também fomentar a ampliação da oferta de bens e serviços, inibindo a formação de estruturas anômalas de mercado. 3 (grifou-se) Em que pese a questão em análise não ser pacífica, existindo posicionamentos doutrinários diversos que defendem a não aplicabilidade da 3 TCU. Acórdão nº 1.231/2008 Plenário. 3

4 LC nº 123/2006 aos Serviços Sociais Autônomos 4, a rigor, qualquer órgão ou entidade sujeito ao dever de licitar deve se submeter aos ditames da referida Lei, a fim de garantir a ampla efetividade dos princípios constitucionais da ordem econômica que estabelecem o tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas. Essa é a posição defendida pela Controladoria-Geral da União, em sua Cartilha de Entendimentos do Controle Interno Federal sobre a Gestão dos recursos das Entidades do Sistema S : 41. As disposições da Lei nº 123/2006 (Lei das Microempresas) é aplicável nas contratações de bens e serviços das entidades do Sistema S? Sim. Até a adaptação dos regulamentos das entidades do Sistema S, cabe adotar as regras previstas no capítulo V da Lei Complementar nº 123/2006, visando a satisfação do interesse público e o alcance dos objetivos específicos reservados a micro e pequenas empresas. 5 Na mesma linha, vale mencionar que a própria Lei Complementar nº 147/2014, ao alterar a redação do art. 47 da Lei Complementar nº 123/2006, é clara nesse sentido ao estabelecer a necessidade de se aplicar as regras constantes no Estatuto para a concessão do tratamento diferenciado e simplificado às microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas enquanto não sobrevier legislação e/ou regulamentação específica no âmbito do ente licitante. Nesse sentido, destaca-se o teor do parágrafo único do art. 47 da Lei Complementar nº 123/2006, alterado pela LC nº 147/2014: Art. 47. Nas contratações públicas da administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal, deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte 4 É o caso, por exemplo, de Edgar Guimarães e Jair Eduardo Santana que objetivamente estabelecem: A LC n 123/06 consigna de forma clara a sua abrangência ao fixar as normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às MEs/EPPs no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Não estão incluídos nesse rol os entes que compõem o Sistema S, pois, como dito anteriormente, mencionadas entidades não integram a estrutura organizacional da Administração Pública brasileira. Inexiste, portanto, qualquer comando normativo expresso que, de forma compulsória, obrigue o Sistema S a respeitar, por ocasião das suas licitações instauradas com recursos próprios, o regime jurídico favorecido a que se referem os artigos 42 a 45 e 47 a 49 da LC n 123/06. GUIMARÃES, Edgar; SANTANA, Jair Eduardo. Licitações e o novo estatuto da pequena e microempresa. Reflexos práticos da LC nº 123/ ed. Belo Horizonte: Fórum, p Disponível em: < SistemaS_rev2013.pdf>. 4

5 objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica. Parágrafo único. No que diz respeito às compras públicas, enquanto não sobrevier legislação estadual, municipal ou regulamento específico de cada órgão mais favorável à microempresa e empresa de pequeno porte, aplica-se a legislação federal. (grifou-se) Ainda que se possa questionar o fato de o dispositivo legal em apreço não fazer menção expressa aos Serviços Sociais Autônomos, é preciso destacar, uma vez mais, que o tratamento diferenciado e favorecido às micro e pequenas empresas é um direito de tais categorias empresariais que decorre diretamente da Constituição Federal de Da mesma forma, é importante destacar que as Entidades do Sistema S, mesmo sendo pessoas jurídicas de direito privado, gerem recursos oriundos de contribuições parafiscais e desempenham atividades de natureza pública no interesse das categorias profissionais que representam, razão pela qual, se submetem aos princípios gerais que regem as atividades administrativas 6, previstos objetivamente no art. 37, caput, da Constituição Federal de Dessa forma, entende-se que as alterações promovidas pela LC nº 147/2014 no Estatuto das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (LC nº 123/2006), que estabelece normas gerais aplicáveis irrestritamente a todos os órgãos e entidades sujeitos ao dever de licitar, são plenamente aplicáveis ao Sistema S, não se admitindo, assim, que tais Entidades deixem de observar as suas disposições legais quando da realização de suas licitações. Além disso, a própria Lei nº 8.666/93, que estabelece normas gerais sobre licitações e contratos e se aplica subsidiariamente às Entidades do Sistema S, também alterada pela LC nº 147/2014, passou a prever expressamente a necessidade de as licitações e contratos privilegiarem o tratamento diferenciado e favorecido destinado às microempresas e empresas de pequeno porte: Art. 5º-A. As normas de licitações e contratos devem privilegiar o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei. Portanto, mesmo que o Regulamento de Licitações e Contratos seja omisso quanto às alterações promovidas pela Lei Complementar nº 147/2014, a rigor, entende-se devida a aplicação de suas disposições legais em toda e qualquer licitação realizada pelo Sistema S, a fim de garantir, de forma ampla e 6 O próprio Tribunal de Contas da União já determinou que: Os serviços sociais autônomos não estão sujeitos à observância dos estritos procedimentos das normas gerais de licitações e contratos, e sim aos seus regulamentos próprios, pautados nos princípios gerais aplicáveis à Administração Pública. (grifou-se) (TCU. Decisão nº 907/1997 Plenário). 5

6 concreta, o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte. 6