Capa Relato de um sobrevivente Testemunha ocular do terremoto que devastou o Haiti, o capitão Leonardo Xavier Zanini narra como foi o dia em que a terra tremeu no Caribe, fala das perdas de 10 companheiros e da difícil missão de reconstruir Porto Príncipe Texto: Nayara Menezes Fotos: Arquivo pessoal/ Ernesto Carriço/Agência O Dia/ AE Envie seu comentário Foto tirada do capitão Zanini antes do terremoto devastar o Haiti Era um final de tarde como outro qualquer. O capitão Leonardo Zanini, 36 anos, fazia reconhecimento de área juntamente com aquele que seria seu substituto no posto de comandante de companhia de fuzileiros da Força de Paz, capitão Herbert. Ele apresentava ao colega o território que passaria a ser sua responsabilidade nos próximos dias. A bordo de uma viatura do Exército, os dois se dirigiam a órgãos da Minustah (Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti). O procedimento de rotina seguia sua normalidade quando foi bruscamente interrompido. O carro começou a tremer. Achei que tinha estourado o pneu. A viatura ficou instável, trepidava de um lado para o outro. Ao pararem o carro para verificar o que havia de errado, notaram que algo de muito estranho acontecia. Estávamos em frente ao aeroporto, e vimos que o muro parecia uma folha de papel, fazia um movimento de leque. Nesta hora, tive a certeza de que estávamos sendo vítimas de um grande terremoto, recorda-se o capitão.
A constatação foi o início do drama que estava por vir. Em questão de minutos, os dois militares tornaram-se testemunhas daquele que em poucos dias seria considerado pela ONU o pior desastre natural da história da humanidade. Até o fechamento desta edição, as estimativas davam conta de pelo menos 200 mil mortos pelos abalos que atingiu a capital Porto Príncipe no dia 12 de janeiro. Cerca de 1,5 milhão de haitianos estão desabrigados e vivem de forma precária em alojamentos improvisados. A ONU já informou que 75% da cidade terá de ser reconstruída. O que deve levar dezenas de anos, segundo os porta-vozes da entidade. O contingente de militares brasileiros era o maior e exercia a função mais importante por ali. Desde 2004, o Exército brasileiro trabalhava para restituir a ordem no país denominado como o mais pobre das Américas. O capitão Zanini estava ali há sete meses. Participar como comandante dos fuzileiros da força de paz era a realização de um sonho e importante passo na carreira. Ele se alistou voluntariamente para fazer parte da Missão da Paz no Haiti. A aprovação foi uma conquista, lembra a esposa Graziela da Costa Silva Zanini. O início foi assustador. O país vivia sérios problemas sociais e econômicos, haja vista a inexistência de oferta de trabalho. A atividade informal de ambulantes predominava nas ruas da capital. Uma pequena parcela da população trabalhava na indústria alimentícia, em órgãos públicos e na Minustah. A esmagadora maioria sobrevivia em estado de penúria profunda, alimentando-se de biscoito de barro e de restos de lixo, diz o militar. Lixo e esgoto a céu aberto eram parte do cenário das ruas de Porto Príncipe O trabalho também não era fácil. A jornada ininterrupta de segunda a segunda, salvo algumas dispensas, compunha a rotina pesada para os militares. Eles faziam patrulha motorizada e a pé durante 24h por dia, escoltas de comboio e autoridades, participavam de ajudas humanitárias e eram responsáveis pela segurança de instalações. Tudo isso sob um sol escaldante de 40 graus em áreas totalmente degradadas pelo lixo e esgoto a céu aberto, revela Zanini. Apesar do ambiente áspero e desanimador, o capitão jamais pensou em desistir. Estava certo de que aquela era a missão mais importante de sua vida. A dedicação e paixão pelo serviço militar sempre foram motivos de orgulho para a família. Ele entrou para o Exército por vontade própria. É uma vocação bonita de se ver, comenta o tio, o empresário Lúcio Costa. Mas a admiração deu lugar
a sentimentos dolorosos naquele fatídico dia 12. Foram horas angustiantes, lembra-se a esposa Graziela. Apenas três horas após as primeiras notícias do tremor, ela foi informada de que o marido estava entre os sobreviventes. Foi um misto de alívio, mas também de preocupação. Queria falar com ele para ter a certeza de que realmente estava bem. Teve que esperar três longos dias. Quando finalmente ligou, mal conseguiu falar ao telefone. Estava muito abalado pela perda dos companheiros. Segundo a esposa, dias antes do terremoto, Leonardo estava feliz, com a sensação de dever cumprido. Ele tinha grande preocupação em trazer toda a tropa de volta em boas condições físicas e psicológicas. Não foi possível. Após o terremoto a primeira iniciativa foi se dirigir ao Ponto 22, onde havia estado com os companheiros, há menos de 15 minutos. A única coisa que passava pela minha cabeça era que tinha que retornar para o Ponto Forte 22. A caminho da sede, a primeira cena do terror. Uma senhora saiu rolando pela porta de uma casa. Do Ponto 22, a Casa Azul, militares mantinham vigilância 24 horas por dia Minustah A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti foi estabelecida em 2004 após um período de insurgência e a deposição do presidente Jean- Bertrand Aristide. O Exército brasileiro foi designado para comandar as tropas militares, desde o início Missão brasileira: Desde 2004 até dezembro de 2009: 13.323 militares já passaram pela Minustah A cada seis meses ocorre a troca de contingente. Este ano o revezamento estava marcado para ocorrer do dia 11 a 29 de janeiro. Muitos não
voltaram para a casa Além dos três brasileiros civis que morreram na tragédia, 18 militares foram mortos durante o terremoto. 10 deles estavam no Ponto 22, a famosa Casa Azul Efetivo brasileiro no momento do terremoto: 1.267 homens Após o episódio, o governo brasileiro conseguiu a aprovação para o envio de mais 1.300 militares Orçamento de 2004 até 2009: R$ 704,5 milhões foi o valor desembolsado pelo governo brasileiro Orçamento de 2010: US$ 140 milhões Fonte: Ministério da Defesa Não sobrou quase nenhuma construção de pé após os tremores Aquela era uma das muitas imagens que certamente ficarão guardadas na memória do capitão Zanini e de todos aqueles que estiveram presentes na capital haitiana no dia 12 de janeiro de 2010. Casas, prédios e várias construções ficaram em ruínas. As ruas já não existiam mais. Uma nuvem de poeira encobriu a multidão desesperada, incrédula com aquilo que acabara de acontecer. Pessoas gritavam de um lado para o outro sem saber para onde ir. Não havia sentido ou direção a seguir. Acontecia um descontrole da população em busca de socorro. Muitos levavam feridos para serem cuidados no Hospital Argentino. As condições para o atendimento às vítimas eram precárias em meio à desordem total. A cidade virou o que podemos chamar, no sentido literal, de caos, define Leonardo. Ao finalmente chegar ao Ponto 22, cenário desolador se descortinou. A Casa Azul, nome dado ao edifício pelos habitantes, símbolo de segurança e remodelação do país, havia desabado. Junto com ela, toda a esperança do povo haitiano que acompanhava a reestruturação do país pelos soldados brasileiros. Antes da chegada das tropas, o prédio, que era um dos mais altos da região, servia de base para gangues que tentavam atrapalhar o trabalho da Minustah. A tomada da Casa Azul, há dois anos, foi um importante marco para a missão brasileira. Tragicamente ali onde estavam 10 dos 18 militares brasileiros que morreram no episódio. O capitão fala com tristeza sobre as baixas sofridas. Mais do que subordinados, eram amigos. Convivíamos juntos desde o início da preparação. Além do meu
trato diário como comandante, tinha uma parte afetiva muito forte com todos. Entre eles, um amigo especial: o capitão Bruno Ribeiro Mário. Faltavam apenas quatro dias para Bruno embarcar de volta ao Brasil. Não deu tempo. Tinha um contato muito próximo com ele. Era tenente e foi promovido a capitão como justa homenagem do Brasil à sua dedicação como soldado da paz, conta ao lamentar a perda do amigo. Sobreviventes no Haiti se impressionam com a destruição Surpreendentemente não são apenas tristezas e decepções que compõem o cenário de uma tragédia. Por mais inacreditável que possa parecer, a alegria também é um sentimento possível. O resgate do soldado Marinho foi uma dessas boas surpresas para o capitão Zanini. Foi a maior vitória que passei, junto com outros militares, ao conseguir retirá-lo dos escombros vivo, com poucos ferimentos. Passado o choque inicial, e, não obstante às perdas e ao duro golpe em ver o trabalho realizado cair por terra, o capitão tira lições do ocorrido. O povo haitiano possui uma força interior impressionante para vencer as dificuldades. A- pós o terremoto, pude perceber a vida retomando ao que era, mesmo com o cenário totalmente devastado. Um exemplo de superação para todos nós, define. Ao retornar ao Brasil no último dia 29, Leonardo trouxe junto com a bagagem muitos planos. Pretende visitar as famílias dos 10 amigos que perdeu no Haiti. Quer se dedicar ao estudo de idiomas e deve ingressar na Brigada de Infantaria paraquedista, para onde foi transferido, no final do ano passado. A ideia de voltar
ao Haiti e participar da reconstrução do país, porém, não é descartada. Acredito que esta seja a missão mais importante do Exército brasileiro na atualidade. Aprendi que não existem fronteiras para ajudar o próximo e fazer o bem. A vida se torna grande à medida que você ajuda as pessoas menos favorecidas. Hoje, após a experiência, sou um homem muito mais simples e humilde, por acreditar que desta forma, posso estar mais perto de Deus. DIÁRIO DA TRAGÉDIA 6h No dia do terremoto me levantei às 6 horas, tomei meu café acompanhado do oficial substituto 7h Após o café realizei uma corrida dentro da base, cerca de 4 km, depois tomei banho e me arrumei para participar da reunião diária do comandante do batalhão. No encontro foram passadas diretrizes sobre o embarque da tropa que iria realizar o rodízio 9h Retornei da reunião para meu posto de comando, e despachei a documentação pessoal dos militares que iriam embarcar no final do dia 12 de janeiro 10h Logo após terminar de assinar os papéis realizei a despedida de um pelotão da companhia dirigindo algumas palavras de reconhecimento pelos excelentes serviços prestados, e materializando a cerimônia foram agraciados 28 militares com o distintivo da Missão de Paz no Haiti 12h30 Terminada a formatura segui para o almoço junto com o subcomandante capitão Renan 14h Após o almoço, me desloquei até a minha área de responsabilidade, juntamente com meu substituto, capitão Herbert. Nesta região percorri os pontos mais importantes 17h40 O último foi o Ponto Forte 22 (Casa Azul). Neste local conversei com o tenente Bruno Mário (uma das vítimas do terremoto) e cumprimentei alguns militares. Depois embarquei na minha viatura e continuamos a percorrer a área 17h53 Aproximadamente 15 minutos depois ocorreu o primeiro tremor, que foi o de maior intensidade. Retornei para o Ponto Forte 22 e lá fiquei até retirar o último homem