De Solar da Marquesa de Santos a Museu do Primeiro Reinado*

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CAPITULO 13 De Solar da Marquesa de Santos a Museu do Primeiro Reinado* Marieta de Moraes Ferreira"' Nayara Galena da Vale*** I proposta que norteia o Projeto Pronex Direitos e Cidadania é analisar algumas A intervenções urbanas que tiveram lugar no Rio de Janeiro, aqui entendidas como ações que articuiaram o uso de memórias da cidade e seu patrimônio cultural, visando influenciar na sedimentação de determinadas identidades políticas. Especificamente, nosso propósito neste capítulo é, à luz da trajetória do Museu do Primeiro Reinado, destacar a existência de estratégias de reinvenção e reelaboração de memórias sobre o território carioca. O edifício que hoje abriga o Museu do Primeiro Reinado foi construído no início do século XIX para servir de residência à marquesa de Santos, amante de d. Pedro I, vindo a ter diferentes usos ao longo dos anos. Em 1961, pouco menos de um ano após a criação do estado da Guanabara, O prédio foi desapropriado com a finalidade de abrigar o projeto de criação do museu. Lançar o Museu do Primeiro Reinado, naquele momento, fazia parte de uma estratégia política ampla de revitalização do território carioca, levada a efeito pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-65), com vistas a reatualizar o status da região como capital cultural do país. Contudo, o projeto não chegaria a se concretizar. Conjuntura igualmente importante de reelaboração das memórias políticas brasileiras e definíção do lugar da cidade do Rio de Janeiro nessas representações foram as comemorações dos 150 anos da Independência do Brasil,... Este trabalho contou com a colaboração da bolsista de iniciação científica Amanda Gouveia.... Doutora em história do Brasil pela UFF. Professora do Departamento de História da UFRJ e pesquisadora do Cpdoc/FCV. It,.,. Graduanda em história pela UFRJ e bolsista de iniciação científica no Cpdoc/FGV.

296 DIREITOS E CIDADANIA em 1972. O projeto de criação do Museu do Primeiro Reinado novamente voltaria à cena, dessa vez com o objetivo de homenagear o nosso primeiro imperador e, ao mesmo tempo, destacar a forte ligação entre a cidade do Rio/ estado da Guanabara e essa memória da nação. Em 1975, pela terceira vez a idéia de edificar o Museu do Primeiro Reinado ganharia densidade. O marco histórico era a fusão entre a Guanabara e o antigo estado do Rio de Janeiro, quando estava em jogo redefinir a identidade e a memória do novo estado que nascia. Este capítulo procura demonstrar que os projetos museológicos encerram estratégias de construção de memórias e redefinição de identidades, e que tais estratégias articulam disputas políticas e usos do passado. A criação do estado da Guanabara e a política cultural de Lacerda: reinventando a memória do Rio Com a mudança da capital federal para Brasília, em 21 de abril de 1960, a cidade do Rio de Janeiro passa a constituir o estado da Guanabara, uma cidade-estado, a única no Brasil. Esse evento marcante, é preciso lembrar, trouxe conseqüências significativas para a história da cidade carioca, uma vez que o recém-criado estado possuía uma trajetória muito particular. Capital do Brasil Colônia desde 1763, sede da Corte portuguesa desde 1808, do governo imperial desde 1822 e capital da República a partir de 1889, durante muito tempo o Rio foi o principal palco e a caixa de ressonância dos empreendimentos culturais, científicos e políticos do país. Em decorrência disso, e através da história, viria a ser identificado como "um espaço fundamentalmente nacional", no qual políticos das mais variadas procedências, "independentemente de onde anteriormente vivessem ej ou atuassem politicamente''} se destacariam como porta-vozes de questões de interesse geral da nação. Como centro do poder político nacional, o Rio era também a capital cultural brasileira, abrigando as mais importantes instituições culturais do país, como o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras. Lugar, por excelência, onde o sentimento de nação se concretizava, o Rio foi palco de muitos eventos que, longe de serem parte somente de sua história regional, integraram uma "história nacional". Em suma, o Rio de Janeiro preenchia todos os requisitos para ser uma cidade nacional, não 1 Silva, 2005:96.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO 297 identificada especificamente com qualquer das regiões do país, mas, de forma ampla, com a nação brasileira. Tal entendimento é largamente manifestado na produção historiográfica e na memória coletiva sobre a cidade.2 Pelo seu passado glorioso de capital monárquica e republicana, por nunca ter dado acolhimento a localismos ou regionalismos, nas últimas décadas consolidou-se na memória coletiva carioca uma auto-imagem da cidade do Rio como o Jacus privilegiado da formação da nacionalidade brasileira. Nessa perspectiva, para todos aqueles interessados em desempenhar um papel central no jogo político nacional, nada melhor que posicionar-se em um território concebido como a síntese da nação, cujo povo, por seu cosmopolitismo, representaria a verdadeira "vanguarda social e política do país".' Segundo Jose Honório Rodrigues (1982:15), à ocasião da Independência, a integridade territorial do Brasil encontrava-se ameaçada pelas divergências entre as capitanias que o formavam. Não havia no país um sentimento de unidade e consciência nacionais. Nesse momento, o Rio capital passaria a constituir o centro de comando da vida brasileira, sua imagem consolidandose, paulatinamente, como a de um lugar que engendrava e representava a unidade nacional. Passado maís de um século, porém, com a aprovação no Congresso da transferência da capital federal para Brasília, em outubro de 1957, abrir-se-ia um período de questionamentos a respeito de qual seria a melhor solução para o Rio de Janeiro, ao ser deslocado de seu lugar de destaque entre as demais cidades do país. O Rio se tornaria uma cidade como outra qualquer? Entre as três propostas à época intensamente debatidas na imprensa' e no Congresso, uma delas sugeria a transformação da cidade do Rio de Janeiro em território da Guanabara; outra propunha a incorporação da cidade, com o nome de Rio de Janeiro, ao já existente estado homônimo; e, por fim, a terceira 2 Ver Dias, 2003. 3 Sento-Sé, 1999:343. Para uma leihrra do Rio de Janeiro como elo nacional, ver Rodrigues (1982) e Lessa (2000). 4 Entre julho e agosto de 1958, o jornal Correio da Manhã publicou uma série de reportagens sob o título "O que será do Rio", reunindo a opinião de pessoas de diversas áreas de atuação profissional a respeito de qual seria o destino do Rio após a mudança da capital para Brasília. O Jornal do Brasil e a Tribuna da Imprensa, na mesma época, também dedicaram várias reportagens ao tema. Ver Motta, 2001.

298 DIREITOS E CIDADANIA seria a opção vitoriosa. Esta seguia a determinação da Constituição de 1946, isto é, prescrevia a transformação da cidade do Rio em estado da Guanabara. Com base na Lei San Tiago Dantas, de 14 de março de 1960, foi então criado o estado da Guanabara, com sua composição geográfica abrangendo o território da antiga capital. O primeiro governador do novo estado, José Sette Câmara Filho, nomeado pelo presidente da República, exerceu o cargo até 5 de dezembro de 1960, quando foi então substituído pelo udenista Carlos Frederico Werneck de Lacerda, o primeiro governador da Guanabara eleito por voto direto. A eleição de 1960 para o governo da Guanabara, por si só, seriam um grande acontecimento para o eleitorado carioca, que pela primeira vez elegia o seu governante através do voto direto.5 No exercício do governo, Lacerda procuraria transformar a Guanabara em um estado-capital, buscando preservar o seu papel de "vitrine da nação". Antes mesmo de sua eleição, ainda durante a campanha eleitoral, os discursos de Lacerda engendravam a imagem do Rio como uma cidade em que todos os brasileiros se sentiam em casa, uma cidade 1/ sem regionalismos". 6 Em todos os pronunciamentos do governador era perpetuada a força distintiva do Rio como capital cultural, construída ao longo de mais de 150 anos e com um importante marco inicial na transferência da Corte portuguesa para o Brasil - quando foram criadas instituições como a Real Biblioteca (núcleo da Biblioteca Nacional), o Teatro Real de São João, o Passeio Público e o Museu Real, sendo ainda abertas as primeiras livrarias da cidade.7 Na década de 1960, pois, no momento em que a cidade perdia a prerrogativa de ser a capital política do país, a preservação e revalorização do seu status de capital cultural passariam a ocupar a ordem do dia da agenda governamental. Nesse sentido, Carlos Lacerda daria início a uma série de obras, em diferentes âmbitos, visando conferir ao recém-criado estado um caráter de modernidade, ao mesmo tempo que investiria na valorização da memória local identificada ao nacional. Entre outras realizações, Lacerda promoveu a remoção de favelas, com a conseqüente criação da Vila Kennedy e da Cidade de Deus; a conclusão dos viadutos dos Marinheiros, Fuzileiros, Saint-Hilaire e Engenheiro Noronha, e do túnel Santa Bárbara; a abertura do túnel Rebouças e a construção da maior 5 Ver Motta, 2000:19. 6 Dias, 2003:204. 7 Ver Versiani, 2007:7.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO 299 parte do Aterro do Flamengo, onde foi criada a mais extensa e completa área de lazer da cidade, o Parque do Flamengo, situado junto à orla da baía de Guanabara. Na esfera da cultura, Lacerda mostrou-se especialmente interessado em revitalizar atividades que garantissem o lugar da antiga cidade do Rio de Janeiro como capital cultural. Entre as iniciativas, foram criados a Sala Cecília Meireles, o Museu da Imagem e do Som, a Fundação Vieira Fazenda (instituição destinada a administrar a memória e o patrimônio cultural do Rio), o Museu do Primeiro Reinado, o Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e o Museu do Teatro do Fantoche, sendo realizada também a aquisição do Parque Lage. A idéia que presidiu grande parte dessas iniciativas foi reaproveitar antigos edifícios ligados à história da cidade do Rio de Janeiro para dar-lhes novos usos e significados. A Sala Cecília Meireles, por exemplo, ocuparia o antigo edifício do Cine Colonial, localizado no largo da Lapa. Desapropriado pelo governo da Guanabara, o cinema foi transformado, em 1965, num grande salão de concertos e conferências, batizado como Sala Cecília Meireles em homenagem à escritora então condecorada pelo conjunto de sua obra com o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras.' Do mesmo modo, o trabalho de montagem do Museu da Imagem e do Som (MIS) foi realizado ao longo de todo o governo Lacerda, sendo escolhido para sua sede o prédio construído em 1922 para servir como pavilhão do Distrito Federal na exposição internacional comemorativa do centenário da Independência do Brasil e que, desde então, abrigou sucessivamente o Instituto Médico Legal, uma delegacia de polícia e, por último, o Serviço de Registro de Estrangeiros. O MIS nascia com a finalidade de ser um "centro de documentação audiovisual da memória carioca",9 e o prédio escolhido reunia importantes atributos para sediar o museu, não sendo simplesmente um espaço físico, e sim um espaço que "contava" algo da história da cidade do Rio de Janeiro e que fazia parte dessa história. Com igual orientação e motivação seria desapropriado por Lacerda outro edifício da antiga capital do Brasil, o Solar da Marquesa de Santos, em 3 Mais informações em: <www.centrodacidade.com.br/cultura/textos/salacm.htm> e <www.lanalapa.com.brjestabelecimentodetalhe.asp?qinuestab=15>. Acesso em: 1 fev. 2007. 9 Dias, 2003:209.

300 DIREITOS E CIDADANIA São Cristóvão, agora visando à criação do Museu do Primeiro Reinado, tendo como justificativa o fato de a construção possuir "significação histórica e valor artístico comprovados" /0 pois havia sido tombada pelo Serviço de Patrimônio Artístico e Nacional em 1938. A proposta deste artigo é analisar os significados impressos nas tentativas de transformação do Solar da Marquesa de Santos em Museu do Primeiro Reinado, bem como os conflitos de memórias que se delinearam no decorrer dessas ações, nas diferentes conjunturas, privilegiando ou silenciando elementos constitutivos das representações que compõem o imaginário político brasileiro. Reinventando o Solar da Marquesa de Santos Qual a importância do Solar da Marquesa de Santos e o significado de sua transformação em Museu do Primeiro Reinado para a reatualização das memórias e identidades cariocas? Responder a essa pergunta implica recuar no tempo, percorrer a história do edifício e, também, recuperar alguns elementos da biografia de seus moradores. A chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, representou para o Rio de Janeiro a inauguração de um tempo de grandes investimentos e renovação de sua ambiência cultural. Ao longo das primeiras décadas do século XIX, foram construídos na cidade carioca marcos espaciais de grande significância para a identificação e ligação entre o Brasil e Portngal. O Rio de Janeiro vivenciaria, naquele momento, importantes transformações, ganhando novos ares e equipamentos que o capacitariam para a função de capital e sede da Corte, graças à presença, em seu território, de espaços cruciais para a vida política, econômica e social do Reino e, posteriormente, do Império e da República. No Brasil, d. João VI estabeleceu moradia numa chácara em São Cristóvão, antes propriedade do negociante Elias Antônio Lopes, o que viria estimular uma ocupação nobre daquela área, com o surgimento de novas chácaras, algumas delas muito luxuosas. Para melhor abrigar a família real, uma série de benfeitorias teve lugar na ex-residência de Leite Lopes, a qual passou a denominar-se Palácio de São Cristóvão. 1Q Guanabara, 1961.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO 301 Em 1821, d. João VI retornaria a Portugal, deixando ao seu filho d. Pedro I a responsabilidade pela administração do vice-reinado. No ano seguinte, às vésperas da Independência, durante uma visita à cidade de Santos, em São Paulo, d. Pedro I conheceria Domitila de Castro e Canto Melo, paulista, separada e mãe de três filhos, um dos quais já falecido. Em 1823, o imperador providenciaria a mudança de Domitila para o Rio de Janeiro, logo tornando público o relacionamento entre eles.11 Em virtude de sua especial ligação com o imperador, Domitila recebeu três titulas: em 1824, baronesa de Santos; em 1825, viscondessa de Santos; e em 1826, marquesa de Santos. Além desses títulos, d. Pedro I a condecorou com a Ordem de Santa Isabel, conferida somente a mulheres então consideradas ilibadamente honestas." No ano de 1826, d. Pedro I comprou duas chácaras próximas ao Palácio de São Cristóvão,13 onde tiveram início as obras de construção do Solar da Marquesa de Santos. Os aspectos arquitetônicos e decorativos do palacete, de estilo neoclássico, foram confiados a profissionais e artistas de renome. Aplanta foi executada pelo arquiteto francês Pedro Jean Pézerat, e a construção, coordenada por Alexandre Cavroé, arquiteto do imperador. Cabe mencionar, ainda, os trabalhos em talha do frade carmelita José Antônio do Amor Divino; os afrescos de Francisco Pedro do Amaral, aluno de Debret; e as esculturas dos irmãos Marcos e Zeferino Ferrez,14 membros da missão artística francesa trazida por d. João VI ao Brasil e que contava com integrantes de grande prestígio, como o arquiteto Gradjean de Montigny.15 1 1 Para que estivessem bem próximos, d. Pedro l, em 4 de abril de 1825, nomeou Domitila a primeira dama da imperatriz Maria Leopoldina Josefa Carolina de Áustria, da casa de Habsburgo, sua esposa desde 1817. A partir de 1825, Domitila passaria a residir também no Palácio de São Cristóvão. 12 D. Pedro I e Domitila tiveram cinco filhos: um menino natimorto, em 1823; Isabel Maria de Alcântara Brasileira (duquesa de Goiás), em 1824i Pedro de Alcântara Brasileiro, em 1825 (falecido antes de completar um ano); Maria Isabel de Alcântara Brasileira, em 1827 (também falecida com meses de idade); e Maria Isabel Ir de Alcântara Brasileira, em 1830. Mais informações em: <wvvw.novomilenio.inf.brjsantosjh0095.htm>. Acesso em: 29 jan. 2007. 13 As escrituras de compra dessas chácaras datam de 8 de abril e 20 de maio de 1826. Ver Franco, 1975:17-18. 14 Ibid., p. 21-26. 15 Responsável, entre outros, pelo projeto arquitetônico da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, atual Escola de Belas-Artes da UFRJ. Ver Versiani, 2007:8.

302 DIREITOS E CIDADANIA o palacete ficou pronto no ano de 1827, tendo nele morado a marquesa de Santos por um curto período apenas. Com o rompimento definitivo de seu relacionamento com d. Pedro I, em agosto de 1829, devido ao casamento dele com Amélia de Leuchtemberg,16 Domitila viu-se obrigada a retornar a São Paulo, levando do solar todos os seus pertences. O palacete passou então ao domínio exclusivo do imperador, que o adquiriu mais uma vez através de compra. Quando d. Pedro I abdicou, em 1831, o solar ficou sob a posse de seus herdeiros, chegando a sediar o governo legitimista de sua filha, a rainha d. Maria li. Em 1847, contudo, o palácio foi comprado pelo futuro barão de Vila Nova do Minho, José Bernardino de Sá, que por sua vez o perdeu em hipoteca, em 1869, para o empresário barão de Mauá. Mauá residiu no palácio até 1882, quando o vendeu a Luís José de Sousa Breves, barão de Guararema. A propriedade permaneceu com a família dos Guararema até 1898, ano em que foi comprada pelo dr. Abel Parente - ginecologista respeitado em sua época - e transformada em maternidade. Em 1915 o palacete abrigou a legação do Uruguai, sendo novamente vendido em 1921, dessa vez à firma Hime & Cia. Partes laterais que constituíam a chácara foram adquiridas em 1922 pelo Ministério da Guerra, e entre os anos de 1929 e 1930 o prédio foi alugado para o Serviço de Febre Amarela, então sob a administração da Fundação Rockefeller. Todos os proprietários do solar realizaram obras nele, de natureza diversa. Ao ser desapropriado pelo governo da Guanabara, em 1961, o palácio ainda pertencia à Hime & Cia. O tombamento do solar Em 1938, o Solar da Marquesa de Santos foi reconhecido pelo poder público como um patrimônio de grande valor artístico, sendo o seu tombamento registrado em 30 de março de 1938, sob o nome de "Casa da Marquesa de Santos".17 Tal iniciativa era parte de um projeto mais amplo do governo Vargas (1930-45) de desenvolvimento de uma política cultural voltada para a cons- 16 A imperatriz Maria Leopoldina havia falecido em 11 de dezembro de 1826. 17 O tombamento foi realizado com base no Processo n\! ll-t-38 e Inscrição nj.lio. Consta o seu registro em certidão, datada de 22 de maio de 1986, do MEC/Secretaria de Cultura/Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

- DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO 303 trução de uma identidade nacional para o país. Assim, em 30 de novembro de 1937, através do Decreto-lei n" 25, instituído pelo então ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, foi criado o Serviço do Patrimôrúo Histórico e Artístico Nacional (Sphan), com a responsabilidade de preservar, divulgar e fiscalizar os bens culturais brasileiros, bem como assegurar a permanência e usufruto desses bens para a atual e as futuras gerações. Por meio desse instrumento legal, foram também normatizadas as regras para os atos de tombamento federal e a proteção do patrimôrúo histórico e artístico nacional. O decreto trazia a seguinte definição para patrimônio histórico e artístico nacional: 1/ conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja do interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico". 18 Criado no contexto do Estado Novo (1937-45), momento histórico de crescente centralização e intervenciorúsmo estatal, O Sphan procurou definir e reurúr o conjunto de bens de valor nacional que deveriam ser preservados corno patrimôrúo da nação brasileira: Durante esse período o Sphan norteou sua política pelas noções de "tradição" e de "civilização", dando especial ênfase à relação com o passado. Os bens culturaís classificados como patrimônio deveriam fazer a mediação entre os heróis nacionais, os personagens históricos, os brasileiros de ontem e os de hoje. Essa apropriação do passado era concebida como um instrumento para educar a população a respeito da unidade e permanência da nação. 1 9 Já desde a década de 1920, no Brasil, ganhava força a idéia de preservação do patrimôrúo histórico e artístico, tendo havido algumas iniciativas em âmbito local com esse fim. O interesse pela "redescoberta" do Brasil afloraria particularmente na década de 1930, período de especial importância em termos políticos e sociais e, também, um tempo de se pensar o nacional, quando diversos intelectuais buscariam reinterpretar a história do país." 1 8 Diário Oficial da União, 6 dez. 1937. 1 9 Serviço do Patrimônio... lo Por exemplo, Caio Prado ]T. (Evolução política do Brasil, 1933); Gilberto Freyre (Casa grande & senzala, 1933); e Sérgio Buarque de Hol1anda (Rnfzes do Brasil, 1937).

304 DIREITOS E CIDADANIA No âmbito cultural, uma nova tendência se iniciava, com a presença do Estado em ações articuladas a partir da colaboração de importantes intelectuais brasileiros que nesse tempo atuavam junto aos órgãos públicos. Assim, em 1936, Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, foi chamado a preparar um anteprojeto para a criação de uma instituição nacional de patrimônio.21 Com base no anteprojeto de Mário de Andrade são regulamentados os termos para a organização e proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, ficando sob a responsabilidade de Rodrigo Mello Franco de Andrade a efetiva implantação de uma secretaria de patrimônio. Quatro livros de tombo foram então orgarúzados para inscrição, no Sphan, de todas as obras a serem tombadas. Como vimos, a construção à qual se refere a nossa história seria tombada como "Casa da Marquesa de Santos" em 1938. É curioso observar que a inscrição de tombamento da casa não foi feita no Livro de Tombo Histórico, no qual deveriam ser registradas 1/ as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica", e sim no Livro de Tombo de Belas-Artes, no qual constavam lias coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira".22 Nesse sentido, a própria definição da Casa da Marquesa de Santos como objeto de tombamento já expressava, de alguma forma, um primeiro conflito de memória acerca dos significados do edifício. Por um lado, o ato de tombamento classificou o solar na categoria de arte erudita, e não como um bem de valor lústórico. Ou seja, a justificativa para a preservação do imóvel priorizava o seu valor artístico, em detrimento do papel do relacionamento entre a marquesa de Santos e d. Pedro I na lústória do Brasil. Por outro lado, no ato de tombamento, o prédio foi denominado "Casa da Marquesa". Essa contradição, à primeira vista irrelevante, denota as ambigilidades que daí em diante marcariam o imaginário e as representações acerca do solar e seus principais personagens. A despeito de seu tombamento, a Casa da Marquesa de Santos não recebeu nenhuma atenção especial nas décadas seguintes e continuou em mãos de sua antiga proprietária, a empresa Hime & Cia., que ali estabeleceu escritórios comerciais. 21 Foi esse o documento usado nas discussões preliminares sobre a estrutura e os objetivos do Sphan - embora o museólogo Mário Chagas (2006), fazendo uma comparação do anteprojeto de Mário de Andrade com o texto do Decreto-Lei n.q 25, afirme tratar-se de proposições diferentes e que, na conformação do decreto, muitas das idéias de Mário de Andrade foram modificadas. 21 Ver nota 18.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO 305 Somente na década de 1960, já criada a Guanabara, o prédio mereceria novamente atenção. Desapropriado em 1961 pelo governador Lacerda, com o fim de "ser utilizado pela Secretaria Geral de Educação e Cultura"," o solar foi restaurado entre 1964 e 1965 -trabalho que valeu aos seus realizadores, Wladimir de Alves Sousa, Geraldo Raposo da Câmara e Edson Motta, a IV Premiação Anual do Instituto dos Arquitetos do Brasil- Departamento da Guanabara." Em carta datada de 14 de setembro 1965," Marcelo Moreira Ipanema, então diretor da Divisão de Patrimônio Histórico e Artístico da Guanabara, solicitou ao diretor do Museu Imperial, Francisco Marques dos Santos, o empréstimo, por dois meses, de algumas peças para compor o acervo do Museu do Primeiro Reinado, a ser inaugurado na Casa da Marquesa de Santos "em futuro próximo". Como podemos perceber, o Museu do Primeiro Reinado não possuía acervo próprio, havendo a expectativa, para sua inauguração, de que fossem conseguídas peças emprestadas de outros museus. Talvez por isso, afora motivações de ordem política que tentaremos esclarecer adiante, mesmo tendo sido criado formalmente em 2 de dezembro de 1965," só muito depois o museu seria efetivamente inaugurado, já no final da década de 1970. A partir da desapropriação do Solar da Marquesa de Santos, o projeto de Carlos Lacerda era inaugurar o Museu do Primeiro Reinado como parte do programa de comemorações do IV Centenário da cidade, em 1965. Em carta datada de 13 de outubro de 196527 à secretária de Educação e Cultura da Guanabara, Maria Terezinha Tourinho Saraiva, Marcelo Moreira prestava informações sobre os trabalhos de restauração que vinham sendo realizados no solar e reafirmava a intenção do governo estadual de ali instalar o Museu do Primeiro Reinado. Segundo ele, faltava à Guanabara um museu "de época", capaz de resgatar a cultura "de um período" e de levar ao público toda a "vivência de um tempo", no caso, o Primeiro Reinado. Para justificar sua pretensão, argumentava: "que melhor poderia justificar a instalação de um museu-símbolo do Primeiro Reinado, senão o aproveita- 23 Guanabara, 1961. 2i O prêmio incluía uma menção honrosa na categoria A-lO (restauração arquitetônica de monumentos e sítios). 25 Acervo do Museu do Primeiro Reinado. 26 Ver Guanabara, 1965. 27 Acervo do Museu do Primeiro Reinado.

306 DIREITOS E CIDADANIA menta do Solar da Marquesa de Santos, ele próprio um símbolo desse período, para essa finalidade cultural?".28 Por fim, acrescentava que a própria Comissão do IV Centenário, numa de suas reuniões, aprovara em ata essa idéia. O projeto de Lacerda de criar o Museu do Primeiro Reinado denota sua preocupação de revalorizar a herança portuguesa do Brasil, destacando a vinda para o país da família real e o período do Primeiro Reinado como marcos civilizatórios da construção da nação brasileira. O desdobramento natural dessa representação seria ressaltar as ligações do Rio de Janeiro com esse passado luso-brasileiro, assim reafirmando a vocação da cidade corno centro da nacionalidade. Ambicionando concorrer às eleições presidenciais, previstas para o ano de 1965, Lacerda tentaria transformar sua experiência no governo da Guanabara em "vitrineff de seus feitos. Naturalmente, era enorme para ele a conveniência política da estratégia de recuperar para a terra carioca o status de "capital", perdido com a transferência da capital federal para Brasília. Do ponto de vista político-administrativo, um aspecto facilitador dessa estratégia era o fato de a antiga capital abrigar ainda importantes órgãos representativos do governo federal. Contudo, os esforços para a preservação de seu lugar no cenário nacional envolveriam também ações em prol da afirmação da identidade da cidade-estado como espaço-síntese da nação. Dessa forma, já na campanha eleitoral para o governo da Guanabara, Lacerda denunciava a espoliação sofrida pelo Rio no tempo em que estivera sob a égide do poder federal. 29 Eleito governador, apresentou-se como o "reconstrutor" da cidade do Rio, "devastada" por consecutivos governos corruptos - quadro, segundo ele, agravado com a administração de Kubitschek (1956-61) e a transferência da capital para Brasília.3D Nesse contexto, a proximidade das comemorações do IV Centenário de fundação da cidade do Rio de Janeiro se apresentava corno um momento propício para o governador da Guanabara mostrar ao país e ao mundo as suas realizações. Seu desejo era provar que o "velho Rio" fora transformado graças à sua administração inovadora.31 2B Grifos nossos. 29 Ver Motta, 2000:45. 30 Ver Rocha, 1996. " Ibid., p. 20-22.

DE SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS A MUSEU DO PRIMEIRO REINADO 307 A abertura oficial das comemorações do IV Centenário se deu no dia 31 de dezembro de 1964, numa cerimônia realizada junto ao suposto marco de fundação da cidade do Rio, a fortaleza de São João, com as presenças de Carlos Lacerda e do presidente da República Castello Branco (1964-67)32. Ao longo das comemorações, Lacerda não deixou escapar a oportunidade para reafirmar o Rio como a cidade "síntese do Brasil", a Uporta do Brasil para o mundo, a verdadeira imagem que ele faz de nós".33 O momento de redefinição da identidade coletiva do país representado pelo boom memorialista decorrente das comemorações do IV Centenário proporcionava, pois, um ambiente propício para a manipulação da imagem da cidade}4 e a criação de um museu mostrava-se um caminho coerente com essa perspectiva. Como parte dos festejos do IV Centenário foi criado o Departamento de Patrimônio Histórico do Rio de Janeiro, com vistas a IIsalvar os 400 anos da cidade".35 Nessa mesma linha se inscrevia o projeto de inauguração de um museu que tivesse como tema o Primeiro Reinado. A idéia surgia articulada à orientação que se pretendia imprimir à cidade como berço do Brasil " civilizado" - inclusive porque, vale a pena lembrar, o estatuto do Rio como " capital cultural" teve o seu marco fundamental na vinda da família real e nas modificações feitas na cidade para a acolhida da Corte portuguesa. Nessa mesma perspectiva, a seleção das primeiras coleções do Museu da Imagem e do Som indicava a "escolha de d. João VI como mito de origem da história carioca" f evidenciando a intenção de difundir e valorizar, através daquele museu, os vínculos entre a cidade do Rio e a "profunda vocação civilizadora de Portugal", segundo as palavras de Lacerda.36 Tal desígnio poderia ter continuidade com o Museu do Primeiro Reinado, evocando o período personificado na figura de d. Pedro I, herói que legou ao Brasil o estatuto da Independência. O Museu da Imagem e do Som foi legalmente formalizado em 24 de abril de 1964 com a criação da Fundação Vieira Fazenda, responsável por co- 32 Ver Rocha, 1996:23. 33 Apud Motta, 2000:44-45 (discurso proferido a 17 de junho de 1960 na convenção da UDN-GB que homologou sua candidatura ao governo da Guanabara). 34 Ver Dias, 2003:207. 35 Apud Rocha, 1996:25. 36 Apud Dias, 2003:211.