Saúde materno-infantil e nutrição de crianças Kaiowá e Guaraní, Área Indígena de Caarapó, Mato Grosso do Sul, Brasil

Documentos relacionados
PERFIL NUTRICIONAL DE CRIANÇAS EM ESCOLA PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE PIRAQUARA NUTRITIONAL PROFILE OF PUBLIC SCHOOL CHILDREN IN THE TOWN OF PIRAQUARA

Professora adjunta da Faculdade de Nutrição/UFPEL Campus Universitário - UFPEL - Caixa Postal CEP

AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL DE GESTANTES ATENDIDAS NOS ESF DO MUNICÍPIO DE SÃO LUDGERO NO ANO DE 2007

APLICAÇÃO DE UMA CURVA DE GANHO DE PESO PARA GESTANTES

ANÁLISE DO CRESCIMENTO CORPORAL DE CRIANÇAS DE 0 À 2 ANOS EM CRECHES MUNICIPAIS DE GOIÂNIA

IDADE GESTACIONAL, ESTADO NUTRICIONAL E GANHO DE PESO DURANTE A GESTAÇÃO DE PARTURIENTES DO HOSPITAL SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PELOTAS RS

Avaliação do estado nutricional da comunidade indígena Parkatêjê, Bom Jesus do Tocantins, Pará, Brasil

Campus Universitário Caixa Postal 354 CEP INTRODUÇÃO

AVALIAÇÃO ANTROPOMÉTRICA DE IDOSOS FREQUENTADORES DE UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE

PERFIL NUTRICIONAL DAS CRIANÇAS QUE FREQUENTAM OS CENTROS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO INFANTIL DE JANDAIA DO SUL PR

Revista de Saúde Pública. Journal of Public Health

Quais os indicadores para diagnóstico nutricional?

PERFIL NUTRICIONAL DE ESCOLARES DA REDE MUNICIPAL DE CAMBIRA- PR

ESTADO NUTRICIONAL E FATORES ASSOCIADOS AO BAIXO PESO AO NASCER EM CRIANÇAS*

AVALIAÇÃO NUTRICIONAL DE CRIANÇAS MENORES DE DOIS ANOS ATENDIDAS NA USF VIVER BEM DO MUNICIPIO DE JOÃO PESSOA-PB

Avaliação do Índice de Massa Corporal em crianças de escola municipal de Barbacena MG, 2016.

PNS Pesquisa Nacional de Saúde 2013 Ciclos de vida, Brasil e grandes regiões Volume 3

PERFIL NUTRICIONAL E PREVALÊNCIA DE DOENÇAS EM PACIENTES ATENDIDOS NO LABORATÓRIO DE NUTRIÇÃO CLÍNICA DA UNIFRA 1

AVALIAÇÃO ANTROPOMÉTRICA DE CRIANÇAS DE MESES, A PARTIR DO USO COMPARATIVO DAS REFERÊNCIAS DE CRESCIMENTO CDC 200 E OMS 2005

Índice de massa corporal e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis em idosos institucionalizados

DEFEITOS DE DESENVOLVIMENTO DE ESMALTE EM DENTES DECÍDUOS E SUA RELAÇÃO COM CONDIÇÕES PERINATAIS, ESTADO NUTRICIONAL E DE SAÚDE NA INFÂNCIA

3. Material e Métodos

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DEPARTAMENTO DE NUTRIÇÃO

62 Perfil Sócio e Econômico e Antropométrico de Pré-Escolares

DESCRIÇÃO DA MORTALIDADE INFANTIL EM PELOTAS A INTRODUÇÃO

PREVALÊNCIA DE SOBREPESO E OBESIDADE EM CRIANÇAS MATRICULADAS EM UMA CRECHE DE BRASÍLIA-DF

Incorporação das novas curvas de crescimento da Organização Mundial da Saúde na Vigilância Nutricional

PERFIL NUTRICIONAL DE ESCOLARES DAS ESCOLAS DE CANÁPOLIS/MG E CAMPO ALEGRE DE GOIÁS/GO

AVALIAÇÃO ANTROPOMÉTRICA EM CRIANÇAS DE UMA CRECHE NA CIDADE DE FORTALEZA UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

11. CONDIÇÕES DE SAÚDE E NUTRIÇÃO NO SEMI-ÁRIDO DO RIO GRANDE DO NORTE 2005

25 a 28 de novembro de 2014 Câmpus de Palmas

FREQÜÊNCIA DO ALEITAMENTO MATERNO NO BRASIL, NAS MACRO- REGIÕES, ÁREAS URBANAS E RURAIS E INDICADORES SOCIOECONÔMICOS.

INTERAÇÃO ENTRE ÍNDICE DE MASSA CORPORAL, COM FLEXIBILIDADE E FLEXÕES ABDOMINAIS EM ALUNOS DO CESUMAR

GEP NEWS, Maceió, V.2, n.2, p , abr./jun. 2018

INFLUÊNCIA DOS DESVIOS NUTRICIONAIS GESTACIONAIS NO PESO AO NASCER DE RECÉM-NASCIDOS ATENDIDOS PELA REDE PÚBLICA DE SAÚDE DO MUNICÍPIO DE PALMAS TO

PERFIL DAS MÃES DE RECÉM-NASCIDOS PREMATUROS DO HOSPITAL MATERNO INFANTIL DA CIDADE DE APUCARANA

DIAGNÓSTICO DA PREVALÊNCIA DA OBESIDADE INFANTIL NO ENSINO FUNDAMENTAL DAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE CORNÉLIO PROCÓPIO

Perfil socioeconômico e nutricional das crianças inscritas no programa de suplementação alimentar do Centro Municipal de Saúde Manoel José Ferreira

DIFERENÇAS NA COMPOSIÇÃO CORPORAL DE ALUNOS DE ESCOLAS PÚBLICAS E PARTICULARES RESUMO

TÍTULO: PREVALÊNCIA DE SOBREPESO E OBESIDADE EM CRIANÇAS PRÉ-ESCOLARES DE ESCOLAS MUNICIPAIS DA ZONA SUL DE SÃO PAULO

PREVALÊNCIA DE ANEMIA EM GESTANTES ATENDIDAS NAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE DO MUNICÍPIO DE CABEDELO-PB

TÍTULO: A RELAÇÃO DO PESO AO NASCER COM O ESTADO NUTRICIONAL ATUAL DE CRIANÇAS DE 8 AS 10 ANOS NO MUNICÍPIO DE MOGI MIRIM/SP

Sazonalidade e estado nutricional de populações indígenas: o caso Wari', Rondônia, Brasil

AVALIAÇÃO ANTROPOMÉTRICA DE CRIANÇAS DE UMA CRECHE DE TRINDADE, GOIÁS.

Período de Realização. De 3 de julho à 15 de setembro de População em geral. Sujeitos da Ação

ESTADO NUTRICIONAL DE ESCOLARES DA REDE PÚBLICA DE GUARAPUAVA, PR. PALAVRAS-CHAVE: crianças; diagnóstico nutricional; obesidade; desnutrição.

DESIGUALDADES SOCIAIS E MORTALIDADE INFANTIL NA POPULAÇÃO INDÍGENA, MATO GROSSO DO SUL. Renata PalópoliPícoli

PERFIL ANTROPOMÉTRICO DOS USUÁRIOS DE CENTROS DE CONVIVÊNCIA PARA IDOSOS NO MUNICÍPIO DE NATAL- RN

Jornal de Pediatria ISSN: Sociedade Brasileira de Pediatria Brasil

ÍNDICE. CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO Introdução Pertinência do trabalho Objectivos e Hipóteses de Estudo...

PERFIL DO ÍNDICE DE MASSA CORPORAL DOS ESCOLARES INGRESSOS NO INSTITUTO FEDERAL DO TOCANTINS Campus Paraíso do Tocantins

FREQÜÊNCIA À CRECHE E OUTROS CONDICIONANTES DO ESTADO NUTRICIONAL INFANTIL

AVALIAÇÃO DO PERFIL NUTRICIONAL DE CRIANÇAS MATRICULADAS NAS ESCOLAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO MUNICÍPIO DE SAPUCAIA DO SUL

PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: ADESÃO DE ESCOLARES INDÍGENAS DA TERRA INDÍGENA BURITI, MS, BRASIL.

ESTADO NUTRICIONAL EM CRIANÇAS MENORES DE CINCO ANOS NA ALDEIA INDÍGENA ALTO RECREIO - RS

KARLA DE TOLEDO CANDIDO AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL DE PRÉ- ESCOLARES DE CEINFS MUNICIPAIS DE CAMPO GRANDE - MS

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: RELAÇÃO ENTRE INATIVIDADE FÍSICA E ÍNDICE DE MASSA CORPORAL EM CRIANÇAS DA REDE MUNICIPAL DE VITÓRIA DE SANTO ANTÃO PE.

PERFIL ANTROPOMÉTRICO DOS POLICIAIS MILITARES DE UM BATALHÃO DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO RIO DE JANEIRO

PNDS Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher 2006

ESTADO NUTRICIONAL DE COLABORADORES DE REDE HOTELEIRA

EXCESSO DE PESO, OBESIDADE ABDOMINAL E NÍVEIS PRESSÓRICOS EM UNIVERSITÁRIOS

Prevalência de desnutrição em crianças residentes no Município de Embu, São Paulo, Brasil,

FATORES ASSOCIADOS À DESISTÊNCIA DE PROGRAMAS MULTIPROFISSIONAIS DE TRATAMENTO DA OBESIDADE EM ADOLESCENTES

UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO MILENA CAROLINA SILVA CASTRO OLIVEIRA

Estado nutricional dos indígenas Kaingáng matriculados em escolas indígenas do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil

10º FÓRUM DE EXTENSÃO E CULTURA DA UEM

AVALIAÇÃO DO CRESCIMENTO NOS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

O IMPACTO DE CONDIÇÕES CRÔNICAS NA QUALIDADE DE VIDA RELACIONADA À SAÚDE (SF-36) DE IDOSOS EM ESTUDO DE BASE POPULACIONAL ISA-SP.

AVALIAÇÃO DO CONSUMO DE ALIMENTOS SUPÉRFLUOS NO PRIMEIRO ANO DE VIDA

Palavras-Chave: Obesidade; Educação Nutricional; Avaliação Nutricional

AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL E RISCO DE DESNUTRIÇÃO DOS PACIENTES DE 2 A 5 ANOS INTERNADOS EM UM HOSPITAL INFANTIL DE PORTO VELHO-RO

DISSERTAÇÃO Mestrado

Perfil Nutricional de Crianças Indígenas da Etnia Nukini. Mâncio Lima, Acre- Brasil.

Avaliação do estado nutricional de crianças amamentadas exclusivamente e crianças não amamentadas

Avaliação antropométrica de crianças

ACONSELHAMENTO SOBRE MODOS SAUDÁVEIS DE VIDA: PRÁTICA E ADESÃO EM USUÁRIOS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE.

Manual Básico. Antho WHO

AGENDA PARA INTENSIFICAÇÃO DA ATENÇÃO NUTRICIONAL À DESNUTRIÇÃO INFANTIL (e estímulo ao desenvolvimento infantil)

Comitê de Gestão de Indicadores de Fatores de Risco e Proteção

PERCEPÇÃO DE APOIO SOCIAL PARA A PRÁTICA DE ATIVIDADE FÍSICA EM INDIVÍDUOS OBESOS

Estado nutricional de crianças índias do Alto Xingu em 1980 e 1992 e evolução pondero-estatural entre o primeiro e o quarto anos de vida

Tema da aula: PNAN: Atenção Nutricional Desnutrição + Programas de Transferência Condicionada de Renda. 5.Participação e Controle Social

ISSN Prevalência de excesso de peso infantil... Ribeiro, G. M.; Silva, L. M. L; Ibiapina, D. F. N. PESQUISA

O FUTURO DA OBESIDADE NO BRASIL: UMA PREVISÃO A PARTIR DO MÉTODO LEE-CARTER ( )

Nutritional profile and factors associated with malnutrition in Kaingáng children on the Mangueirinha Indigenous Reserve, Paraná State, Brazil

CONCEPÇÃO DAS MÃES DE CRIANÇAS DE 0 A 2 ANOS QUANTO À ALIMENTAÇÃO COMPLEMENTAR ADEQUADA Eliete Costa Oliveira¹ e Gabriela Loiola Camargo²

1. Tabela de peso e estatura (percentil 50) utilizando como referencial o NCHS 77/8 - gênero masculino

Análise do inquérito Chamada Nutricional 2005 realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e Ministério da Saúde

Coordenação de Epidemiologia e Informação

nutricional de crianças indígenas Guarani nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, Brasil

ANÁLISE COMPARATIVA DE SOBREPESO E OBESIDADE NO ENSINO FUNDAMENTAL EM UMA ESCOLA PARTICULAR E UMA ESCOLA PÚBLICA DE FORTALEZA.

INFLUÊNCIA DA EDUCAÇÃO NUTRICIONAL NAS MEDIDAS ANTROPOMÉTRICAS DE COLABORADORES DE UMA PANIFICADORA

Desnutrição em escolares em região urbano-rural do extremo sul do município de São Paulo

RELAÇÃO ENTRE O NOVO ÍNDICE DE ADIPOSIDADE CORPORAL COM O ÍNDICE DE MASSA CORPORAL EM CRIANÇAS. Ivair Danziger Araújo

Introdução. Nutricionista FACISA/UNIVIÇOSA. 2

AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL DOS IDOSOS ASSISTIDOS EM TERESINA PI ASSESSMENT OF NUTRITIONAL STATUS OF ELDERLY PEOPLE ATTENDED IN TERESINA -PI

CORREÇÃO DAS MEDIDAS DE QUADRIL: ESTUDO DE

Análise da situação alimentar e nutricional no Brasil. Eduardo Nilson CGAN/DAB/MS

PREVALÊNCIA DE BAIXO PESO E PESO INSUFICIENTE AO NASCER EM CRIANÇAS DO PROGRAMA DE PUERICULTURA DE 4 UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE DE PELOTAS/RS

Transcrição:

NOTA RESEARCH NOTE 223 Saúde materno-infantil e nutrição de crianças Kaiowá e Guaraní, Área Indígena de Caarapó, Mato Grosso do Sul, Brasil Mother-child health and nutrition of Kaiowá and Guaraní indigenous children, Caarapó Reserve, Mato Grosso do Sul, Brazil Renata Palópoli Pícoli 1 Luana Carandina 2 Dulce Lopes Barbosa Ribas 3 Abstract Introdução 1 Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. 2 Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Botucatu, Brasil. 3 Departamento de Tecnologia de Alimentos e Saúde Pública, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Brasil. Correspondência R. P. Pícoli Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Rua Imaculada Conceição 375, Nova Andradina, MS 79750-000, Brasil. rpicoli@usp.br The objective of this study was to evaluate the nutritional status of indigenous children and to determine the conditions of mother-child health. A cross-sectional study was performed with a sample of 137 children from 0 to 59 months of age from Kaiowá and Guarani indigenous communities, Caarapó Reserve, Mato Grosso do Sul, Brazil. Interviews were carried out using a questionnaire covering the conditions of motherchild health. Nutritional evaluation was performed using anthropometric measurements (weight and height). Results showed that 19.7% of mothers had not undergone prenatal examination and 53.3% had home births. Malnutrition in children was 18.2% and 34.1% for the weight/age and height/age indexes, respectively. The proportion of children with malnutrition, when separated by sex, age and education level of the mother, did not show a significant statistical difference for both indexes. This study documented a high occurrence of infant malnutrition and a worrisome mother-child health situation. Maternal and Child Health; Nutritional Status; South American Indians Os indígenas Kaiowá e Guaraní sofreram, ao longo dos séculos, transformações sociais, econômicas e ambientais, que conduziram a mudanças negativas no seu viver e no adoecer. A perda da floresta enquanto espaço vital, a expulsão de suas terras, a degradação ambiental, a fome e a miséria em que vivem, atualmente, influenciam na sua saúde e nutrição 1,2. Os objetivos deste trabalho foram estudar o estado nutricional de crianças indígenas Kaiowá e Guaraní e conhecer as condições de saúde materno-infantil. População e métodos Os Guaraní contemporâneos são divididos em três subgrupos: Mbyá, Kaiowá e os Nhandéva/ Chiripá, sendo que apenas estes últimos se autodenominam Guaraní. No Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, estão dois destes subgrupos, os Kaiowá e os Guaraní. Vivem em 28 áreas indígenas da região sul do Estado e têm uma população de aproximadamente 30 mil indivíduos 1. Foi realizado um estudo transversal com uma amostra de 137 crianças indígenas Kaiowá e Guaraní com idade entre 0 e 59 meses, da Área Indígena de Caarapó, durante os meses de maio a setembro de 2003. Nesse período, a po-

224 Pícoli RP et al. pulação dessa área era de 2.800 indivíduos, sendo que 694 eram crianças com idade entre 0 e 59 meses. Todas as crianças estavam sendo acompanhadas pelo Programa de Vigilância Nutricional do Pólo Base de Caarapó. O Programa de Vigilância Nutricional avalia o estado nutricional por meio do índice peso/idade e utiliza a unidade de medida percentil, segundo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) 3. No período da pesquisa, o Programa de Vigilância Nutricional registrava 63% de crianças eutróficas (P10 a P97), 19% sob risco nutricional (P3 a P10), 15% desnutridas (P < 3) e 3% obesas (P > 97). Respeitando essa proporcionalidade e utilizando-se um intervalo de confiança de 95%, foram sorteadas 137 crianças. O sorteio priorizou o número de crianças e não o número de domicílios ou famílias, portanto, ocorreram casos em que mais de uma criança de uma mesma família participou da pesquisa. O trabalho de campo consistiu em duas etapas: entrevista e avaliação nutricional, realizadas no domicílio das crianças e contou com a colaboração dos agentes indígenas de saúde (AIS) que facilitaram o diálogo e o aceite dos familiares. Na entrevista foi aplicado um questionário, especificamente elaborado e que foi pré-testado, sobre as condições de saúde materno-infantil. A maioria das informações foi fornecida pelas mães. Apenas o registro de peso ao nascer foi verificado no cartão de nascimento ou de vacina da criança. A antropometria foi baseada nas recomendações da OMS 3. As medidas obtidas foram peso e estatura, sendo registradas pela pesquisadora com a colaboração de dois AIS. As crianças foram pesadas em balança digital eletrônica marca Tanita, com precisão de 0,1kg. As crianças abaixo de 100cm foram medidas em antropômetro de madeira tipo horizontal, e para crianças acima de 100cm utilizou-se a fita métrica inelástica. Na impossibilidade de fixação da fita métrica na parede, utilizou-se o antropômetro digital eletrônico portátil da marca Soehnle. O estado nutricional foi classificado pelos índices de peso/idade e altura/idade com base na unidade de medida escore-z: < -2 desnutridos, -2 a +2 eutróficos e > +2 obesos. Para a análise estatística dos resultados foram utilizados os testes qui-quadrado e o exato de Fisher. O nível de significância utilizado foi de p < 0,05. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, contou também com a autorização das lideranças da Área Indígena de Caarapó. Resultados O número de crianças nas duas etapas do estudo foi diferente, visto serem realizadas em momentos distintos. Inquérito domiciliar (n = 137) Das 137 crianças, 84 (61,3%) eram meninas e 53 (38,7%) meninos. Quanto à faixa etária, 15 crianças (10,9%) tinham entre 0 e 5 meses, 20 (14,6%) entre 6 e 11 meses, 39 (28,5%) entre 12 e 23 meses e 63 (46%) tinham entre 24 e 59 meses. Nota-se que um número significativo das crianças tiveram baixo peso ao nascer (< 2.500g). Este número pode ser subestimado, visto a elevada ocorrência de crianças (64,4%) que não tinham registro de peso ao nascer, sobretudo as nascidas nos domicílios e as que não tiveram acompanhamento pré-natal (Tabela 1). Avaliação nutricional (n = 126) Na antropometria houve perda de 11 crianças (8%) por não terem sido encontradas no domicílio em até três tentativas. Das 126 crianças, 53 eram meninos e 73 meninas. Quanto à faixa Tabela 1 Distribuição porcentual das características da assistência pré-natal. Área Indígena de Caarapó, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2003. Variáveis/categorias n % Peso ao nascimento (g) < 2.500 14 30,4 > 2.500 32 69,6 Número de consultas pré-natal Até 3 33 24,1 4-6 67 48,9 7 ou mais 10 7,3 Não realizou o pré-natal 27 19,7 Local do parto Domicílio 73 53,3 Hospital 64 46,7

NUTRIÇÃO EM CRIANÇAS INDÍGENAS 225 etária, 8 (6,3%) tinham entre 0 e 5 meses, 12 (9,5%) entre 6 e 11 meses, 37 (29,4%) de 12 a 23 meses e 69 (54,8%) de 24 a 59 meses. Na antropometria seis crianças, que na primeira etapa compuseram a amostra com idade entre 12 e 23 meses, tinham completado 24 meses, aumentando a proporção de crianças da faixa etária de 24 a 59 meses. Verificou-se uma elevada proporção de crianças com escore-z < -2. Além disso, observou-se uma marcada diferenciação entre o número de crianças desnutridas segundo o índice peso/idade e altura/idade, sendo que neste último a proporção foi mais elevada (Tabela 2). A proporção de crianças desnutridas quando separadas por sexo, faixa etária e escolaridade materna não apresentou diferença estatisticamente significante para ambos os índices (Tabela 3). Discussão Um número expressivo de mães não teve atendimento pré-natal, os resultados obtidos foram superiores aos encontrados na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) na Região Centro-oeste, que foi de 7% e no Brasil de 13,2% 4. A não realização do pré-natal pode aumentar o risco de morbidade e mortalidade materna e perinatal entre mães indígenas e seus filhos. O trabalho desenvolvido pela equipe da Fundação Nacional de Saúde, com a imprescindível contribuição dos AIS, tem favorecido a maior adesão das gestantes ao acompanhamento pré-natal. Contudo, ainda existe a necessidade de estabelecer um melhor diálogo entre profissionais de saúde e mães, esclarecendo conceitos e conhecendo as práticas histórico-culturais desse povo. Observou-se um número elevado de mães que fizeram seu parto no domicílio. Dado se- Tabela 2 Distribuição das crianças indígenas segundo os valores de escore-z para os índices peso/idade e altura/idade, sexos combinados. Área Indígena de Caarapó, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2003. Escore-z Peso/idade Altura/idade n % n % < -2 23 18,2 43 34,1-2 a +2 103 81,8 81 64,3 > + 2 2 1,6 Total 126 100,0 126 100,0 Tabela 3 Distribuição porcentual dos índices de altura/idade e peso/idade das crianças segundo o sexo, faixa etária e escolaridade materna. Área Indígena de Caarapó, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2003. Variáveis/categorias Escore-z Altura/idade (A/I) Peso/idade (P/I) < -2-2 a 2 > +2 < -2-2 a 2 Total n % n % n % n % n % n % Sexo* Masculino 21 39,6 30 56,6 2 3,8 12 22,7 41 77,3 53 100,0 Feminino 22 30,1 51 69,9 11 15,0 62 85,0 73 100,0 Faixa etária (meses)** 0-5 8 100,0 8 100,0 8 100,0 6-11 4 33,4 7 58,3 1 8,3 4 33,4 8 66,6 12 100,0 12-23 17 46,0 20 54,0 8 21,6 29 78,4 37 100,0 24-59 22 31,9 46 66,7 1 1,4 11 15,9 58 84,2 69 100,0 Escolaridade materna (anos)*** Sem escolaridade 18 38,3 28 59,6 1 2,1 11 23,4 36 76,6 47 100,0 1-4 19 32,8 38 65,5 1 1,7 8 13,8 50 86,2 58 100,0 5-8 6 28,6 15 71,4 4 19,1 17 80,9 21 100,0 * p = 0,103(A/I) e p = 0,351(P/I). ** p = 0,068 (A/I) e p = 0,247 (P/I). *** p = 0,904(A/I) e p = 0,445(P/I).

226 Pícoli RP et al. melhante foi encontrado por Ribas et al. 5, sendo que 40% dos partos de mães indígenas Teréna de Mato Grosso do Sul foram domiciliares. Constatou-se que as mães cujos filhos nasceram em épocas mais recentes receberam assistência pré-natal com maiores chances de cuidado hospitalar no parto. Contudo, as dificuldades de transporte e a demora no atendimento à gestante no momento do parto, constituem limitações que devem ser equacionadas para garantir um parto seguro e humanizado, seja este no ambiente hospitalar ou domiciliar. Quanto ao parto domiciliar, este deve ser incluído nas políticas de atenção à saúde, uma vez que nessa comunidade a parteira é respeitada e reconhecida, entretanto, este trabalho deve estar articulado à rede de serviços oferecidos à população. Este estudo revelou um elevado número de crianças com baixo peso ao nascimento (< 2.500 g), sendo superior ao obtido na PNDS que encontrou 9,1% para a Região Centro-oeste e 8,1% no Brasil 4. Ribas & Philippi 6 observaram uma prevalência de 12,5% de baixo peso ao nascimento entre as crianças indígenas Teréna. A ocorrência de desnutrição foi superior à encontrada por Ribas & Philippi 6 entre os Teréna, que foi de 4% para o índice peso/idade e 11,1% de déficit estatural, e igual ou inferior quando comparada com povos indígenas de diferentes regiões brasileiras 7,8. Entre os Pakaanóva do Estado de Rondônia, a prevalência encontrada foi de 50% de déficit estatural e 30,8% de desnutrição por peso/idade entre as crianças de 24 a 59 meses de idade 8. A desnutrição foi maior no sexo masculino, comprovando o observado em outros estudos 6,9. A partir do sexto mês de vida, todas as faixas etárias apresentaram déficits nutricionais. Deve-se destacar a influência das precárias condições sócio-econômicas, ambientais e de saúde desse povo podendo favorecer o aparecimento da desnutrição. Martins & Menezes 9, investigando a evolução do estado nutricional de crianças menores de cinco anos das aldeias de Parakanã na Amazônia, descreveram a influência negativa do meio externo sobre o crescimento infantil, verificada pela redução nos valores dos índices antropométricos com o aumento da idade. Observou-se maior número de crianças desnutridas entre as mães sem escolaridade, concordando com os estudos de Monteiro & Freitas 10 que investigaram a influência da escolaridade materna sobre a saúde e nutrição infantil. O presente estudo evidenciou elevada ocorrência de desnutrição e uma preocupante situação de saúde materno-infantil. A evolução e a expansão da oferta de serviços de saúde têm buscado alternativas para reverter esta situação. No entanto, estas ações ainda são incipientes, não chegando a prover melhorias das condições de saúde materno-infantil e de nutrição desse povo. Destacamos a necessidade de maior número de pesquisas sobre a saúde materno-infantil e nutrição dos povos indígenas. Tais pesquisas devem fomentar e ampliar as discussões sobre as políticas e ações desenvolvidas pelos órgãos públicos, para reverter o perfil nutricional dos povos indígenas. Resumo Este trabalho teve como proposta estudar o estado nutricional de crianças indígenas e conhecer condições de saúde materno-infantil. Trata-se de um estudo transversal, com uma amostra de 137 crianças de zero a 59 meses de idade, das comunidades Kaiowá e Guaraní, Área Indígena de Caarapó, Mato Grosso do Sul, Brasil. Foram realizadas entrevistas com a aplicação de um questionário sobre as condições de saúde materno-infantil. A avaliação nutricional foi obtida por meio de medidas antropométricas (peso e estatura). Verificou-se que 19,7% das mães não realizaram o prénatal e 53,3% tiveram parto domiciliar. A ocorrência de desnutrição para o índice peso/idade foi de 18,2% e para o índice altura/idade foi de 34,1%. A proporção de crianças desnutridas quando separadas por sexo, faixa etária e escolaridade materna não apresentou diferença estatisticamente significante para ambos os índices. Este estudo evidenciou elevada ocorrência de desnutrição infantil e uma preocupante situação de saúde materno-infantil. Saúde Materno-Infantil; Estado Nutricional; Índios Sul-Americanos

NUTRIÇÃO EM CRIANÇAS INDÍGENAS 227 Colaboradores Agradecimentos R. P. Pícoli realizou o trabalho de campo e elaborou o artigo. L. Carandina e D. L. B. Ribas contribuíram na supervisão da análise dos dados e revisão crítica do artigo. Aos agentes indígenas de saúde, em especial a Maria Celina e Neuza, pelo carinho e atenção dedicados a mim durante o trabalho de campo. À Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo auxílio pesquisa concedido (processo n. 03/05283-9). Referências 1. Brand AJ. Desenvolvimento local em comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul: a construção de alternativas. Interações Revista Internacional de Desenvolvimento Local 2001; 2:59-68. 2. Grunberg FP. Reflexões sobre a situação dos Guarani no Mato Grosso do Sul, Brasil. Brasília: Equipe de Acompanhamento dos Guarani, Centro de Trabalho Indigenista; 2002. 3. World Health Organization. Physical status: the use and interpretation of anthropometry indicators of nutritional status. Geneva: World Health Organization; 1995. (Technical Report Series 854). 4. Victora CG, César JA. Saúde materno-infantil no Brasil padrões de morbimortalidade e possíveis intervenções. In: Rouquayrol MZ, Almeida FN, organizadores. Epidemiologia & saúde. Rio de Janeiro: Editora Medsi; 2003. p. 415-53. 5. Ribas DLB, Sganzerla A, Zorzatto JR, Philippi ST. Nutrição e saúde infantil em uma comunidade indígena Teréna, Mato Grosso do Sul, Brasil. Cad Saúde Pública 2001; 17:323-31. 6. Ribas DLB, Philippi ST. Aspectos alimentares e nutricionais de mães e crianças indígenas Teréna, Mato Grosso do Sul. In: Coimbra Jr. CEA, Santos RV, Escobar AL, organizadores. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ABRASCO; 2003. p. 73-88. 7. Coimbra Jr. CEA, Santos RV. Avaliação do estado nutricional num contexto de mudanças socioeconômicas: o grupo indígena Suruí do Estado de Rondônia, Brasil. Cad Saúde Pública 1991; 7:538-62. 8. Escobar AL, Santos RV, Coimbra Jr. CEA. Avaliação nutricional de crianças indígenas Pakaanóva (Warí), Rondônia, Brasil. Rev Bras Saúde Mater Infant 2003; 4:457-61. 9. Monteiro CA, Freitas ICM. Evolução de condicionantes socioeconômicas da saúde na infância na cidade de São Paulo (1984-1996). Rev Saude Pública 2001; 34 (6 Suppl): 8-12. 10. Martins SJ, Menezes RC. Evolução do estado nutricional de menores de 5 anos em aldeias indígenas da Tribo Parakanã, na Amazônia Oriental Brasileira (1989-1991). Rev Saúde Pública 1994; 28:1-8. Recebido em 23/Mar/2005 Versão final reapresentada em 11/Jul/2005 Aprovado em 27/Set/2005