DIREITO PROCESSUAL PENAL 4.º ANO DIA. Coordenação e Regência: Professor Doutor Augusto Silva Dias

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Transcrição:

DIREITO PROCESSUAL PENAL 4.º ANO DIA Coordenação e Regência: Professor Doutor Augusto Silva Dias Colaboração: Professor Doutor Rui Soares Pereira e Mestres João Gouveia de Caires e António Brito Neves Tópicos para a correcção do exame escrito de 20 de Julho de 2016 4.º ano Dia 1. Os agentes da PSP deveriam, nos termos do art. 255.º, n.º 1, al. a), do CPP, ter procedido à imediata detenção de Bruno dado terem presenciado os actos de execução em curso de um crime punível com pena de prisão (recorde-se, o crime de violência doméstica art. 152.º do CP), o que configura uma situação de flagrante delito em sentido próprio (art. 256.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPP), visto tratar-se de uma entidade policial que assistiu a um crime de natureza pública (art. 48.º do CPP). De seguida, deveriam ter procedido à constituição de Bruno como arguido (art. 58.º, n.º 1, al. c), do CPP), com a comunicação dos respectivos direitos (art. 58.º, n.ºs 2 e 4, do CPP), identificando-o (art. 250.º, n.º 1, do CPP), proceder à revista do mesmo (art. 174.º, n.º 5, al. c), do CPP), e comunicar a detenção ao Ministério Público (MP) nos termos do art. 259.º, al. b), do CPP, em ordem à validação das medidas cautelares e de polícia, bem como à promoção pela forma de processo adequada. Seria ainda necessário que os agentes da PSP procedessem aos pedidos de informações em relação a todos os vizinhos da vítima (em especial daqueles que alertaram a policia), ao abrigo do disposto no art. 249.º, n.º 2, al. b), do CPP. Posto isto, deveriam os agentes lavrar auto de notícia (art. 243.º, n.º 1, do CPP), dado terem presenciado um crime de denúncia obrigatória (art. 242.º, n.º 1, al. a), do CPP). Deveriam ainda elaborar os relatórios de todas as medidas cautelares e de polícia que tivessem realizado (art. 253.º do CPP), além dos autos de detenção em flagrante delito e da constituição de arguido. 1

Poder-se-ia ainda discutir da eventual necessidade das buscas domiciliárias (art. 177.º, n.ºs 3 e 4, do CPP) e da apreensão de objectos (art. 249.º, n.º 2, al. b), do CPP) que tivessem servido para a prática do crime, o que seria igualmente admissível desde que justificado do ponto de vista da necessidade para a prova do crime e houvesse perigo de perda da prova. Por fim, dever-se-ia discutir a finalidade da detenção em flagrante delito. Uma das finalidades possíveis da detenção referidas no art. 254.º, n.º 1, al. a), do CPP, é a apresentação do detido a processo sumário. Caberia averiguar, então, se o processo deveria realmente ter lugar sob essa forma. Ora, sendo o limite máximo da pena prevista para o crime em causa inferior a 5 anos, como resulta do art. 152.º, n.º 1, al. b) do CP (ou mesmo que o crime tivesse ocorrido no domicílio comum ou no da vítima para efeitos da agravação do n.º 2 do art. 152.º do CP, o limite máximo da pena continuaria a ser de 5 anos); tendo havido detenção em flagrante delito por entidade policial, como referido; admitindo ainda que o julgamento se poderia iniciar, no máximo, em 48 horas, ou num dos prazos referidos no art. 387.º, n.º 2, do CPP (consoante alguma das situações aí referidas se verificasse), o julgamento, aparentemente, poderia decorrer sob a forma de processo sumário, pois estariam cumpridos os requisitos, respectivamente, dos arts. 381.º, n.º 1, al. a), e 387.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP. Ter-se-ia ainda de demonstrar a verificação do requisito implícito: ser o crime susceptível de ser julgado por tribunal singular, pois, caso contrário, a forma deveria ser a comum. Ora, tal só não sucederia se o crime fosse qualificado em função da ofensa à integridade física grave que resultasse da violência doméstica (cf. art. 152.º, n.º 3, al. a), do CP), e desde que o MP não usasse da faculdade prevista no art. 381.º, n.º 2, do CPP. Não se tratando dessa situação, e não sendo da competência do tribunal colectivo o julgamento do crime de violência doméstica previsto no art.152.º, n.º 1, al. b), do CP (ou mesmo que o crime tivesse ocorrido no domicílio comum ou no da vítima para efeitos da agravação do n.º 2 do art. 152.º do CP, a resposta seria idêntica), não só poderia como deveria o processo tramitar na forma sumária, sob pena de nulidade dependente de arguição nos termos do art. 120.º, n.º 2, al. a), do CPP. Neste caso, Bruno deveria ser restituído à liberdade nos termos do art. 385.º, n.º 1, do CPP, salvo se se demonstrasse alguma das circunstâncias descritas nas alíneas do mesmo preceito (sendo plausível admitir a necessidade de manutenção da detenção para a proteção imprescindível da vítima), caso em que o mesmo permaneceria detido (no limite das 48h subse- 2

quentes à detenção) até ser presente a primeiro interrogatório de arguido detido, pelo Juiz de Instrução (art. 141.º do CPP), pelo MP (arts. 143.º e 382.º, n.º 2, do CPP), ou até pelo próprio Juiz de julgamento da forma sumária. Seria valorizada a discussão sobre a eventual impossibilidade de tramitação do processo na forma sumária. Caso não fosse possível tramitar na forma sumária, eventualmente por necessidade de realização de diligências probatórias não compatíveis com o prazo máximo para o início da audiência de julgamento (art. 387.º, n.ºs 1 e 2, do CPP), o processo deveria ser reenviado ao MP para tramitação na forma adequada (art. 390.º, al. a), do CPP), que seria a abreviada pela verificação dos seus requisitos (arts. 390.º-A, n.ºs 1 e 3, al. a), e 391.º-B, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP), e só após esgotar o prazo desta forma de processo é que o processo deveria ser remetido para a forma comum. 2. Admitindo que o processo tramitou sob a forma comum, a resposta à questão depende da verificação do preenchimento do requisito de legitimidade previsto no art. 287.º, n.º 1, al. a), do CPP. Bruno pretende requerer a abertura da instrução para que seja determinada a suspensão provisória do processo relativamente ao crime de violência doméstica. Trata-se de saber se o RAI pode ser utilizado para pedir apenas a suspensão provisória do processo (art. 281.º do CPP). É verdade que existe uma divergência doutrinária sobre se é permitido ao arguido usar o RAI só para discutir questões-de-direito ou para discutir algo mais do que os factos constantes da acusação do MP (art. 287.º, n.º 1, al. a), do CPP), sendo tal possibilidade geralmente aceite quando o arguido pretenda obter um despacho de não-pronúncia. A suspensão provisória do processo integra uma medida de diversão processual que está prevista no encerramento do inquérito mas é correspondentemente aplicável ao encerramento da instrução (arts. 281.º e 307.º, n.º 2, ambos do CPP). Apesar de ser discutível a qualificação do crime de violência doméstica, previsto no art. 152.º do CP, como tratando-se de uma bagatela penal (ou crime de pequena ou média gravidade) a que seja aplicável uma medida de diversão processual, é o próprio n.º 7 do art. 281.º do CPP que lhe faz referência, pelo 3

que seria admissível a suspensão provisória do processo no caso de crime de violência doméstica. Não obstante ser controvertido, parece de admitir que o arguido tenha legitimidade para deduzir RAI mesmo que exclusivamente para requerer a suspensão provisória do processo, até porque a instrução deve ser entendida como uma fase de garantias do arguido, e por isso com os menores limites possíveis de acesso à mesma por parte deste, aliás tal como perspectivada a instrução pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87. Deveria ainda referir-se que, além da legitimidade, teriam de mostrar-se cumpridos os demais requisitos: tempestividade (20 dias após a notificação da acusação 287.º, n.º 1, al. a), do CPP); representação por defensor (nomeado ou mandatário judicial constituído) e pagamento da taxa de justiça (art. 519.º do CPP) ou apoio judiciário adequado. 3. A resposta é negativa. O tribunal não poderia condenar Bruno pelo crime de devassa da vida privada (art. 192.º do CP). Os factos (acontecimento histórico ou pedaço da vida destacado e submetido a apreciação judicial, que no caso concreto se tratava da impressão de fotografias e divulgação no facebook) respeitantes ao crime referido são novos no processo, pois surgem apenas no julgamento. Parecem enquadrar-se, todavia, no mesmo quadro de violência exercida por Bruno contra Ana que constitui objecto do processo, pelo que não são (totalmente) independentes deste. Esta é uma alteração substancial de factos nos termos do art. 1.º, al. f), do CPP, desde logo segundo o critério do agravamento do limite máximo da pena (por aplicação das regras da punição do concurso efectivo: art. 77.º do CP). Também o critério do crime diverso conduz à mesma solução, já que não apenas o tipo legal é outro, como esta ofensa, atendendo a factores como a diversidade do bem jurídico atingido ou a publicidade do acto em causa (por contraposição ao âmbito privado em que as outras ofensas terão sido praticadas), constitui um acontecimento histórico diferente. Haverá também provavelmente uma agravação da estratégia de defesa do arguido. Havendo acordo do arguido, Ministério Público e assistente, poderia, em princípio, ser tido em conta este novo facto pelo tribunal. Pressupondo, todavia, que não se verificava qualquer das agravantes previstas no art. 152.º, n.º 3, do CP, o tribunal onde o processo decorreria era 4

o singular competente nos termos do art. 16.º, n.º 2, al. b), do CPP. Em consequência das regras de punição do concurso efectivo, por efeito deste acordo, passaria a ser competente o tribunal colectivo, como resulta dos arts. 14.º, n.º 2, al. b), e 15.º, do CPP. Assim, o tribunal singular deveria declarar-se incompetente, nos termos do art. 32.º, e proceder conforme disposto no art. 33.º do CPP. Não havendo acordo, teria de se analisar se os factos são autonomizáveis. A resposta é positiva, pois não parece que a consideração destes novos factos num processo à parte implique uma dupla valoração de factos já constantes do processo inicial (art. 29.º, n.º 5, da CRP). Embora respeitante ao pedaço de vida objecto deste processo, a nova ofensa é um acontecimento histórico separável dele. Assim sendo, a comunicação dos novos factos ao Ministério Público deve valer como denúncia para que seja aberto outro processo com base apenas nesses factos, como dispõe o art. 359.º, n.º 2, do CPP. Contudo, e antes de tudo, seria necessário verificar se tinha sido apresentada queixa por parte de Ana em devido tempo (6 meses após ter tomado conhecimento dos factos de devassa, nos termos do art. 115.º do CP), dado que o crime de devassa da vida privada é semipúblico, conforme resulta da aplicação conjugada das normas constantes dos arts. 192.º, 198.º, 113.º, n.º 1, e 115.º, todos do CP, bem como do art. 49.º do CPP. Não tendo havido queixa, em tempo, por quem tinha legitimidade para tal no caso, Ana, na qualidade de ofendida (independentemente da concepção que se adopte sobre o conceito de ofendido: ampla, restrita ou restrita alargada), os factos relativos à devassa da vida privada não conduziriam sequer à abertura de inquérito por falta da necessária condição de procedibilidade, nos termos dos arts. 49.º e 262.º, n.º 2, ambos do CPP. Se o tribunal condenasse Bruno pelo crime de devassa da vida privada no âmbito deste processo, não existindo o acordo e no caso de ter sido apresentada queixa, como referido supra, o acórdão seria nulo nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, nulidade dependente de arguição (sob pena de sanação), constituindo fundamento de recurso ordinário (que deveria ser interposto no prazo de 30 dias, nos termos dos arts. 399.º, 410.º, n.º 3 e 411.º, n.º 1, todos do CPP). 5

4. É discutível se as gravações áudio e vídeo efectuadas por Ana poderiam ser utilizadas como prova válida no processo e, assim sendo, seria discutível a validade da confissão efectuada por Bruno em virtude da problemática do efeito-à-distância das proibições de prova. Em princípio, todas as provas que não forem proibidas por lei são admissíveis (art. 125.º do CPP). Porém, tal não pode significar que sejam permitidos meios de prova que violem os regimes legalmente previstos e regulamentados (i.e., os meios de prova típicos). Ora, o art. 167.º, n.º 1, do CPP, em sede de prova documental, dispõe apenas que as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico só valem como prova se não forem ilícitas nos termos da lei penal. Ou seja, a sua utilização e valoração como prova fica dependente de não serem consideradas ilícitas, enquanto devassa da vida privada, nos termos do art. 192.º, n.º 2, do CP. E, quanto aos meios de obtenção de prova, também são de respeitar os regimes legalmente previstos e regulamentados. Desta feita, o próprio CPP não prevê qualquer método de obtenção de prova através da recolha de imagem (nem mesmo a extensão prevista no art. 189.º do CPP pode aqui ser aproveitada, pois está limitada ao meio áudio da interceptação telefónica). No caso em apreço, em princípio não poderiam ser usadas nem valoradas as gravações por integrarem a prática de crime. Contudo, já se tem defendido que nalguns crimes, por manifesta quase impossibilidade de prova do crime por outros meios (lícitos), e atendendo à ponderação de interesses, prevaleça o direito da vítima poder fazer prova do crime de que é alvo, configurando assim uma espécie de estado de necessidade, no caso, probatório. Neste caso, ou se considera que a prova foi obtida licitamente ou, ainda que ilicitamente, no limite, se admite a valoração da prova ilícita no processo-crime por ser a única forma da vítima evidenciar o crime que sofreu. Partindo do pressuposto de que se trata de uma proibição de prova e que não houve consentimento, poderia ser arguida a nulidade da prova obtida, caso fossem utilizadas ou valoradas as gravações, ex vi art. 32.º, n.º 8, da CRP e arts. 118.º, n.º 3, 126.º, n. os 1 e 3, ambos do CPP. E, ainda que a nulidade não fosse arguida ou conhecida antes do trânsito em julgado da deci- 6

são final, seria possível interpor recurso de revisão da sentença que se fundamentasse na valoração de prova nula (art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP). A nulidade e a inadmissibilidade de valoração da prova obtida compreendem as provas secundárias, mediatas ou indirectas, a menos que se verifique uma das excepções que costumam ser apontadas ao chamado efeito-à-distância das proibições de prova, nomeadamente as excepções da fonte independente, da descoberta inevitável, da conexão atenuada ou do comportamento lícito alternativo (art. 32.º, n.º 8, da CRP e art. 122.º do CPP). No caso em apreço, atendendo à circunstância de a confissão ter sido realizada pelo arguido, em princípio, de forma voluntária, livre e esclarecida e também ao facto de se ter verificado um hiato temporal relevante entre a junção das gravações e a realização da confissão, seria difícil sustentar que a ilicitude das gravações juntas aos autos no inquérito (a invalidade da prova primária) teria afectado ou colocado em causa a validade da confissão realizada por Bruno no julgamento (ou seja, não determinaria a invalidade da prova secundária), podendo convocar-se em abono desta posição o entendimento já sustentado pela jurisprudência constitucional em situações análogas (Acórdão do TC n.º 198/2004, de 24 de Março de 2004, e Decisão Sumária do TC n.º 13/2008, de 11 de Janeiro de 2008). 7