A ANÁLISE ESPECTROGRÁFICA COMO FERRAMENTA DIDÁTICA

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Transcrição:

A ANÁLISE ESPECTROGRÁFICA COMO FERRAMENTA DIDÁTICA Prof. Maurício Freire Garcia mgarcia@ufmg.br Universidade Federal de Minas Gerais Resumo O presente trabalho trata do uso da análise espectrográfica como ferramenta didática. Após um pequeno histórico da técnica, descrevemos algumas experiências feitas em disciplinas na Escola de Música da UFMG. O texto contém gráficos espectrais e análises dos diferentes experimentos. Palavras-chave: Análise Espectrográfica, Didática, Música e Tecnologia Abstract This paper deals with the pedagogical use of spectrographic analyses. After a short history of the technique, I describe some experiments made in courses at UFMG s Music School. The text contains spectrographs e analysis of the different experiments. O século XX foi palco de um aumento exponencial da a interface entre a música e a tecnologia. Os conhecimentos da acústica física e da psicoacústica, desenvolvidos inicialmente por Hermann Helmholtz, começaram a influenciar compositores e construtores de instrumentos. Novas tecnologias, especialmente a eletrônica e a informática aplicadas à música, abriram um novo universo de possibilidades. A análise espectrográfica é uma destas novas possibilidades. No início da década de 60, a IBM iniciou suas primeiras pesquisas para a construção de sistemas de reconhecimento da voz. No intuito de aprimorar e explorar as diferentes possibilidades desta nova tecnologia, dez anos mais tarde a empresa procurou diferentes universidades americanas para testarem seu uso na pesquisa nas áreas de fonética, física e música, entre outras. Esta tecnologia, baseada na análise espectral, permitiu ao Prof. Robert Cogan, no New England Conservatory de Boston, as primeiras experiências com análise espectrográfica aplicada à música. Cogan escreveu vários trabalhos e abriu um novo campo para a análise musical. ANPPOM Décimo Quinto Congresso/2005 1028

Uma grande dificuldades enfrentadas na didática musical se refere no uso de terminologias referentes, por exemplo, à qualidade sonora. Não é raro ouvirmos definições como som escuro, claro, brilhante, metálico, fosco, opaco, que fora de um contexto local e subjetivo, nada significam. A análise espectrográfica permite um estudo objetivo do som, a- través de uma abordagem conceitualmente clara ao lidar com parâmetros físicos e psicoacústicos. Além disso, uma série de possibilidades e soluções técnicas nos instrumentos e na voz podem ser abordadas também de forma objetiva. Aqui o espectrograma se apresenta como uma ferramenta única na didática e no aprimoramento da performance. Portanto venho explorando, ainda de forma incipiente, dada às imensas possibilidades da técnica, o uso dos espectrogramas na sala de aula. Os primeiros resultados são muito animadores. Na Disciplina Acústica e Música do mestrado da Escola de Música, tenho utilizado com enorme sucesso a análise espectrográfica. Vários conceitos e fenômenos acústicos, como série harmônica, timbre, batimentos podem ser facilmente visualizados, tornando o aprendizado mais efetivo. A possibilidades de visualização em tempo real de experimentos práticos, torna a aula mais dinâmica, permitindo uma maior interação do estudante. Os alunos têm desenvolvido trabalhos diversos utilizando esta técnica, abrangendo tanto aspectos técnicos como interpretativos. Abaixo apresento três exemplos do uso da técnica no estudo da clarineta, do spiccato na Viola e do uso de diferentes vogais na sonoridade da flauta. Nos espectrogramas que analisaremos abaixo, o eixo vertical representa a freqüência, o vertical o tempo e as cores a intensidade (do azul ao vermelho). Os som longos, portanto, aparecem como linhas, com seus respectivos harmônicos acima. Os ruídos aparecem com linhas verticais, de diferentes comprimentos, como podemos notar principalmente no segundo gráfico da viola. As amostras foram gravadas no estúdio da Escola de Música da UFMG para garantir um nível mínimo de ruídos ambientais e controle acústico. Este procedimento é essencial para a análise espectrográfica, pois sem o controle do processo de captação/gravação é impossível analisar comparativamente os resultados, uma vês que uma pequena diferença de posicionamento de microfones ou calibragem da mesa de som, podem gerar resultados espectrais totalmente deferentes. O programa foi mantido inalterado, com a mesma calibragem. No primeiro exemplo, tratamos da clarineta. A clarineta e sua família são os únicos instrumentos no naipe de madeiras de uma orquestra que funciona como um tubo fechado. Isto significa que alguns harmônicos (os ímpares) não estão presentes em seu espectro so- ANPPOM Décimo Quinto Congresso/2005 1029

noro. Entretanto, ao contrário do que comumente se fala sobre as características sonoras do instrumento, isto só é verdadeiro em seu primeiro registro. No segundo registro, a clarineta já apresenta também os harmônicos ímpares, como uma flauta, por exemplo. Como podemos ver no espectrograma, a partir do 12º som a estrutura espectral muda radicalmente, com a introdução dos novos harmônicos. Esta característica causa uma grande dificuldade para os clarinetistas conseguirem uma passagem homogenia entre os registros. A possibilidade de visualizar exatamente o que acontece acusticamente, ajuda na compreensão do fenômeno e na busca de soluções para o problema. O aluno tocou uma escala de Fá maior em duas oitavas Mudança de registro Ilustração 1: Espectrograma de uma escala de Fá maior na clarineta abrangendo fá 2 ao sib 4 O caso seguinte é resultado da investigação de um aluno de viola sobre as diferentes possibilidade de execução do spiccato. Ele e seu professor não estavam satisfeitos com o seu golpe de arco. Paralelamente às aulas do instrumento, ele, que no então cursava a disciplina Acústica e Música, decidiu utilizar a técnica para auxilia-lo no processo. O aluno variou o local da corda onde o arco se posiciona, a posição e o ângulo do arco. Como podemos notar nos espectrogramas abaixo, cada opção gera um resultado espectral diverso, apresentando diferentes níveis de ruído (linhas verticais que aparecem nos gráficos) e riqueza espectral (quantidade e intensidade dos harmônicos presentes). Foram gravadas nove amostras com opções de arcadas diferentes. Abaixo podemos ver a análise espectrográfica de duas dessas opções. A primeira imagem retrata o spiccato feito no meio do arco e com a crina inclinada. A segunda o spiccato feito no meio do arco, mas com a ANPPOM Décimo Quinto Congresso/2005 1030

crina plana. Podemos notar que, entre estes dois exemplos, o primeiro apresenta menos ruídos e harmônicos mais homogêneos. A partir desta análise e de conversas com seu professor, ele pode tomar uma decisão sobre a melhor arcada a utilizar. 1-2 - Ilustração 2: Dois gráficos espectrais de spiccato na viola: 1 meio do arco e crina inclinada e 2- meio do arco e crina plana. O próximo exemplo trata da flauta transversal. A aluna, que já utilizava a ressonância das diferentes vogais para variar a sonoridade da flauta, queria investigar o que realmente acontecia como som. Na realidade, apesar de auditivamente ser clara a diferença, o procedimento ainda carecia de validação objetiva. Foram gravadas diversas amostras com as diversas vogais na mesma nota (sol 3). Como podemos notar claramente, o espectro sonoro varia a cada amostra, mostrando que efetivamente há uma influência na empostação de cada vogal e a sonoridade da flauta. Esse primeiro trabalho, que foi realizado por uma aluna de graduação, abriu caminho para um projeto de pesquisa bem mais amplo. Já tenho dois orientandos de mestrado que estão trabalhando com este aspecto. Um pesquisando a influência das vogais nos diferentes registros do instrumento. A outra está, juntamente com um especialista na fala, investigando a relação do espectro e formantes de cada vogal e sua influência na flauta. Em ambos os casos a análise espectrográfica é uma ferramenta central no projeto. ANPPOM Décimo Quinto Congresso/2005 1031

1 2 Ilustração 3 Dois espectrogramas da nota sol 3 tocada na flauta com as vogais ô, ó (1) e u, ê e i. Como podemos notar, a análise espectrográfica apresenta uma vasta gama de possíveis aplicações no ensino musical. Acredito que, dado á recente incorporação dessa tecnologia à didática musical, estamos ainda no início desta exploração. Entretanto, dado aos resultados promissores, acredito que no futuro poderemos expandir suas aplicações e alcançar objetivos ainda inimaginados. Bibliografia COGAN, Robert. New Images of Musical Sound. Cambridge: Publication Contact International, 1998. ANPPOM Décimo Quinto Congresso/2005 1032