PSP e GNR detêm média de 200 pessoas por mês por desobediência. Os 'desobedientes' portugueses são, na esmagadora maioria, homens. Recusam acatar as ordens das autoridades, quase sempre depois de infrações na estrada. Mais de três mil processos por ano são julgados nos tribunais de 1.ª instância Dois autarcas estiveram na primeira linha dos noticiários por terem desobedecido às autoridades, o que é crime previsto e punido pelo Código Penal. Michael António, vereador da Câmara do Pombal, recusou fazer o teste do álcool numa operação stop da GNR em agosto do ano passado e acabou detido. O outro foi Hugo Martins, vereador da Câmara de Odivelas, que também se negou a fazer o teste de alcoolemia e ainda terá agredido um dos militares da GNR no início de setembro de 2012. Estes foram apenas dois dos 1139 detidos pelo crime de desobediência pela GNR em 2012, o que, a somar aos 1211 detidos pela PSP no mesmo ano, dá uma média de quase 200 detidos por mês, em Portugal, por este crime. Por dia, são seis os detidos por se recusarem a acatar as ordens das autoridades, a esmagadora maioria deles homens (ver quadro). Os "desobedientes" são, quase sempre, infratores graves ao Código da Estrada. "Não conseguindo identificar claramente e em termos percentuais os motivos da desobediência, a análise transversal dos processos indicam-nos que a grande maioria das detenções por desobediência ocorrem por motivos ligados a crimes rodoviários", analisa o comissário Paulo Flor, porta-voz da Direção Nacional da PSP. Também o major Gonçalo Carvalho, porta-voz do Comando Nacional da GNR, fala de uma "perceção de um crime associado sobretudo a infrações rodoviárias". Tribunais cheios de processos Nos últimos quatro anos, a média de processos-crime por desobediência na fase de julgamento findos nos tribunais de primeira instância tem sido superior a três mil. Um número que surpreende o presidente do conselho distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Vasco Marques Correia. "Não tinha a perceção de que havia tantos processos por desobediência nem que muitos estariam associados a crimes rodoviários", referiu o advogado, que representa um dos arguidos detidos por desobediência na manifestação de 14 de novembro (ver texto secundário). 1 / 5
Para o presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP), José Manuel Trigoso, "a desobediência às autoridades assim como as infrações ao Código da Estrada são transversais a todas as classes sociais ou profissionais". Na ótica do dirigente da PRP, há três infrações muito graves a nível de crimes rodoviários que podem potenciar a desobediência às forças de segurança: "A condução sem carta, a condução com excesso de velocidade e a condução com álcool a mais." Rebeldes sem carta vão presos José Manuel Trigoso soube recentemente que "há muitos casos de prisão efetiva para pessoas que foram apanhadas várias vezes a conduzir sem carta". Como o risco é grande, a tentação da desobediência também. O Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (IMTT) "está a estudar a forma de ministrar formação nas cadeias aos condutores sem carta". Nesse comportamento inscreve-se Cristina A., condenada a um ano de prisão em 2009 pelo Tribunal de Coimbra por ter sido apanhada 37 vezes pelas autoridades a conduzir sem carta. Nos antecedentes criminais desta condutora consta, entre outros, o crime de desobediência. Desobediente foi também aquele condutor que, na noite de 28 de dezembro, foi apanhado duas vezes pela PSP por conduzir com álcool, em Portimão. Levado para a esquadra, rasgou as notificações para ir a tribunal. Acabou detido e constituído arguido. Também no crime de violência doméstica se tem verificado a desobediência. Aumento do conflito social leva a desobediência civil Fenómeno A manifestação de 14 de novembro foi um marco no confronto com as autoridades. Até onde pode ir a insatisfação coletiva? Na noite de 14 de novembro de 2012, depois de mais de uma hora a levar com uma chuva de pedras da calçada, o Corpo de Intervenção da PSP deu ordem aos manifestantes para 2 / 5
evacuarem a praça frente às escadarias do Parlamento, em Lisboa. Largas dezenas desobedeceram. Seguiu-se a carga policial, os detidos e os identificados. Nove detidos logo nessa noite, suspeitos dos crimes de desobediência e resistência e coação a agentes da autoridade, 28 identificados e constituídos arguidos depois de visionadas imagens da manifestação, pelos crimes de agressão à polícia e participação em motim. A desobediência civil parece poder instalar-se. Vasco Marques Correia, advogado de um dos arguidos do 14 de novembro, entende que "não se pode comparar o que se passa nestas manifestações com o que aconteceu na década de 60 em protestos contra a ditadura, são circunstâncias muito diferentes". Entende, no entanto, que "é notório um aumento da conflitualidade social devido à crise". Por consequência, "os crime de resistência e coação a funcionário e desobediência, neste contexto, têm vindo a subir". Sem querer comentar pormenores das detenções da manifestação de 14 de novembro, por o processo correr os seus termos no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, Vasco Marques Correia sublinha apenas que "para configurar o crime de desobediência tem de se estar perante uma ordem legítima da autoridade, audível e percecionada por todos". O advogado tem "dúvidas" de que a ordem para dispersar dada pelo Corpo de Intervenção da PSP na noite de 14 de novembro tenha sido "percecionada por todos". Vasco Marques Correia considera também que "naquele dia quem tinha poderes de comando agiu mal. Assistiu-se a um corpo de polícia a ser apedrejado durante mais de hora e meia quando a situação podia ter sido contida antes". Afinal, sublinha, em jeito de conclusão, "os polícias também têm direitos". TUMULTOS DIAP de Lisboa abriu sete inquéritos-crime O Ministério Público instaurou sete inquéritos na sequência dos tumultos ocorridos na manifestação de 14 de novembro e após queixa da PSP por resistência e coação contra a autoridade e motim, informou o DIAP de Lisboa a 20 de dezembro passado. Os inquéritos implicam a recolha de prova e a convocatória de arguidos e de testemunhas esclarece que não há processos "contra pessoas por participarem na manifestação", mas, sim, inquéritos com "a denúncia da prática dos crimes indicados, designadamente o crime de motim". A denúncia foi feita pela PSP. 3 / 5
"Desobedecer é uma questão cultural" - Qual é, na sua opinião, a causa que pode explicar que tenhamos uma média superior a três mil processos-crime por desobediência, por ano, julgados nos tribunais de primeira instância? - Da realidade que conheço, a prática do crime de desobediência é claramente uma questão cultural. Os portugueses respeitam pouco os tribunais e as forças de segurança. Nas pessoas com menos literária a prática do crime de desobediência tende a ser mais elevada. - Considera necessário aumentar a moldura penal deste crime? - Julgo que não. Sou um pouco avesso ao aumento das penas como solução. O que é preciso é garantir a efetividade das penas e o seu cumprimento e que aconteça logo a seguir à realização do crime. Pode ser uma pena pequena, tem é de ser cumprida de imediato. - A atual reforma penal prevê que estes crimes passem a ser julgados em processo sumário. É uma melhoria? - Sim, é verdade que a maior parte dos crimes vão passar a ser julgados em processo sumário, o que pode ser útil, mas isso não resolve o problema da aplicação da pena. Esse problema é independente da lei e da reforma penal. Tem antes que ver com burocracias que acabam por dilatar a aplicação da pena. Devia-se encontrar uma forma de agilizar isso. - A pena de prisão é a melhor lição para um "desobediente" ou nem por isso? - Considero que a pena de prisão para estes casos só deve ser aplicada quando nenhuma das outras o puder ser, como seja a multa ou o trabalho comunitário. Mais uma vez, as outras penas podem ser eficazes desde que imediatamente aplicadas e executadas. - O trabalho comunitário tem vindo a ser aplicado nestes crimes menores? - No crime de desobediência tem sido aplicada a multa mas também o trabalho comunitário. Há também a solução da pena de prisão por dias livres que tem vindo a ser fixada. Rute Coelho Diário de Notícias 21-01-2013 4 / 5
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