DIREITO, COSTUME E O INFANTICÍDIO INDÍGENA: UMA ABORDAGEM SOB A ÓPTICA DE GUSTAV RADBRUCH



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Transcrição:

DIREITO, COSTUME E O INFANTICÍDIO INDÍGENA: UMA ABORDAGEM SOB A ÓPTICA DE GUSTAV RADBRUCH LAW, CUSTOM AND INDIGENOUS INFANTICIDE: AN APPROACH IN THE OPTICAL GUSTAV RADBRUCH Camila Antunes Notaro 1 RESUMO: A Constituição de 1988 consagrou vários direitos aos indígenas, nas, dentre eles, o direito aos costumes. Tendo em vista que por ela também foram assegurados direitos e garantias fundamentais, como direito à vida e à igualdade, o infanticídio indígena praticado em algumas tribos brasileiras coloca-se no centro da discussão quando do cotejo entre o direito positivado e o costume praticado. O presente artigo pretende discutir os conceitos de direito e costume, de acordo com Gustav Radbruch, para, com supedâneo no entendimento desse autor, possa-se analisar a questão sob a óptica daquele autor. ABSTRACT: The 1988 Constitution enshrined several indigenous rights, including the right to customs. Considering that for her were also secured rights and guarantees such as the right to life and equality, Indian infanticide practiced in some Brazilian tribes places in the center of the discussion when the comparison between the right and positivado custom practiced. This article discusses the concepts of law and custom, according to Gustav Radbruch, for, with footstool in the understanding that the author, can be analyzed the issue from the perspective of that author. PALAVRAS-CHAVES: : Infanticídio; Cultura, Direito KEY-WORDS: : Infanticide; Culture, Law. INTRODUÇÃO Dentro da concepção da filosofia prática de Immanuel Kant (1724-1804), que concebe o homem como um ser autônomo e livre, podendo agir segundo suas próprias convicções, o direito surge como faculdade de coagir, para que o homem cumpra os deveres da ética. A partir dos ensinamentos de Kant, o filófoso alemão Gustav Radbruch, que ora apresentamos como marco teórico do presente artigo, constrói sua filosofia do direito, trazendo-nos nos seus conceitos de cultura, direito e moral. 1 Mestre em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais CEFET/MG. Mestranda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Ex- Professora assistente de Direito Constitucional I do Centro Universitário Newton Paiva. Professora convidada nos cursos de pós-graduação da Fundação João Pinheiro-Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho. Ex-Procuradora-chefe chefe da Agência Reguladora dos Serviços de Abastecimento e Saneamento do Estado de Minas Gerais ARSAE-MG. Assessora Jurídica-Chefe da Secretaria de Esportes do Estado de Minas Gerais. E-mail: camilaantuneshob@yahoo.com.br.

A positivação dos direitos fundamentais pela Constituição da República de 1988 traz como consequência lógica a aplicação concomitante de todos eles. Tendo matizes variadas e protegendo direitos distintos, não é de se surpreender que eles por diversas vezes, entrem em aparente conflito. Dentre as diversas tribos indígenas remanescentes no território brasileiro, muitas delas ainda praticam costumes herdados de seus antepassados, não raro serem esses costumes vedados pelo direito brasileiro, como o que se enfocará aqui, o infanticídio. Assim, a questão que se apresenta é como conciliar o que está positivado pelo direito e o que é praticado pelas tribos indígenas, ressaltando que a Carta Magna garantiu aos indígenas, dentre outros, o direito aos costumes. Partindo-se, então, das lições de Radbruch, é que se objetivará alcançar algumas respostas a esses questionamentos, a partir da visão do mencionado autor. 1. DIREITO E MORAL A filosofia prática de Immanuel Kant (1724-1804) 1804) consiste no estudo do agir humano no tocante à liberdade, definindo o homem como um ser livre e autônomo, e por isso, digno. Isso significa que, embora o homem, sendo ser racional, saiba definir quais as ações são boas em si mesmas e, ainda que racionalmente suas condutas devam ser boas, ele tem autonomia para agir de acordo com a sua consciência. Autonomia de agir significa ser o homem dotado de liberdade, ou seja, liberdade para agir segundo suas convicções. E a vontade será a de agir de uma maneira correta, boa, toda vez que o homem utilizar-se de uma razão pura. As máximas da liberdade (ou leis universais da Ética) são aquelas leis que encerram as máximas universais, o que significa dizer que são as máximas que ditam quais as condutas que encerram as ações boas em si (leis ditadas pela razão), cuja observação e cumprimento devem ocorrer de maneira universal. Sobre essas leis ditadas pela razão, Salgado esclarece que: A razão prática e a que não se preocupa simplesmente em traduzir as leis, segundo as leis, segundo as quais um ser racional ou dotado de liberdade (razão e espontaneidade, liberdade) deve agir. Vale dizer, a razão pratica e a faculdade que temos de agir por princípios ou máximas, as quais, somente, tornam possível uma ação entendida como um acontecimento que tem origem na vontade. Dizer que o homem tem vontade e dizer que ele pode representar-se uma lei e agir de acordo com ela. Essa faculdade de determinas-se se na ação segundo a representação de certas leis, ou seja, segundo máximas e a que Kant chama razão prática ou vontade. A razão teórica detecta as leis segundo as quais os objetos da natureza se relacionam.

A razão pratica ou vontade representa, a si, leis, segundo as quais o ser racional deve agir. (SALGADO, 1995, pp. 130-131). Entretanto, o homem não pertence só ao mundo inteligível, mas também ao sensível, de forma que suas ações não podem ser sempre pautadas pela razão. As inclinações do mundo sensível afetam a razão e acabam impedindo o homem de discernir o bem do mal, o certo do errado. Assim, para que o homem cumpra os princípios da Ética, faz-se necessário o uso da força, ou seja, a coação e é aqui que entra o Direito. Gomes explicitando o pensamento de Kant: Kant defende o direito como faculdade de coagir, argumentando que a resistência que se opõe ao que obsta um efeito fomenta esse efeito e concorda com ele. Tudo que é contrário rio ao direito é um obstáculo à liberdade segundo leis universais;mas a coação é uma coação ou resistência ou um obstáculo à liberdade. Se um determinado uso da liberdade é um obstáculo à liberdade segundo leis universais (quer dizer, contrário ao direito), então a coação que a esse uso se opõe, à medida que é um obstáculo àquilo que obsta à liberdade segundo leis universais, é então conforme à liberdade. Para Kant, ao direito está unida a faculdade de coagir aquele que o viola, segundo o princípio de contradição:(...) (GOMES,2000, pp.70-71). O direito tem como condição formal a liberdade externa uma vez que o homem deve realizar sua liberdade na legalidade, isto é, na concordância da ação externa com a lei (HERRERO, 1991, p.111). Assim, para que possa ser verdadeiramente livre, o homem deve coordenar suas ações de acordo com a lei externa, cumprindo, assim também, os seus deveres morais. 2. DIREITO E COSTUME Analisando a relação entre direito e costume, Radbruch (2010), afirma ser impossível realizar uma delimitação entre eles uma vez que, o costume não pode se vincular a outros conceitos de valor, dependendo de um lugar específico nos conceitos culturais. Para ele: Os conceitos culturais referidos a um valor só podem definir-se com a com a ajuda da idéia de valor em que se orientam. Desse modo, consideramos a moral como a realidade cujo sentido é o de desenvolver a idéia do bom, e o direito como a realidade cujo sentido é o de servir à justiça. Mas uma idéia de valor, na qual o costume pudesse orientar-se, não é encontrável, e, assim, fracassa a comensurabilidade do direito e da moral, por um lado, com o costume, por outro. (RADBRUCH, 2010, p.72).

O mencionado filósofo alemão explica que o costume é a plataforma comum, na qual o direito e a moral ainda se conservam não-desenvolvidos e inseparáveis(...) (RADBRUCH, 2010, p.72). Entre os costumes praticados por algumas tribos indígenas brasileiras está o infanticídio de recém-nascidos. Saulo Ferreira Feitosa, Carla Rúbia Florêncio Tardivo e Samuel José de Carvalho, na monografia Bioética, cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras: o caso Suruwahá", apresentam três causas principais para o infanticídio culturalmente praticado em aldeias brasileiras. As razões podem ser agrupadas em torno de três critérios gerais: a incapacidade da mãe em dedicar atenção e os cuidados necessários a mais um filho; o fato do recémnascido estar apto ou não a sobreviver naquele ambiente físico e sóciocultural onde nasceu; aq crença de que a tribo seria amaldiçoada com a permanência daquela criança. (2006, p. 05). Assim, são mortas ao nascer ou ainda na primeira infância, crianças com defeitos físicos, mentais, filhas de mães solteiras ou cujos pais se separaram antes do nascimento. A etnia Suruwahá, por exemplo, localiza-se na bacia do rio Purus, sudoeste do Amazonas e conta com aproximadamente 144 membros. Para os Suruwahá, como para a maioria das etnias indígenas, a coletividade é importantíssima no que tange às decisões, escolhas e acontecimentos mais corriqueiros da vida. O coletivo está acima do individual. O nascimento de uma criança, por exemplo, é algo que interessa a todos os membros da tribo. Os problemas são compartilhados por todos, assim como as alegrias. Por isso, o nascimento de crianças nas condições relatadas é uma questão de toda a tribo indígena, não só dos pais e dos parentes. Entre os Suruwahá, o nascimento de uma criança que apresenta alguma anomalia física, bem como o de filhos considerados ilegítimos e o de gêmeos, é considerado uma maldição e uma ameaça ao bem-estar estar de toda a tribo. Assim, há a prática do infanticídio entre eles quando ocorre um caso desse tipo. O primeiro tipo de infanticídio apontado por Feitosa, Tardivo e Carvalho é ligado ao cuidado do a ser dispendido pelas mães, responsáveis por tarefas tanto fora como dentro da casa e pelo cuidado dos filhos. No caso de nascimento de gêmeos ou de duas crianças próximas, segundo os autores, o cuidado seria dificultado e por isso essas crianças seriam sacrificadas.

Entre os índios, é costume milenar essa prática, que decide se aquele ente poderá ou não fazer parte do grupo. Logo, o infanticídio, para eles, não é visto como uma violência, mas como um ritual de não-aceitação daquela criança na tribo. A seu turno, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe, em seu artigo 231: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Como se vê, a Carta Magna assegurou aos índios, dentre outros direitos, o direito aos costumes. Lado outro, o artigo 5º da Constituição assevera que: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) Lado outro, prevê o artigo 123 do Código Penal, pena de detenção de dois a seis anos, para quem matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho durante o parto ou logo após. Assim, como conciliar o conflito entre o que está positivado pelo direito brasileiro e aquilo que é cultivado pelo costume indígena? Sendo todos iguais perante a lei, não deveriam ser os praticantes do infanticídio de crianças indígenas denunciados, processados e julgados pelo crime previsto no artigo 123 do Código Penal? E o direito à vida dessas crianças, não deveria ser assegurado pelo Estado brasileiro? Radbruch ensina que o costume compreende tanto a exterioridade jurídica quanto a interioridade da moral: Por um lado, o costume participa da exterioridade do direito: interessa-se apenas pela conduta externa, compromete-se sempre em função de um interesse de um espectador, de alguém que é autorizado, aproxima-se dos destinatários de fora com os seus mandamentos, e se satisfaz quando estes são cumpridos,quaisquer que sejam as motivações. Mas ele também tem a pretensão da interioridade da moral: não se interessa pelo simples aperto de mão, mas na participação que o gesto testemunha; não só exige dos outros- mas também se obriga a preservar o decoro; a nossa consciência social, e não o manual de boas maneiras, é que nos impõe as nossas obrigações sociais ; somente quem respeita o costume é um gentleman e quem dele apenas participa exteriormente é um parvenu(...) ( RADBRUCH, 2010, p.73).

Para ele, é por reunir a força da obrigatoriedade externa com a da interna que o costume é muito mais poderoso que a moral e o direito. Não é a moralidade que governa o mundo, mas uma forma mais enrijecida dela: o costume (Berthold Auerbach, apud Gustav Radbruch, 2010). De acordo com o filósofo alemão, na sociedade ainda existem inúmeros fragmentos de comunidade, camadas populares e povos primitivos, nos quais o costume ainda conserva intacta a sua unidade e nos quais ainda pode exercer a sua obra educativa (RADBRUCH, 2010, p.75). Aqui, pode-se fazer um paralelo com o costume indígena do infanticídio de crianças deficientes, como forma de manter unida a tribo pela preservação do referido costume. De acordo com Radbruch (2010) o costume acaba sendo transformado em moral e depois em direito, já que na própria educação individual a moral aparece primeiramente na forma de costume: (...) nenhuma educação pode, em seu início, prescindir da norma categórica: Isto não se faz - que significa, pois, a referência ao costume. Esta função que o costume ainda cumpre na atualidade não invalida a constatação anterior de que ele não está sistematicamente situado ao lado do direito e da moral, mas sim previamente ordenado em termos históricos-tal tal como o machado de pedra e o dardo, ainda hoje em uso, no conhecimento sistemático das armas, só podem aparecer na introdução histórica. (RADBRUCH, 201, p.76). O direito, para Radbruch, tem a moral como seu fim. Ele serve à moral não por meio dos deveres jurídicos que impõe, mas pelos que consente. Ele dirige-se para a moral não pelo seu lado dos deveres, mas pelo dos direitos. Outorga direitos aos indivíduos para que, com isso, possam cumprir melhor os seus deveres morais (RADBRUCH, 2010, p.68). Para Kant, todos os deveres, simplesmente pelo fato de serem deveres, pertencem à ética, mas a sua legislação não está sempre contida na ética, porém fora dela para muitos deles (KANT, apud Radbruch, 2010,p.67). A moral qualifica o direito e a justiça como tarefas morais, mas deixa a fixação de seu conteúdo para uma legislação extramoral. Vê-se, assim, que o costume não caminha ao lado do direito e da moral mas sim precede-os, preparando caminho para que possam existir, como uma conseqüência lógica do primeiro.

CONCLUSÃO Dotado de autonomia para agir segundo suas convicções, o homem se pauta pela sua consciência. Entretanto, por pertencer também ao mundo sensível, suas ações não são sempre pautadas pela razão. Assim, para que o homem cumpra os princípios da Ética, faz- se necessária a coação e é assim que o papel do Direito se revela. A Constituição de 1988 ao consagrar direitos e garantias de várias ordens, trouxe alguns conflitos aparentes entre eles. O presente artigo se dispôs a discutir a, partir do fenômeno cultural do infanticídio indígena, a tensão entre o direito ao costume indígena e o direito à vida, ambos positivados e garantidos pela Carta Magna. Visto como uma expressão da cultura daquele povo e servindo como elemento de integração nas tribos onde é praticado, acaba por ir de encontro com a tipificação penal pelo direito brasileiro de tal conduta, que, entretanto, não é punida quando se trata de autores indígenas. Em que pese não haver uma diferenciação clara entre costume e direito, pode-se dizer que o destino do primeiro é se transformar no segundo, na visão de Gustav Radbruch. Para ele, ainda, o costume tem mais força que o direito e a moral, já que reúne a obrigatoriedade externa e a interna em si, além de servir como elemento integrador nos povos primitivos. Em que pese e as previsões constitucionais que resguardam o direito à vida e a igualdade de todos, há que se fazer uma diferenciação quanto ao modo de vida dessas comunidades, nas quais o costume ainda não se desmembrou em direito nem em moral, sendo a plataforma comum m a Dessa forma, pode-se afirmar que na óptica do filósofo alemão, nesse caso específico analisado, o costume se sobrepõe ao direito, pelo que não há que se falar na intervenção do Estado brasileiro a fim de punir tal conduta. Entretanto, qualquer sociedade de é capaz de implementar mudanças, inclusive as que se relacionam ao plano cultural, a fim de buscar o bem estar dos indivíduos e da coletividade. As sociedades indígenas não são diferentes. A ética da responsabilidade nos chama a atenção sobre essas questões que envolvem não só o respeito à diferença e ao diferente, mas a necessidade de estabelecer uma ponte em que o contato se dá pelo encontro e pelo diálogo. Parece que essa via pode ser vista como um dos caminhos para que esses impasses se resolvam Assim, considerando que para o autor analisado, Gustav Radbruch, o costume caminha para a transformação em direito, passando antes pela moral, pode-se sustentar que

o infanticídio indígena caminha para sua perda de força, segundo a óptica do filósofo alemão, a partir do contato entre grupos culturais o que, entretanto, não significa perda da identidade cultural de nenhum deles, já que o homem conserva sua liberdade e autonomia, mesmo que coagido pela exterioridade do direito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1998. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito.. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010. GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento de Validade do Direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. SALGADO. Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant, seu fundamento na liberdade e na igualdade. 3. Ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1995. FEITOSA, Saulo Ferreira; TARDIVO, Carla Rúbia Florêncio; CARVALHO, Samuel José de. Bioética, cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras: o caso Suruahá. [monografia]. CORNELLI, Gabriele e GARRAFA, Volnei (orientadores). UNB. Brasília, 2006. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução, baseada na edição original de 1788, com introdução e notas de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002.. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. HERRERO, Francisco Javier. Religião e história em Kant.. Tradução de José Ceschia. São Paulo: Loyola, 1991.