ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, KATER, NEVES, WOLTZENLOGEL,

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Transcrição:

6 1 Introdução Na década de 1940, escreveu-se, no Brasil, muita música de câmara atonaldodecafônica, grande parte dela utilizando a flauta. Buscando redescobrir parte desse repertório, pensou-se em estudar as peças para flauta e piano escritas por um dos maiores expoentes do grupo Música Viva, o compositor César Guerra Peixe. O grupo Música Viva nasceu no Rio de Janeiro, em 1939, por iniciativa do flautista, regente e compositor alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter e atraiu instrumentistas, compositores e críticos musicais. Aos poucos, o grupo definiu o seu posicionamento estético em torno de duas idéias: (1) a busca do novo apoiar tudo o que favorece o nascimento e crescimento do novo (Manifesto 1946 - Declaração de Princípios apud KATER, 2001, p. 63) e (2) o engajamento social acreditando no poder da música como linguagem universalmente inteligível e, portanto, na sua contribuição para a maior compreensão e união entre os povos (ibidem p. 65). Essas duas linhas justificaram, em momentos diferentes, tanto a ação do grupo e a adoção quase exclusiva da técnica dodecafônica (gerando muitas polêmicas com os nacionalistas mais tradicionais), quanto a negação do vanguardismo e o retorno ao nacionalismo por parte de alguns de seus membros, na tentativa de tornar a música mais útil e inteligível para as massas, provocando, assim, as rupturas internas que levariam à dissolução do grupo em 1952. Apesar de sua existência relativamente curta (1939 1952), o grupo Música Viva contribuiu de maneira decisiva na revisão dos problemas relacionados com o ensino da música (e especialmente da composição), com a atividade musical de grupo (incentivando a formação de conjuntos de câmara) e com a organização de concertos (NEVES, 1981, p. 90). De fato, nota-se nos compositores do Música Viva uma expressiva produção de música de câmara (pois havia muitos instrumentistas entre seus membros e, na época, as orquestras estavam nas mãos dos nacionalistas) com muitas obras escritas para flauta, que era o instrumento de Koellreutter, professor e amigo da maior parte dos compositores do grupo.

7 O Música Viva sempre se preocupou com a formação de um público crítico e pretendeu que a sua ação pudesse, de fato, incidir na vida da sociedade. Além da criação musical, outro aspecto da preocupação pedagógica do grupo foi a divulgação de obras musicais nacionais e estrangeiras de várias épocas, pouco conhecidas ou ignoradas pelo público, através de programas de rádio, concertos, edições de revista e de partituras, cursos, palestras, discussões etc. E é também nessa perspectiva, de contribuir para o conhecimento de um repertório, que este trabalho se insere, uma vez que ainda são poucas as fontes que abordam de maneira mais ampla as peças produzidas pelo Música Viva. Com esse objetivo, esta pesquisa se concentrará numa pequena parte daquela vasta produção: a obra atonal-dodecafônica para flauta e piano do compositor César Guerra Peixe. Nas fontes consultadas 1, são mencionadas duas peças para flauta e piano escritas por Guerra Peixe, enquanto fazia parte do grupo Música Viva. São elas: Música (1944) e Allegretto con moto (1945). As partituras foram obtidas na Biblioteca da Escola de Música da UFMG 2. Desde criança, Guerra Peixe (1914 1993) participara com o pai, um músico amador, dos conjuntos de choros de Petrópolis, sua cidade natal. Naquela mesma cidade, iniciou oficialmente seus estudos em 1925, na Escola de Música Santa Cecília. Mais tarde, animado com as idéias de Mário de Andrade (GUERRA PEIXE, 1971, p. 2), estudou com Newton Pádua no Rio de Janeiro e em 1944 teve contato com H. J. Koellreutter, com quem estudou, por dois anos e meio, Análise, História, Estética da Música, problemas de música para microfone, Harmonia Acústica e Técnica dos doze sons (ibidem p. 2). Passou, então, a empregar em suas composições a técnica dodecafônica, acreditando que um motivo, um acorde ou um ritmo jamais deverá ser feito exata ou 1 ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 1998. KATER, 2001. NEVES, 1981. WOLTZENLOGEL, 1982. 2 LIMA (2002, p. 200) e MALAMUT (1999, p. 25) afirmam que as partituras de Música e de Allegretto con moto foram reformuladas em 1947. Acredita-se que as cópias dos manuscritos encontradas na Biblioteca da Escola de Música da UFMG sejam das partituras reformuladas, devido à sua consistência rítmica, uma vez que, segundo Guerra Peixe, a obra produzida em 1944 e início de 1945 era pronunciadamente instável quanto ao ritmo, um ritmo excessivamente complexo (GUERRA PEIXE, 1971, p.11), razão pela qual, em 1947, o compositor decide reformular algumas das obras, em especial as que acusam maior diluição rítmica (ibidem p. 13).

8 aproximadamente duas vezes; pois toda a repetição, tal-e-qual [sic] ou semelhante, não passaria de mero primarismo (ibidem p. 11). Guerra Peixe ganhava, assim, em originalidade, mas comprometia a compreensibilidade de sua obra. Por isso, a partir de Música nº 1 (1945), para piano, o compositor começou a incorporar vários procedimentos em suas peças, visando o que ele mesmo chamava de comunicabilidade 3 (ibidem p. 13). Em seu Memorial, na seção que trata dos Principais Traços Evolutivos da [sua] Produção Musical (ibidem p. 11-22), Guerra Peixe menciona alguns desses procedimentos, tais como: elaboração de uma série construída simetricamente (ibidem p. 11), possibilitando uma realização harmônica coerente e, sobretudo, acusticamente aceitável por ouvidos menos avançados (ibidem p. 12); contornos melódicos que, conquanto ainda vagamente, sugerissem a Modinha brasileira (ibidem p. 12); centros tonais nas melodias e (...) acordes afins com a harmonia clássica (ibidem p. 12); figurações da rítmica popularesca (ibidem p. 12); e objetivação de contornos melódicos nacionalizados por meio, também, da criação de centros tonais (ibidem p. 13). No referido Memorial, Guerra Peixe não chegou a definir o que seria para ele a comunicabilidade, mas, a partir daquele relato, pode-se concluir que o termo se refere a uma preocupação do compositor com a inteligibilidade de sua música, que consistiria, principalmente, na apreensão da forma musical por parte do ouvinte, tornada possível graças a uma certa familiaridade com o material utilizado na composição (melodia, harmonia e ritmo), sem cair, contudo, numa simples repetição de modelos pré-estabelecidos 4. Nesse contexto, a palavra forma assume um sentido amplo. Trata-se não somente da estrutura formal da peça como um todo, mas também da simples definição de um argumento, de algo proposto ao ouvinte, e que depois será desenvolvido (motivos, frases ou até mesmo elementos menos palpáveis como a variação da densidade de uma determinada região); ou seja, 3 LIMA (2002, p. 203) observa que Guerra Peixe adotou determinados procedimentos composicionais na busca de uma expressão particular na técnica dos doze sons guiada, principalmente, pela intenção de comunicabilidade e aproveitamento de sugestões musicais encontradas nas manifestações nacionais. 4 Justamente para fugir dessa repetição, Guerra Peixe se interessou pela técnica dodecafônica: salvo raríssimas exceções, os compositores já se vinham repetindo de há muito. As obras tinham novos títulos mas eram repetições daquilo que haviam escrito há anos; enquanto que o folclore (...) era apontado como o responsável pelas nossas deficiências (GUERRA PEIXE, 1971, p. 12).

9 tudo aquilo que de algum modo adquire um contorno reconhecível constitui uma forma. Essa relação material/forma/inteligibilidade é documentada em várias passagens, como, por exemplo, nas seguintes: Do exagero conceitual resultam problemas insuperáveis, em especial no que tange ao ritmo pois torna-se evidente a impressão de falta de unidade formal (ibidem p. 11). (...) [no primeiro movimento de Música N. 1 (1945), para piano] os fragmentos melódicos são um constante vai-e-vem de linhas em oposição, linhas ascendentes e logo descendentes, o que seria um modo de tratar a forma (ibidem p. 11). É de 1947 o Duo para flauta e violino, de ritmo dinâmico, como alguns quadros de Augusto Rodrigues, bastante unidade formal e, o que é importante, certa comunicabilidade. Obra que o autor considera até hoje (1971) um dos seus melhores trabalhos (ibidem p. 13). A busca da comunicabilidade levou ao abandono do dodecafonismo em 1949: O compositor reconhecendo que à sua obra falta o necessário sentido social a que se refere Mário de Andrade no Ensaio encerra aqui a estrepitosa fase dodecafônica (ibidem p. 14). Entretanto, é interessante notar que isso ocorre pela fidelidade a uma constante na intenção de Guerra Peixe ao longo de sua trajetória 5 : o ideal da incidência na sociedade e, associado a ele, da comunicabilidade de sua música. Nesse sentido, o abandono do dodecafonismo foi devido à impossibilidade, na opinião do compositor, de realizar com essa técnica o ideal de uma música que pudesse ser compreendida e ter um sentido social (ibidem p. 14). Ideal, no mais, também presente no próprio grupo Música Viva. Sendo assim, este artigo busca estudar as peças dodecafônicas para flauta e piano de Guerra Peixe na tentativa de identificar aspectos técnicos e artísticos dessas peças que favoreceriam essa "comunicabilidade". Considerando-se que para Guerra Peixe a técnica dos doze sons se restringe tão somente ao papel de garantir a atonalidade; jamais um real valor construtivo no seu total (ibidem p. 11), o estudo de Música e de Allegretto con moto utilizará um método de análise eclético, mais adequado aos vários procedimentos incorporados pelo compositor ao empregar o dodecafonismo. As análises se concentrarão nos seguintes aspectos: elementos 5 O próprio compositor dividiu a sua produção em três fases: (1) Inicial até 1944; (2) Dodecafônica de 1944 a 1949; e (3) Nacional a partir de 1949 (GUERRA PEIXE, 1971, p. 23).

10 geradores, estrutura formal, ritmo, proporção áurea, série e conjuntos de classes de notas. A seguir, para favorecer a comunicabilidade também deste artigo, são apresentadas as definições de termos utilizados nas análises, assim como algumas convenções adotadas 6 : Motivo: uma pequena idéia rítmica, melódica, harmônica ou qualquer combinação dessas três, suficientemente bem definida para ser identificada quando elaborada e/ou combinada com outro material. Frase: uma unidade da sintaxe musical, em analogia com a linguagem, maior que um motivo e menor que uma seção, que se conclui com um momento de relativa estabilidade, ou seja, um enunciado com sentido completo. Esse enunciado pode ser tanto uma linha melódica, quanto um trecho completo com várias vozes. Neste trabalho é mais freqüente esse último uso. Seção: uma articulação formal, com sentido completo, composta por uma ou mais frases. Parte: uma articulação da peça, também de sentido completo, formada por uma ou mais seções. Ponto culminante: nota mais aguda ou ponto de maior tensão de um trecho musical. Região culminante: região de maior tensão de um trecho musical. Densidade: refere-se, principalmente, à quantidade de elementos distribuídos no espaço (tessitura), num determinado período de tempo e é influenciada pela dinâmica e pelo registro das notas. Assim, considera-se um trecho mais denso quando houver muitas notas concentradas em pouco espaço e um trecho menos denso, ou rarefeito, quando ocorrer o contrário, poucas notas distribuídas em muito espaço. Uma dinâmica forte ou notas tocadas na região grave do piano tendem, 6 As definições foram baseadas nas seguintes fontes: The New Harvard Dictionary of Music (1995) e The New Grove Dictionary of Music and Musicians (2001).

11 geralmente, a reforçar a sensação de preenchimento (maior densidade), enquanto uma dinâmica piano e notas agudas favorecem a sensação de vazio (menor densidade). Exposição: indica, simplesmente, a seção que apresenta o material musical que será desenvolvido ao longo da peça, sendo essa a única relação com o sentido tradicional do termo na forma sonata e na fuga. Coda: qualquer passagem que ocorre depois da conclusão estrutural de uma peça e que serve como gesto de fechamento formal. Teoria dos Conjuntos de Classes de Notas: teoria para análise da música atonal, desenvolvida por Allen FORTE (1973) 7. Segundo essa teoria, todas as notas com o mesmo nome (incluindo as enarmonias), independente da oitava em que se encontram, constituem uma classe. Assim, cada um dos doze semitons em que se divide a oitava no sistema temperado constitui uma classe de notas, que será representada por um número inteiro de 0 a 11. Por exemplo, considerando-se a nota Dó como a classe 0, todas as notas Dó, Si e Ré, em qualquer oitava, pertencerão a esta classe; todas as notas Dó e Ré, constituirão a classe 1; e assim por diante. Um conjunto é um agrupamento de classes de notas distintas (sem repetições). Todos os conjuntos equivalentes, ou seja, todas as doze transposições possíveis e as suas inversões (totalizando 24 conjuntos), constituem uma classe de conjuntos (normalmente, quando se diz conjunto, subentende-se uma classe de conjuntos, da mesma forma que, quando se diz o nome de determinada nota, já está subentendida a classe de notas). 7 Para os termos relativos à Teoria dos Conjuntos de Allen FORTE (1973), foram utilizadas as traduções adotadas por Ilza Nogueira, em seu artigo Ambigüidade e contextualidade: princípios fundamentais da linguagem pós-tonal de Ernst Widmer (NOGUEIRA, 1992, p. 1-20) e para a análise intervalar foi usado o Processador de Classes de Notas PCN2001, versão 1.0, Windows 95/98/ME/NT/2000, Copyright 1992/1998/2001, Jamary Oliveira. Disponível no site: http://www.ufba.br/~jamary.

12 Um conjunto é apresentado na chamada forma normal, na qual os seus elementos são ordenados de maneira crescente dentro de uma oitava (partindo dos intervalos mais próximos até aqueles mais distantes). Quando houver conjuntos de diferentes ordenações com a mesma estrutura intervalar, a forma normal será aquela que se inicia pelo menor número inteiro. A forma normal que serve de modelo estrutural para todos os 24 conjuntos de uma classe de conjuntos recebe o nome de forma primitiva e sempre se inicia com o número 0. Allen Forte elencou todas as classes de conjuntos possíveis, a Lista de formas primitivas dos conjuntos de classes de notas, criando também uma nomenclatura numérica para distingui-las, onde o primeiro número indica a cardinalidade, ou seja, quantas classes de notas distintas formam o conjunto e o segundo número, a ordem do conjunto na lista de formas primitivas. Por exemplo, o conjunto 4-3 possui cardinalidade 4, ou seja, é formado por quatro classes de notas e é o terceiro conjunto de cardinalidade 4 que aparece na lista de Forte. Convenções: Dó 3 M m aum dim Numeração das notas de 1 a 12 Numeração das notas de 0 a 11 Intervalo maior Intervalo menor Intervalo aumentado Intervalo diminuto Intervalo ascendente Intervalo descendente Refere-se à ordem das notas em quaisquer das formas de uma série (O-0, O-4, I-0 etc). Ex.: 1 = primeira nota da série; 2 = segunda nota da série etc. Refere-se aos conjuntos de classes de notas e considera o Dó fixo. Ex.: 0 = classe de Dó (Dó, Si, Ré ); 1 = classe de Dó (Dó e Ré ) etc.