PATRIMÔNIO IMATERIAL: FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL AULA 3: INSTRUMENTOS E PRÁTICAS DE SALVAGUARDA PROFESSORA: RÍVIA RYKER BANDEIRA DE ALENCAR 1
INSTRUMENTOS E PRÁTICAS DE SALVAGUARDA Rívia Ryker Bandeira de Alencar Introdução Esta disciplina tratará especificamente dos instrumentos e práticas utilizados atualmente pelo governo federal para a salvaguarda da dimensão imaterial do patrimônio cultural. As iniciativas propostas pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultural (UNESCO) também serão abordadas. Conforme explicitado na aula anterior, os três principais processos da política de salvaguarda executada pelo governo federal são: identificação, reconhecimento e apoio e fomento. Os instrumentos e práticas que correspondem a esses processos são: Instrumentos de Identificação 1. Inventário Nacional de Referências Culturais 2. Inventário Nacional da Diversidade Linguística Instrumento de Reconhecimento 1. O Registro Instrumentos de Apoio e Fomento 1. Ações e Planos de Salvaguarda para Bens Registrados 2. Ações de salvaguarda durante processos de inventário ou Registro 3. Ações de Salvaguarda Emergenciais 4. Edital de Chamamento Público do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial No âmbito internacional, os instrumentos de salvaguarda promovidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) são: 1. Lista Representativa do Patrimônio Imaterial da Humanidade 2. Lista do Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente 3. Registro das Melhores Práticas Mundiais de Salvaguarda E, por último, a disciplina apresentará o meio para o desenvolvimento de ações de salvaguarda para o patrimônio cultural imaterial através do mecanismo de incentivo fiscal do Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC). 2
Instrumentos de Identificação Inventário Nacional de Referências Culturais O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) é um instrumento metodológico disponibilizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para a produção de conhecimento sobre bens culturais de natureza imaterial. A realização do INRC é estruturada em três fases: Levantamento Preliminar; Identificação e Documentação. O objetivo inicial da aplicação do INRC é produzir a localização de acervos, sistematização de documentos e bibliografias, sobre os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores diferenciados, constituindo-se como marcos e referências de identidade para determinado grupo social. É realizado com vistas a mapear os saberes, as celebrações, as formas de expressão, os lugares (categorias do patrimônio cultural imaterial estabelecidas pelo Decreto 3.551/00), e, ainda, as edificações associadas a certos usos, a significações históricas e a imagens urbanas, independentemente de sua qualidade arquitetônica ou artística. Por meio do INRC é possível, num primeiro momento, identificar as referências culturais de determinada localidade ou grupo social. 1 Assim, a partir da identificação realizada com a aplicação do inventário, é possível não apenas conhecer bens culturais, mas também os valores e significados atribuídos a esses bens pelos grupos sociais. Em consequência disso, a aplicação do inventário deverá realizar a mobilização dos grupos sociais envolvidos para a participação direta na pesquisa, diagnóstico da realidade e, proposição de ações resolutivas. A identificação de bens culturais promovida pelo inventário gera a produção de ampla documentação, utilizando-se das perspectivas, marcos teórico-metodológicos e técnicas de campo advindos das ciências sociais, notadamente da antropologia e da história. Estruturado em três fases sucessivas Levantamento Preliminar, Identificação e Documentação -, propõe uma olhar sobre o campo que caminha do geral para o específico, envolvendo levantamentos bibliográficos, entrevistas com os detentores/produtores dos bens culturais, fotografias, gravações sonoras e visuais, produções de textos, dentre outros. Gera- 1 O conceito de Referência Cultural foi abordado no subitem 4.1 da aula 2. 3
se, com isso, um histórico e uma atualização de informações sobre as referências culturais pesquisadas. O conceito fundamental que organiza a identificação é o de referências culturais, no sentido em que ele foi tratado na primeira disciplina. O processo de identificação, entretanto, implica a compreensão de que o bem cultural não é uma realidade dada, de que é preciso constituí-lo como uma referência cultural, ou seja, detectar quais são os significados e valores da comunidade em questão para que determinado aspecto da vida social seja eleito como referência de história, identidade e memória do grupo. Neste sentido, para identificar as referências culturais de uma comunidade é preciso, primeiramente, constituir uma análise sobre o domínio social, minimamente informada por um referencial teórico e conceitual que forneça as bases para a pesquisa. Porém, em contrapartida, é fundamental que os critérios para a eleição dos bens culturais, assim como a própria eleição, devem partir dos referenciais próprios do grupo pesquisado. É preciso explicitar, para cada bem identificado, a sua representatividade e o significado para a comunidade; qual segmento social o considera como referência; quais os sentidos, valores e significados que os constituem como tal. Isso envolve os mitos de origem, as referências temporais, as razões pelas quais as pessoas reproduzem essas práticas; as transformações que elas têm em função de cada segmento social praticante ou detentor, além de sua dinâmica no tempo. Ainda o imaginário social constituído sobre o bem, as histórias particulares de cada pessoa ou segmento, que além de significar o bem, demonstram sua relação de pertencimento à vida do indivíduo e da comunidade. Conforme apresentado acima, por meio do inventário é possível identificar as referências culturais e, consequentemente, documentá-las. A importância da documentação das referências culturais pode ser verificada de diversas maneiras: enquanto preservação da memória de determinadas práticas culturais; como forma de reconhecer as mudanças ocorridas ao longo do tempo; como produção de conhecimento para as futuras gerações; divulgação da diversidade cultural; e, inclusive para a proposição de políticas públicas. Como minuciosamente apresentado na aula 2, a participação dos detentores/produtores como sujeitos intervenientes nas ações de salvaguarda é condição imprescindível para sua execução. Isto posto, a aplicação do INRC requer fundamentalmente a mobilização dos grupos sociais envolvidos. Deste modo, os levantamentos de informações produzidos ao longo do inventário também deverão reconhecer eventuais dificuldades 4
enfrentadas pelos grupos sociais para continuidade da prática cultural ou vulnerabilidades presentes na transmissão dos saberes. Assim, em última instância, o INRC se apresenta como um instrumento bastante eficaz para a salvaguarda: por meio de sua aplicação é possível identificar, documentar e, ainda, gerar subsídios para políticas públicas. O INRC, portanto, estrutura-se sob três ações fundamentais: produção de conhecimento; documentação; e mobilização social. Embora cada uma dessas dimensões possa ganhar ênfases diferentes de acordo com as especificidades do objeto ou contextos envolvidos, recomenda-se que todos eles sejam contemplados de forma satisfatória no âmbito do inventário. O IPHAN, por meio do Departamento do Patrimônio Imaterial e das Superintendências Estaduais, é o órgão federal responsável por realizar treinamento sobre a aplicação da metodologia e acompanhar a realização do inventário. Instituições públicas de qualquer esfera e instituições privadas interessadas em realizar o INRC deverão contactar as unidades do IPHAN para solicitar a autorização de uso da metodologia. As condições para aplicação do INRC estão dispostas na Instrução Normativa do DPI/IPHAN nº 001/2009. Inventário Nacional da Diversidade Linguística O Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) é um instrumento de identificação, documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Seu objetivo é mapear, caracterizar, diagnosticar e dar visibilidade às diferentes situações relacionadas à pluralidade linguística brasileira, de modo a permitir que as línguas sejam objeto de políticas patrimoniais que colaborem para sua continuidade e valorização. Instituído por meio do Decreto nº 7.387/2010, o INDL prevê que o Ministério da Cultura, por meio do IPHAN, atue de forma compartilhada com os Ministérios da Educação, Justiça, Ciência e Tecnologia e Planejamento, Orçamento e Gestão, para a elaboração das diretrizes, planos de ação e implantação de políticas para a diversidade linguística. 5
O INDL pode ser considerado um instrumento de salvaguarda híbrido no que se refere aos processos que compõem a salvaguarda, pois ao passo que identifica, também reconhece. As línguas inventariadas receberão o título de Referência Cultural Brasileira, a ser expedido pelo Ministro da Cultura, e, com isso, farão jus a ações de valorização e promoção por parte do poder público. Até então foram realizados oito projetos-pilotos para teste da metodologia em algumas comunidades indígenas, afro-brasileiras, de imigração e de LIBRAS. A expectativa do IPHAN é concluir o manual de aplicação do INDL ainda este ano e divulgá-lo para a sociedade em geral. Instrumento de Reconhecimento O Registro O artigo 216 da Constituição Federal, além de ampliar o conceito de patrimônio e abarcar a dimensão imaterial, também autorizou, juridicamente, a possibilidade de criação de outros instrumentos de preservação e apoio ao patrimônio cultural brasileiro. Com os artigos 215 e 216 da CF, ficou estabelecida a base que amplia a noção de patrimônio e permitiu a criação de novas maneiras de tratá-lo, ou seja, aqueles bens culturais que foram obscurecidos no passado, por não serem alvo do instrumento de preservação vigente, isto é, o tombamento, ganharam a oportunidade de ser legalmente reconhecidos e o tombamento deixou, então, a sua exclusividade. No ano 2000, após um longo período de debates institucionais para a elaboração do instrumento específico para a preservação da dimensão imaterial do patrimônio, é promulgado o Decreto nº 3.551. Este institui o Registro como o instrumento legal para o reconhecimento e a valorização do patrimônio cultural imaterial. Por um lado, diferentemente do patrimônio material, a dimensão imaterial do patrimônio condiciona outras formas de atuação e demonstra um novo campo de atuação da política patrimonial: 6
O patrimônio imaterial não requer proteção e conservação no mesmo sentido das noções fundadoras da prática de preservação de bens culturais móveis e imóveis mas identificação, reconhecimento, registro etnográfico, acompanhamento periódico, divulgação e apoio (O Registro do Patrimônio Imaterial, 2006: 19) 2. Por outro, a noção de autenticidade aplicada ao patrimônio material também precisou ser revisitada e foi substituída pela noção de continuidade histórica. Essa substituição busca reconhecer a dinâmica particular de transformação do bem cultural imaterial que pode ser verificada por meio de estudos históricos e etnográficos que busquem observar as características essenciais do bem e sua modificação ao longo do tempo. De acordo com o Decreto nº 3.551/00 os pedidos de Registro podem ser apresentados pelo Ministro da Cultura, instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, secretarias de estado, de município e do Distrito Federal e sociedades ou associações civis. Os pedidos de Registro devem conter justificativa, denominação e descrição sumária do bem proposto, indicação de onde ocorre ou se situa, do período e da forma em que ocorre; informações históricas básicas sobre o bem cultural; indicação da participação e/ou atuação dos grupos sociais envolvidos; documentação mínima disponível adequada à natureza do bem, tais como fotografias, desenhos, vídeos, gravações sonoras ou filmes; referências documentais e bibliográficas disponíveis; declaração formal de representante da comunidade produtora do bem ou de seus membros, expressando o interesse e anuência com a instauração do processo de Registro. Os pedidos de Registro encaminhados ao IPHAN terão a pertinência julgada pela Câmara do Patrimônio (colegiado composto por membros do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, instância do IPHAN responsável pelo julgamento dos pedidos de tombamento e Registro). Uma vez a proposta aprovada, a instrução do processo de Registro deverá seguir as orientações da Resolução DPI/IPHAN nº 001/2006. 2 MINC/IPHAN. Patrimônio Imaterial: O Registro do Patrimônio Imaterial. Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: Ministério da Cultura/Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 4.ed, 2006. 7
Com a instrução do processo de Registro concluída e o pedido de Registro aprovado pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, o bem é inscrito em um ou mais de um dos seguintes Livros: Livro dos Saberes: para a inscrição dos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades. Livro das Formas de Expressão: para a inscrição de manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas. Livro das Celebrações: para a inscrição de rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social. Livro dos Lugares: para a inscrição de mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas. Os bens inscritos recebem o título de Patrimônio Cultural do Brasil e a partir de então o Estado é responsável por dar ampla divulgação a esses bens, de modo que toda a sociedade possa ter acesso a informações sobre suas características, significados, representações, dentre outros aspectos constitutivos. A função imediata do Registro de um bem cultural é, por um lado a valorização dos grupos sociais de detentores e produtores e, por outro, reconhecer o seu papel para a formação da cultura brasileira. Em consequência disto, o IPHAN atua no sentido de estimular o envolvimento dos detentores/produtores e da sociedade em geral na tarefa de preservar esses bens, e, além disso, para o estabelecimento de ações diretas por parte de instituições públicas e privadas, em nível federal, estadual e municipal para o apoio e fomento desses bens. Instrumentos de Apoio e Fomento Por meio dos instrumentos de apoio e fomento o IPHAN busca incentivar e criar condições para que iniciativas e práticas de preservação desenvolvidas pela sociedade sejam executadas. Atualmente os seguintes instrumentos são disponibilizados: Ações e Planos de 8
Salvaguarda para Bens Registrados; Ações de Salvaguarda durante processos de Inventário ou Registro; Ações de Salvaguarda Emergenciais, e; Ações de Divulgação e Promoção. Ações e Planos de Salvaguarda para Bens Registrados Conforme explicitado na aula anterior, item 4.2, o termo salvaguarda aplica-se a toda e qualquer ação ou processo destinado a apoiar e fortalecer a existência dos bens culturais de natureza imaterial. Não obstante isso, a política desenvolvida pelo IPHAN também denomina ações de apoio e fomento como ações de salvaguarda. Neste contexto, salvaguardar um bem cultural de natureza imaterial é atuar no sentido de apoiar e buscar melhorar as condições sociais e materiais de produção, reprodução e transmissão, buscar garantir meios para a continuidade do bem cultural de modo sustentável e visar, a longo prazo, a autonomia dos grupos detentores para a gestão de seu patrimônio. A execução da denominada salvaguarda de um bem Registrado, ou seja, o processo de preservação do patrimônio cultural imaterial reconhecido, parte do pressuposto da gestão compartilhada. Isto é, para a formulação e implementação das ações ou planos de salvaguarda é imprescindível a ampla mobilização e participação dos detentores/produtores dos bens Registrados. A partir do diagnóstico e das recomendações para ações já apresentados na instrução do Registro, são os detentores/produtores que irão apontar as situações particulares em que ocorre a transmissão de saberes e indicar os eventuais problemas que enfrentam para sua continuidade. Uma vez que o patrimônio cultural é uma riqueza de toda a Nação, uma primeira medida da salvaguarda é buscar reconhecer parceiros, em todos os âmbitos da sociedade, como instituições públicas locais e organizações não governamentais, para o estabelecimento de uma agenda para o encaminhamento de demandas e soluções para a realidade do bem Registrado. Nesse sentido, o Departamento do Patrimônio Imaterial do IPHAN recomenda a formação de um Comitê Gestor para a Salvaguarda do Bem Registrado, formado por membros dos grupos detentores do bem, representantes do IPHAN (DPI e Superintendências Estaduais envolvidas), dos poderes públicos municipais e estaduais e de outros segmentos da sociedade, 9
para a elaboração, execução e avaliação das ações, bem como para o acompanhamento de seus desdobramentos. Eixos e tipos das ações de salvaguarda A política de salvaguarda, em observância com sua competência, pode atuar no desenvolvimento de ações que estejam relacionadas com os seguintes eixos: 1. Produção e reprodução cultural 2. Mobilização Social e Alcance da política 3. Gestão participativa e sustentabilidade 4. Difusão e Valorização Estes eixos desdobram-se em treze tipos de ações de salvaguarda que podem ser combinadas entre si para a execução em longo prazo. A depender do contexto de cada bem Registrado é possível elaborar e implementar um conjunto de ações, neste caso, um Plano de Salvaguarda, com proposição de ações a curto, médio e longo prazo. Os tipos de ação de salvaguarda são: 1. Apoio à criação de comitê gestor, à elaboração do plano de salvaguarda e/ou associações: apoio a ações estruturantes para o início do processo de salvaguarda, como o apoio e custeio para a realização de reuniões, seminários; disponibilização de documentos e recursos humanos para orientação e assessoria; mediação com instituições para a ampliação da mobilização e compromisso dos segmentos sociais envolvidos. 2. Transmissão de saberes: transmissão de conhecimentos de detentores e/ou produtores de bens culturais de natureza imaterial para as novas gerações. Realização de ações de apoio às condições de permanência do bem cultural enquanto prática vivenciada, por meio do ensino às novas gerações dentro do grupo ou comunidade onde é tradicionalmente cultivada, como: oficinas, aulas, vivências, entre outras. 10
3. Ocupação, aproveitamento e manutenção de espaço físico: aquisição de equipamentos, reformas, adequação de espaços para atividades de salvaguarda, sinalização. 4. Apoio às condições materiais de produção: obtenção ou aquisição de matérias-primas e equipamentos para a produção cultural, manejo ambiental. 5. Geração de Renda e ampliação de mercado: apoio à participação em feiras, exposições, colocação em pontos de venda, confecção de etiquetas diferenciadas, catálogo de venda. 6. Capacitação de quadros para gestão do patrimônio: formação da sociedade e gestores públicos para o desempenho civil e oficial de ações de salvaguarda por meio de oficinas, seminários, cartilhas, manuais. 7. Pesquisa participativa: estímulo à formação de detentores/produtores como pesquisadores e agentes de preservação. 8. Edição e Difusão de resultados: disponibilização de conteúdos a respeito do universo cultural significativo do bem cultural Registrado para a sociedade em geral. 9. Constituição, conservação e disponibilização de acervo: apoio à produção e guarda de acervos documentais sobre o bem cultural de modo a socializar o conhecimento acumulado. 10. Ações Educativas: preparação de conteúdos dirigidos a segmentos de ensino, visitas guiadas, palestras, oficinas. 11. Atenção à propriedade intelectual e direitos coletivos: ações de apoio, esclarecimento e mediação institucional de modo a salvaguardar direitos dos detentores dos saberes em questão. 12. Editais, prêmios e seleção de iniciativas de salvaguarda: voltados para a valorização de iniciativas relativas à salvaguarda do bem cultural. 13. Articulação Institucional e política integrada: ações voltadas para o desenvolvimento de projetos integrados com diferentes áreas governamentais para o estabelecimento de políticas intersetoriais. 11
Ações de salvaguarda durante processos de inventário ou registro Há situações em que não é possível aguardar o Registro de um bem cultural para a realização de ações de salvaguarda. Ao longo da aplicação do INRC ou do desenvolvimento de um processo de Registro podem surgir situações prementes que necessitem do apoio da política de salvaguarda. Nesta linha, apresento um exemplo de ação de salvaguarda desenvolvida ao longo da instrução do Registro do bem cultural Cachoeira de Iauaretê - Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos rios Uaupés e Papuri (localizada na região do Alto Rio Negro, distrito de Iauaretê, município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas) no Livro dos Lugares em 10.08.2006. No final dos anos 1920, missionários salesianos chegaram à região do Alto Rio Negro, no Amazonas, com o objetivo de civilizar os povos indígenas por meio da catequese. Compreenderam os ornamentos sagrados dos indígenas, que eram guardados e utilizados cerimonialmente em rituais de iniciação e como objeto de troca entre grupos, como coisas do diabo. Por esse alegado motivo recolheram quase a totalidade dos ornamentos e os levaram a museus ou os venderam para acervos particulares. Na década de 1950, uma outra vertente de missionários da região, as Irmãs Filhas de Maria Auxiliadora, buscaram grande parte desses adornos para a montagem do Museu do Índio de Manaus. O Museu, mantido pelo Patronato Santa Teresinha, passou a ser ponto turístico da capital. Os índios tomaram conhecimento do acervo composto por seus objetos sagrados e questionaram-se: por que não foram destruídos se eram coisas do diabo? Durante a pesquisa para a instrução do Registro da Cachoeira de Iauaretê, os grupos indígenas da região manifestaram interesse em visitar o Museu do Índio de Manaus, chamado por eles de museu das freiras, para enfim reconhecer quais ornamentos estavam ali. Foram identificados cento e oito itens pertencentes a dezesseis tipos de objetos que compõem o conjunto de adornos de dança dos povos do rio Uaupés. 12
Imediatamente os índios manifestaram a intenção de recuperar os objetos e leválas de volta para casa. Sendo assim, o IPHAN, em conjunto com os parceiros Federação dos Povos Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN) e o Instituto Socioambiental (ISA), passou a negociar com o Patronato Santa Teresinha a reintegração dos ornamentos para a região do rio Uaupés. Em consequência foi elaborado um Termo de Compromisso entre as partes envolvidas para o retorno dos ornamentos a Iauaretê. Essa foi uma ação institucional inédita, que teve como fundamento a inscrição da Cachoeira de Iauaretê como Patrimônio Cultural do Brasil. Assim, os objetos puderam ser repatriados e recuperaram-se suas funções simbólica e ritual. Ações de Salvaguarda Emergenciais Há ainda outra forma de ação de salvaguarda que pode ser empregada a bens culturais que não sejam Registrados ou que não estejam em processo de identificação ou instrução de Registro. São as chamadas ações de salvaguarda emergenciais. Estas ações são utilizadas no sentido de apoiar, emergencialmente, bens culturais de natureza imaterial em situação de risco. Caracterizam-se por serem ações de execução imediata e de curto prazo. A conclusão da ação deverá culminar em um processo mais amplo de salvaguarda, como a realização de inventário ou da instrução técnica para o Registro. Segue um exemplo. Em 2004 o IPHAN foi procurado por pessoas preocupadas com o desaparecimento de um tipo de renda tradicional do município Marechal Deodoro, em Alagoas. A preocupação se justificava, pois a renda, conhecida como Bico de Singeleza, dispunha apenas de uma única detentora do saber, Dona Marinita, com a idade bastante avançada. 13
Nesse contexto, o IPHAN-Alagoas com apoio do IPHAN-Sergipe e parceria com a Secretaria Estadual de Cultura de Alagoas, promoveu a realização de oficinas de repasse do saber-fazer Bico de Singeleza para oito artesãs que desconheciam totalmente aquele artesanato. Logo após a realização da oficina a renda passou a ser produzida por um número maior de artesãs, contribuindo para a melhoria da condição social daquelas e pessoas e também para a continuidade do bem cultural. Em continuidade à ação emergencial realizada, foi realizado o pedido de Registro do Bico Singeleza. Neste momento a instrução do processo está em andamento. Edital de Chamamento Público do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial Com o intuito de descentralizar a política de salvaguarda do patrimônio imaterial, apoiar iniciativas e práticas de preservação desenvolvidas pela sociedade, contribuir para a preservação da diversidade cultural do país e para a disseminação de informações sobre o patrimônio cultural brasileiro a todos os segmentos da sociedade, desde 2005, anualmente, o IPHAN publica o Edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). O Edital do PNPI seleciona projetos de identificação, documentação e/ou melhoria das condições de sustentabilidade de conhecimentos tradicionais, modos de fazer, formas de expressão, festas, rituais, celebrações, lugares e espaços que abrigam práticas culturais coletivas vinculadas às tradições de comunidades de afrodescendentes, indígenas, de imigração, dentre outras. Os projetos podem ser apresentados por instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos e devem seguir as orientações do Edital de cada ano. É condição fundamental para a aprovação do projeto a comprovação da participação e do consentimento prévio das comunidades envolvidas ou das instituições que as representam. 14
Em 2011 o Edital do PNPI foi reconhecido pelo Comitê Intergovernamental da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial como um dos programas que melhor reflete os princípios e objetivos da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada em 2003 por aquela organização. Instrumentos de salvaguarda promovidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) A salvaguarda do patrimônio imaterial está presente nas áreas de atuação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, UNESCO. Dentre os mecanismos criados por essa instância, podemos destacar a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989), que se constitui em um instrumento legal de orientação para a identificação, a preservação e a divulgação do patrimônio cultural imaterial em nível internacional. Em 2003, após grande mobilização mundial, a UNESCO adotou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Essa convenção normatiza o tema do patrimônio cultural imaterial além de complementar a Convenção do Patrimônio Mundial, de 1972, que trata dos bens culturais materiais. Com o objetivo de estimular o reconhecimento e a promoção da diversidade mundial do patrimônio cultural imaterial, em 2003 e 2005, a UNESCO realizou a Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade. Para candidatar-se ao título era necessário que o bem cultural já fosse reconhecido nacionalmente como Patrimônio de seu país. Dois bens culturais Registrados receberam o título de Obra-Prima da Humanidade: a Arte Kusiwa pintura corporal e arte gráfica Wajãpi (em 2003) e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano (em 2005). Até 2008, 90 bens culturais imateriais mundiais foram proclamados Obras-Primas. Em 2009, a Proclamação foi substituída pela inscrição na Lista Representativa do Patrimônio Imaterial da Humanidade. Todos os bens culturais proclamados Obras-Primas 15
foram conduzidos à Lista. Em 2012 a candidatura do bem Registrado Frevo foi aprovada, totalizando hoje 257 bens incluídos na Lista. Perfazendo uma analogia com a política de salvaguarda do governo federal, é possível considerar que a inclusão de um bem cultural na Lista Representativa da UNESCO seria o equivalente ao Registro do Patrimônio Cultural do Brasil, ou seja, uma ação na linha do reconhecimento. Neste sentido, a Lista de Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente seria uma ação na linha de apoio e fomento. Para o envio de candidaturas os bens culturais também precisam ser oficialmente reconhecidos em seu país de origem. O objetivo da inscrição na Salvaguarda Urgente é mobilizar cooperação internacional e assessoria especial para os detentores do bem cultural na elaboração e execução de ações de salvaguarda específicas e emergenciais. Iniciada em 2009, atualmente 31 bens culturais mundiais estão inscritos nesta Lista. Em 2011, o bem Registrado Ritual Yaokwa do povo Indígena Enawenê Nawê foi considerado em Necessidade de Salvaguarda Urgente. Ainda na linha de apoio e fomento, desta vez com o caráter de premiação, a UNESCO realiza o Registro das Melhores Práticas de Salvaguarda. Neste caso o objetivo é divulgar programas, projetos e atividades de salvaguarda que melhor refletem os princípios e objetivos da Convenção de 2003. Durante o período de 2009 a 2012, foram selecionados 10 programas, projetos e atividades. Dentre eles, duas experiências brasileiras: o Edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, descrito acima, e o Museu Vivo do Fandango. Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC) A Lei 8.313/91, conhecida como Lei Rouanet, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC). A finalidade do PRONAC, de competência do Ministério da Cultura, é permitir a captação de recursos financeiros por meio do mecanismo de incentivo fiscal para a execução de projetos culturais. 3 3 Além do incentivo a projetos culturais o PRONAC possui outros dois mecanismos que não serão abordados aqui: o Fundo Nacional da Cultura (FNC) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). 16
De acordo com o Art. 1 a finalidade do PRONAC é captar e canalizar recursos para o setor cultural de modo a: I - contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais; II - promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com valorização de recursos humanos e conteúdos locais; III - apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos criadores; IV - proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional; V - salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira; brasileiro; VI - preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico VII - desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos ou nações; VIII - estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal, formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória; IX - priorizar o produto cultural originário do País. Os segmentos culturais que podem ser contemplados pela Lei Rouanet são: 1. Artes cênicas; 2. Livros de valor artístico, literário ou humanístico; 3. Música erudita ou instrumental; 4. Exposições de artes visuais; 5. Doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para a manutenção desses acervos; 6. Produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; 7. Preservação do patrimônio cultural material e imaterial; 8. Construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes. 17
Com isso, é possível a apresentação de projetos para a realização de ações de salvaguarda por meio da captação de recursos. De acordo com a súmula aprovada pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), instância do Ministério da Cultura responsável pela aprovação dos projetos que poderão realizar captação, os projetos encaminhados para o segmento patrimônio cultural imaterial deverão abranger o seguinte escopo: Para efeitos de enquadramento na alínea g, parágrafo 3º, artigo 18 da Lei 8.313/91, no que tange ao Patrimônio Cultural Imaterial não Registrado na forma do Decreto 3.551/2000, serão considerados projetos de valorização ou de salvaguarda aqueles relativos a bens culturais imateriais transmitidos há, pelo menos, três gerações, que digam respeito à história, memória e identidade de grupos formadores da sociedade brasileira, que contem com a anuência comprovada e a participação de representação reconhecida da base social detentora, e que apresentem proposta de geração de benefícios materiais, sociais ou ambientais para esta base, devendo ainda ser enquadrados em tipologia de ações e produtos estabelecida pelo IPHAN. À guisa de conclusão Com a explanação realizada percebe-se que há uma gama de possibilidades para a atuação na salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Contudo, para que sua execução seja eficaz e a alocação dos recursos eficiente, é preciso considerar tanto o papel da esfera pública quanto da sociedade em geral. A política neste campo se faz por meio de uma via de mão dupla: assim como é dever do Estado criar condições para a ampla difusão e o correto acesso a esses instrumentos, é papel da sociedade demandar a formação necessária para alcançar os meios para sua execução e fruição. 18
QUESTÕES: 1. No que consiste o caráter participativo na aplicação dos instrumentos de salvaguarda? 2. Descreva como funciona a gestão compartilhada do Patrimônio Cultural Imaterial. 3. Apresente uma referência cultural de sua região e indique ao menos uma ação de salvaguarda que poderia ser utilizada para seu apoio e valorização. Justifique os objetivos e os resultados esperados. 19