Evolução de uma voçoroca por escorregamentos retrogressivos em solo não-saturado Futai, M.M. Escola Politécnica - USP, São Paulo, SP, Brasil, futai@usp.br Almeida, M.S.S. COPPE-UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, almeida@geotec.coppe.ufrj.br Lacerda, W.A. COPPE-UFRJ, Rio de Janeiro, RJ Brasil, willy@geotec.coppe.ufrj.br Resumo: Este trabalho apresenta análise de um mecanismo de voçorocamento em solo não saturado provocado por escorregamentos. Para entender o fenômeno foram realizados ensaios de laboratório, campo e simulações numéricas. Observou-se que o processo de voçorocamento é causado por escorregamentos rasos causados pela diminuição da sucção. O solo escorregado é carreado pelas águas superficiais geradas pela chuva ou pela exfiltração de água no pé do talude. Não há saturação do talude mesmo com um regime de chuva estacionário porque ocorre exfiltração pelo pé da voçoroca. Abstract: This paper presents an analysis of a gully mechanism in unsaturated soil caused by slope instability. Laboratory and field tests, and numerical simulations were performed in order to understand the phenomenon. It was found that the evolution of the erosional process is the result of shallow landslides caused by reduced suction. The resulting soil of the slides is carried by the surface water from rainfall or water exfiltration at the foot of the slope, which is the original cause of the gully. The slope itself is not saturated however. IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA 443
1 INTRODUÇÃO Áreas afetadas por erosão estão sendo degradadas em muitas regiões brasileiras. Existem vários tipos de erosão e processos erosivos. Os mais estudados são as erosões laminares decorrentes do escoamento superficial e os casos de erosão provocados por fluxos subsuperficiais são pouco estudados, principalmente sob o ponto de vista geotécnico. Este trabalho é o resultado de um estudo específico de voçorocamento que avança devido aos escorregamentos sucessivos por perda de sucção. O caso estudado está localizado na Bacia do Rio Maracujá, situada no distrito de Santo Antônio do Leite, distante 23km de Ouro Preto-MG, conforme apresentado na Figura 1. A região está altamente degradada por feições erosivas, com densidade de quase cinco feições por km 2. O mapeamento das feições erosivas realizado por Bacellar (2000) ilustra bem essa degradação, como pode ser vista na Figura 2. Para esta pesquisa foi escolhido o local designado por Estação Holanda, porque apresenta maior concentração de voçorocas que os demais compartimentos da bacia. Está apresentado na Figura 3 o mapa topográfico do local estudado, onde se pode notar que as três voçorocas (A, B e C) estão quase se fundindo. Figura 1. Localização da área de estudo (Bacellar, 2000). 2 CARACTERÍSTICAS DO SOLO O perfil geotécnico é composto por duas camadas bem distintas. O solo da camada superior é laterítico argiloso com espessuras que variam entre 2 e 6m, abaixo dele está o solo residual de gnaisse muito alterado que pode ultrapassar 50m de espessura. O nível d água é profundo. Sondagens realizadas até 40m de profundidade não detectaram nível d água. Figura 2. Mapeamento das feições erosivas (Bacellar, 2000) 444 IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA
Figura 3. Mapa da topografia da voçoroca estudada (modificado de Bacellar, 2000) A Figura 4 mostra a variação de alguns índices do solo com a profundidade. O solo descrito como saprolítico exposto foi coletado na parede da voçoroca e os demais em um poço fora da influência da erosão. Observou-se, através de ensaios químicos e mineralógicos que há uma concentração de óxidos e hidróxidos na camada superior, onde praticamente não há fração silte. O teor de areia (quartzo) varia pouco com a profundidade e o argilomineral predominante é a caulinita. A erodibilidade do solo foi avaliado por ensaios de dispersão por submersão de amostras de solo em água e solução de NaOH. Também foram realizados ensaios de desagregação com saturação por capilaridade com nível d água até a base (fase 1), a 1/3 da altura (fase 2), a 2/3 da altura (fase 3) e submerso (fase 4), conforme sugestão de Santos e Carvalho (1998). Através de medidas simples das dimensões e observações visuais, estimaram-se os percentuais de desagregação dos corpos de prova. O resultado do ensaio de desagregação está apresentado na Figura 5. Segundo este resultado o solo foi classificado como: resistente à erosão (horizonte B) quando não apresentaram desagregação; erodível (horizonte C1), quando apresentou entre 10 e 75% de desagregação; e altamente erodível (horizonte C2), quando desagregou mais de 75%. O resultado desse critério pode ser visto na Figura 4, na qual observa-se que essa classificação correlaciona-se com a relação silte /argila. Foram realizados ensaios de adensamento, cisalhamento direto, triaxiais, permeabilidade em condições saturadas e não-saturadas, os resultados podem ser vistos em Futai (2002). Para este trabalho selecionaram-se resultados de ensaios triaxiais com controle de sucção e controle das tensões por mecanismos servo-controlados. As envoltórias do solo laterítico (1m) e saprolítico (5m) estão apresentadas nas Figuras 6 e 7, respectivamente. Estudos mais detalhados sobre a influência da sucção no comportamento desses solos podem ser encontrados em Futai et al (2004) e Futai e Almeida (2005). IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA 445
Figura 4. Perfis das propriedades do solo (Futai, 2002) que o solo na condição seca ao ar é muito mais resistente que o solo saprolítico (5m). Também foram determinados valores de φ b constante porque o programa utilizado emprega o modelo de resistência proposto por Fredlund et al (1978). O ajuste foi realizado para se adequar à faixa de variação da sucção em campo. Figura 5. Estimativa do grau de desagregação do solo (Futai, 2002). O intercepto de coesão varia de forma não linear com a sucção, como pode ser visto na Figura 8. Após sucção de 50kPa o comportamento do solo laterítico (1m) inverte-se de modo Figura 6. Envoltórias de resistência do solo laterítico (1m) (Futai et al, 2004) 446 IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA
Figura 7. Envoltórias de resistência do solo de 5m de profundidade(futai et al, 2004) As curvas de retenção foram determinadas secando os corpos de prova através da combinação de 3 métodos: placa de sucção (<30kPa), placa de sucção (até 300kPa) e técnica de papel filtro (> 100kPa). Os resultados estão apresentados na Figura 9 e foram utilizadas para estimar a condutividade hidráulica não-saturada, conforme pode ser vista na Figura 10. Devido à forma da curva de retenção utilizou-se um modelo que permite calcular a condutividade hidráulica para cada ponto, conforme proposta de Pérez-Garcia et al. (2002). Figura 8 Variação da coesão aparente com a sucção Figura 9. Curva de retenção de água A Tabela 1 apresenta um resumo dos parâmetros de resistência e condutividade hidráulica. Apesar do solo laterítico ser mais argiloso, sua estrutura é porosa e mais permeável que o solo saprolítico. Tabela 1 - Parâmetros do solo Figura 10. Estimativa da permeabilidade não saturada do solo IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA 447
O solo laterítico apresenta distribuição de poros bimodal. Isto faz com que a umidade diminua rapidamente para baixos valores de sucção (valor de entrada de ar de 3kPa) a partir de então atinge um patamar com grande variação da sucção para pequenos decréscimos da umidade. Apesar desta diferença marcante entre o solo laterítico e saprolítico, a condutividade hidráulica do solo laterítico é maior dentro da faixa mostrada na Figura 10. Este comportamento pode inverter-se para condições muito secas, porém está fora da realidade do caso estudado. 3. PROCESSO EROSIVO A descrição do processo erosivo será realizada com base no estudo de Bacellar (2000). A Bacia do Rio Maracujá foi mapeada quanto aos aspectos geológicos, morfológicos e de ocorrência de feições erosivas, com estes resultados foi observado que a região onde está localizada a Estação Holanda concentra maior densidade de voçorocas, relacionada a uma geomorfologia mais suave. Os locais de colinas mais íngremes têm litologia mais resistentes à ação intempérica, gerando solos menos erodíveis (mesmo o horizonte C). Bacellar (2000) descreveu dois tipos de modelo evolutivo das voçorocas para a região. Um seria relativo às voçorocas antigas e reativadas, nas quais foi adotado um modelo de tempo geológico. Neste modelo, uma voçoroca teria sido preenchida por algum evento geológico por sedimentos (argilas orgânicas e colúvios) e que atualmente estão sendo reativadas e tendem a percorrer os caminhos do passado. Outro modelo evolutivo das voçorocas foi chamado por Bacellar (2000) de atual, na qual a evolução se dá no solo residual. As voçorocas da Estação Holanda são atuais e na parede exposta são formadas por solo residual e uma pequena capa de solo laterítico na superfície, conforme pode ser vista na Figura 11. A origem destas voçorocas tem influência antrópica, entretanto, seu desenvolvimento depende também dos condicionantes estruturais da litologia (Bacellar, 2000). Na Estação Holanda, Bacellar (2000) indicou a direção da foliação como condicionante estrutural mais importante no trajeto de evolução das voçorocas. As voçorocas da Estação Holanda mudaram de direção bruscamente. O talude norte da voçoroca A está estabilizado, porém, instável no lado noroeste, onde ocorrem trincas de tração na superfície, expansão lateral, exfiltração de água na base e ausência de vegetação. Figura 11. Foto da voçoroca (B) estudada. A justificativa de Bacellar (2000) para esse fato foi à composição do solo que é mais resistente à erosão no lado norte. Isto ocorre por causa da heterogeneidade litológica. A voçoroca A (Figura 3) avançou além do divisor de águas (entre III e IV da Figura 1) e a direção do avanço atual é NWW, diferente do sentido da maior declividade. Para explicar a mudança de direção no avanço da voçoroca, Bacellar (2000) estudou o fluxo de água subterrâneo por meio de perfis de eletro-resistividade, encontrou quatro anomalias de baixa resistividade à 45m da superfície e que coincide com cinco nascentes da voçoroca. 448 IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA
A direção do fluxo sub-superficial é NW, coincidindo com as fontes V, VI e VII (Figura 3). Comparando este resultado com as descontinuidades, Bacellar (2000) constatou que a direção do fluxo coincide com a direção das falhas locais. Os mecanismos de propagação individual das voçorocas de maiores dimensões estão conectados ao sistema hidrogeológico e têm formas arredondadas. Dentre os vários mecanismos que ocorrem na região destacam se alguns na voçoroca estudada: - erosão por salpicamento e por fluxo laminar ou concentrada em sulcos e ravinas dos taludes, principalmente nos solos saprolíticos; - erosão por efeito de fluxo concentrado das águas de escoamento superficial que caem sobre o talude; - erosão por fluxo laminar e por salpicamento do solo sedimentado no fundo (colúvio recente); - escorregamento rotacional; - escorregamento planar em cunha ou queda de blocos de solo saprolítico, rocha alterada ou horizonte laterizado; - Fluxo de solos superficiais do talude; - Erosão química. 4 EVOLUÇÃO DAS VOÇOROCAS POR ESCORREGAMENTOS O principal mecanismo que promove a evolução da voçoroca é o escorregamento. Para simular esse fenômeno foram realizadas várias simulações numéricas com os programas Slope/ W e Seep/W. Os parâmetros de resistência utilizados na modelagem foram apresentados na Tabela 1 e a condutividade hidráulica na Figura 10. Utilizando os parâmetros dos solos saturados o talude da voçoroca seria instável, portanto, trata-se de um problema de estabilidade em condições não-saturada. A simulação numérica foi realizada com fluxo transiente provocado pela infiltração da chuva e o cálculo do fator de segurança acoplado pelo método de Spencer com coesão em função da sucção, conforme proposta de Fredlund. A taxa de pluviometria anual do local varia entre 1100 a 1800mm, com concentração maior entre os meses outubro e maio. A intensidade utilizada na simulação foi igual ao da condutividade hidráulica saturada (0,36mm/h), porque acima desse valor ocorre escoamento superficial. Portanto, mesmo que a intensidade pluviométrica seja maior a taxa de infiltração será a mesma. A condição inicial foi considerada como sendo de a estacionária, cujo fato de segurança foi de 1,45. A medida em que gerada a simulação da infiltração, o fator de segurança diminuiu, chegando a 1,12 com 7 dias de chuvas contínuas e a ruptura ocorreu em 15 dias. Esses valores foram transformados em um gráfico de variação do fator de segurança com o tempo, conforme está apresentado na Figura 12. Mudando a geometria do talude removendo o solo contido no círculo da análise anterior e impondo uma secagem, para simular evaporação, o talude volta a ganhar resistência e o fator de segurança aumenta (Figura 12). Outro ciclo de infiltração causa nova condição de instabilidade. Essa última situação está mostrada na Figura 13. Este processo deve continuar até atingir um solo mais resistente ou erodir todo o material instável. É bom lembrar que essas simulações não estão relacionadas com o regime pluviométrico do local, simplesmente indicam que esse comportamento é possível de ocorrer. A distribuição da sucção devido à simulação de chuvas com duração de 7dias está mostrada na Figura 13(a). Percebe-se que a sucção é baixa na superfície, aumenta com a profundidade até um valor de 400kPa e depois passa a decrescer até o nível freático. Esta simulação IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA 449
mostra que dificilmente este solo poderá ser saturado. Os círculos de escorregamento são rasos, de modo que o novo talude formado apresenta a mesma forma anterior, concordando com as observações de campo. A exfiltração que ocorre no pé do talude evita o aumento excessivo do nível freático, de modo que a ruptura ocorre ainda em condições não saturada. Também foram realizadas análises numéricas de tensão-deformação com modelo contitutivo elastoplástico para solos não-saturados com fluxo associado com o programa de FEM (Silvia Filho, 2002). Os resultados mostraram que há uma concentração de tensões cisalhante devido à diminuição da sucção ao longo do talude. Os resultados foram concordantes com as análises de estabilidade. Figura 12. Variação do fator de segurança com o tempo Figure 13 Resultados da análise de fluxo e estabilidade do 2º escorregamento 450 IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA
Pode-se resumir o processo de evolução da voçoroca por escorregamentos sucessivos através da Figura 14, que indica as seguintes fases: - a infiltração reduz a sucção do talude da voçoroca, que dependendo da duração e intensidade da chuva pode ocorrer um escorregamento; - após o período chuvoso o solo começa a secar e volta a ganhar resistência; - material coluvionar resultante do escorregamento é levado pelo próprio escoamento superficial das chuvas que causaram o escorragemento e principalmente pela exfiltração contínua no pé da voçoroca; - novas chuvas poderão causar novos escorregamentos. CONCLUSÕES Neste trabalho apresentou-se um caso específico em que o mecanismo de evolução da voçoroca ocorre por escorregamentos. A camada superior laterizada (horizonte B) é resistente à erosão, porém o solo saprolítico siltoso (horizonte C) é muito friável e facilmente erodido pela ação da água. Portanto, a exposição do horizonte C acelerou muito o processo de voçorocamente em Santo Antonio do Leite. Análises numéricas mostram que o solo está permanentemente na condição não-saturada. O escorregamento forma circulos superficiais. O solo escorregado é carreado pelo escoamento superficial e o solo remanecente no pé do talude é solapado pela exfiltração contínua da água. Ao secar, o talude volta a estabilizar, porém, novas chuvas podem causar novos escorregamentos. O processo continua até atingir um solo com características mais resistentes ao processo descrito e simulado. AGRADECIMENTOS Os autores agradecem ao CNPq pelo apoio financeiro. REFERÊNCIAS Figura 14. Esquema da evolução do voçorocamento da Estação Holanda. Bacellar, L.A.P. (2000) Condicionantes Geológicos, Geomorfológicos e Geotécnicos dos Mecanismos de Voçorocamento da Bacia do Rio Maracujá, Ouro Preto-MG. Tese de Doutorado. COPPE-UFRJ Fredlund, D. G., Morgenstern, N. R. & Widger, R. S. (1978) The Shear Strenght Of Unsaturated Soils. J. Geot. Div. A. S. C. E., Vol. 103, Gt5, 447-466. Futai, M.M. (2002).Estudo teórico experimental do comportamento de solos tropicias nãosaturados: aplicação a um caso de voçoroca. Tese de doutorado. COPPE-UFRJ. 559p. IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA 451
Futai, M.M., Almeida, M.S.S. & Lacerda, W.A. (2004) Resistência ao Cisalhamento de Solos Não-saturados Tropicais. Simpósio Brasileiro de Solos Não Saturados, São Carlos. Futai, M.M & Almeida, M.S.S. (2005). An experimental investigation of the mechanical behaviour of an unsaturated gneiss residual soil. Geotechnique, vol 55 (3), 201-213 Pérez-Garcia,A., Hurtado-Maldonado,D. & Rojas-Gonzáles, E. (2002) Hydraulic condutivity os unsaturated soils. III International conference on unsaturated soils. Santos, R.M.M.S. & de Carvalho, J.C., 1998, Ensaios de Reodibilidade em Voçorocas do Município de Goiânia, In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica, vol. 1, 581-588, Brasília. Silva Filho, F.C. (2002) Relatório de Pósdoutorad-CNPq. 452 IV COBRAE - Conferência Brasileira sobre Estabilidade de Encostas - Salvador-BA