IX COLÓQUIO DO MUSEU PEDAGÓGICO 5 a 7 de outubro de 2011 DISCURSO RELIGIOSO NA INTERNET: ESTUDO DE CASO 169. Ana Clara de Oliveira Meneses * (UESB)

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Transcrição:

DISCURSO RELIGIOSO NA INTERNET: ESTUDO DE CASO 169 Ana Clara de Oliveira Meneses * (UESB) Edvania Gomes de Silva ** (UESB) RESUMO O principal objetivo deste trabalho é analisar o jogo entre cenografias e fórmulas na internet, partindo da análise do site da RCC Brasil. Trata- se, portanto, de investigar, com base nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso Francesa, em que medida e de que forma o discurso religioso materializa- se no site analisado e quais os efeitos de sentido que surgem da relação entre religião e novas mídias. PALAVRAS- CHAVE: Discurso Religioso, Renovação Carismática Católica, Internet. INTRODUÇÃO Neste trabalho, que faz parte de um subprojeto cujo título é O jogo entre cenografias e fórmulas na internet: análise do site da Renovação Carismática Católica, analisamos a(s) cenografia(s) presente(s) no site da RCC, bem como o 169 Trabalho vinculado ao projeto de pesquisa O jogo entre cenografias e fórmulas na internet: análise do site da Renovação Carismática que é financiado pela UESB e que está vinculado ao projeto maior Memória e Fórmula em diferentes narrativas do campo religioso, coordenado pela Profª. Drª. Edvania Gomes da Silva. * Discente do curso de Licenciatura em História, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), bolsista da UESB. anaclara.meneses@hotmail.com ** Doutora em Linguística. Professora do Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade, e dos Cursos de Graduação em Letras Modernas e Letras Vernáculas, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Orientadora do projeto de pesquisa que deu origem ao presente artigo. edvania_g@yahoo.com.br 1105

hiperenunciador e a fala aforizada, que se mostram presentes em muitos dos textos que fazem parte do nosso material de análise. Para tanto, tomamos como corpus alguns textos de diferentes links do referido site. A Renovação Carismática Católica surgiu no final da década de 60, nos Estados Unidos. Era inicialmente conhecida como Pentecostalismo Católico, possivelmente pela sua ligação com as igrejas pentecostais e neopentecostais. De acordo com Silva (2006): A relação entre RCC e religiões pentecostais revela- se nas diversas práticas dos carismáticos, pois estes valorizam, assim como ocorre nas demais igrejas pentecostais, uma espiritualidade centrada no emocional e na relação individual com Deus. Tal espiritualidade está presente nos encontros de oração, em que o fator emocional adquire importância primordial, e nas orações de cura e libertação, nas quais as pessoas se dizem curadas pelo poder do Espírito Santo /.../. Inclusive, as primeiras reuniões do movimento tiveram a participação de muitos evangélicos. Por isso, nos primeiros anos da RCC era difícil precisar sua verdadeira filiação. Devido a sua relação com o pentecostalismo, não houve, em relação ao movimento carismático, uma aceitação inicial do alto clero conservador da igreja católica, mas isso não impediu o crescimento rápido do movimento e a expansão de suas atividades, o que acabou levando este mesmo clero, que se mostrara inicialmente resistente, a aceitar o referido movimento, pois os líderes católicos verificaram a grande capacidade de mobilização da RCC. No Brasil, a RCC teve origem em Campinas SP, no inicio da década de setenta, vindo alguns anos depois a se espalhar por outras regiões do país. Hoje, devidamente estabelecida, a RCC tem um grande número de atividades pelo Brasil, além de possuir vários adeptos e de controlar grandes meios de comunicação, como a Rede Canção Nova, composta 1106

por emissoras de rádio e de televisão, e o próprio site, que é o objeto de estudo desta pesquisa. Cenografia no site da RCC Com base no site do movimento carismático, verificamos como o discurso religioso se materializa por meio de diferentes cenografias, que estão presentes nos textos analisados. Segundo Maingueneau (1998), Todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima. [...] a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá- la, estabelecendo que essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como convém, segundo o caso [...]. Verificamos que, nos textos analisados, a cenografia da pregação está sempre presente. Maingueneau também afirma que um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada (1998). Nesse sentido, veremos como essa cenografia se apresenta em alguns dos textos analisados. Neste tópico, faremos a análise de dois textos: 1) Semear a Cultura de Pentecostes é anunciar que Jesus é o Senhor!, neste texto, o enunciador trata da missão dos cristãos em anunciar o Evangelho, mostrando que Jesus vive; e 2) Vamos recristianizar a Páscoa!, neste texto o enunciador faz uma crítica ao que é a Páscoa hoje para as pessoas e argumenta que o sentido verdadeiro da Páscoa, o bíblico, está se perdendo por causa da sociedade consumista. Vejamos, inicialmente, o seguinte excerto do texto Semear a Cultura de Pentecostes é anunciar que Jesus é o Senhor! : 1107

Irmãos e irmãs, durante o Congresso Nacional deste ano em Aparecida, nossos pastores e líderes constantemente nos convocaram a assumir cada vez mais a missão que temos como movimento eclesial. [...] É preciso dizer ao mundo que Jesus vive e é o Senhor! [...] Não foi uma tarefa fácil, os seguidores de Cristo sofreram duras perseguições, pagaram com a própria vida, deram seu sangue! A RCC está cada vez mais consciente de que essa missão não se esgotou! Notamos que a cenografia se configura a partir de elementos que caracterizam uma pregação, como as frases curtas e as exclamações, que conferem à cena um ar de sermão. Pois, como afirma Silva (2006), /.../ a performance do fiador parece ser de grande importância no discurso carismático. Mesmo nos textos escritos, a cenografia criada é a de uma pregação. O tom de expectativa, os períodos curtos, os clichês e frases de efeito e, principalmente, as várias exclamações conferem aos textos um caráter oral e simulam uma pregação em praça pública /.../. Tais elementos também estão presentes no seguinte excerto do texto Vamos recristianizar a Páscoa, Parece óbvio que se homenageia o coelho que põe ovos! [...] Muito mais que o Natal, a Páscoa é a principal e mais importante celebração da Igreja. Isso porque foi neste evento que Nosso Senhor Jesus Cristo nos alcançou definitivamente a salvação! [...] Esse é o sentido de se celebrar a Páscoa: a vitória da vida sobre a morte! E nós reduzimos essa grandiosidade a algumas guloseimas... Além disso, outras formulações, como: Ah, faça- me o favor! e Irmãos, vamos recristianizar a Páscoa!, também presentes no texto Vamos recristianizar a Páscoa, reforçam o tom exclamatório, apelativo. Essa característica além de, como dito, criar uma cenografia de pregação em praça pública, aproxima os textos publicados no site da RCC de textos produzidos pelos movimentos pentecostais e 1108

neopentecostais, o que reforça a tese segundo a qual a RCC muito se aproxima desses movimentos. Há também, nos textos analisados, expressões que criam e/ou retomam uma cena validada familiar. Maingueneau (1998, p. 92) assinala que uma cenografia pode utilizar cenas que são chamadas de validadas, isto é, cenas que já estão estabelecias na memória coletiva e identificadas por ela, seja a título de modelos que se rejeitam ou que se valorizam. A aproximação com a cena familiar é algo muito presente nos textos do movimento carismático, pois estes se identificam como uma unidade fraternal, a família carismática. Isso explica, por exemplo, o uso constante da expressão Irmãos e irmãs. Em síntese, em relação à cenografia, os textos analisados mostram tanto a construção de uma cenografia que materializa uma pregação em praça pública, quanto a presença da cena validada da reunião familiar. Nesse caso, tanto a cenografia criada quanto a cena validada, que é retomada, estão relacionadas a uma certa memória e, portanto, mostram as filiações históricas e sociais do movimento carismático. A presença divina e a verdade aforizada A retomada de uma suposta fala verdadeira é um recurso muito utilizado nos textos da RCC. O enunciador carismático mostra- se como o conselheiro ideal e como porta- voz dos ideais Divinos. Nesse sentido, baseando nossas análises nos conceitos de hiperenunciação e de aforização, desenvolvidos por Maingueneau, verificamos, no corpus, tanto a presença de um hiperenunciador, que é o próprio Deus, quanto o recurso a enunciados aforizados. Em relação à noção de hiperenunciador, Maingueneau afirma que: 1109

[...] a comunidade correspondente recorre a um hiperenunciador cuja autoridade garante menos a verdade do enunciado no sentido de uma adequação a um estado de coisas do mundo, e mais amplamente sua validade, sua adequação aos valores, aos fundamentos de uma coletividade (MAINGUENEAU, 2006, p. 93). No que diz respeito à noção de enunciados aforizados, o autor afirma que: (A aforização) vem minar a compacidade da textualização. Ela faz aparecer a existência de outro regime enunciativo, em que há sujeitos de pleno direito e não somente locutores e enunciadores, a expressão de uma interioridade e não somente uma negociação no interior de uma rede de normas e de interações situadas (MAINGUENEAU, 2010, p. 23). Como dito, tanto a presença de um hiperenunciador quanto a existência de enunciados aforizados são recursos que estão presentes no corpus que analisamos. Para mostrar a presença dos referidos recursos, selecionamos dois textos encontrados no site da RCC: 1) Como saber se somos luz?, no qual o enunciador trata da busca da luz, da verdade, e da vida e defende que o co- enunciador deve lançar luz sobre aqueles que ainda não são luzes; e 2) Princípio da Consciência de Identidade, no qual o enunciador faz uma reflexão sobre a imagem da criatura (no caso nós, como filhos de Deus) e mostra que esta deve buscar a verdadeira consciência de identidade, que está no Criador. Em relação ao texto Como saber se somos luz?, verificamos, desde o início, formulações categóricas, que indicam uma suposta verdade inquestionável, como em: só quem é luz pode lançar luz sobre as circunstâncias e sobre os outros. Neste caso, o tom solene, categórico e inquestionável, rompe com a compacidade da textualização e constitui aquilo que Maingueneau chama de enunciado aforizado. Além disso, verificamos, ainda, a presença do hiperenunciador (Jesus), apresentado como fonte de saber, como mostra a seguinte formulação linguística: 1110

estamos na luz quando seguimos os ensinamentos daquele que é a Luz, a Verdade, a Vida, quando o amamos e colocamos sob seu Senhorio toda a nossa vida. Nota- se que a presença do hiperenunciador faz dos locutores, responsáveis pelos textos, apenas anunciadores, porta- vozes do hiperenunciador. Esta fonte transcendental é também aquela que anuncia a verdade, e por estar relacionada a voz do próprio Jesus, faz com que a suposta verdade anunciada seja absorvida pelo co- enunciador como incontestável. Nesse sentido, Maingueneau afirma que, O aforizador assume o ethos do locutor que está no alto, do individuo autorizado, em contato com uma Fonte transcendente. Ele é considerado como aquele que enuncia sua verdade [...] (MAINGUENEAU, 2010, p. 14). No texto Princípio da Consciência de Identidade, o enunciador se utilizada das particitações, citações que não são completas, mas que trazem à memória do co- enunciador cristão a lembrança de uma passagem bíblica, sem que haja qualquer referência explícita à referida passagem. É o que podemos constatar no seguinte excerto: Em Cristo, imagem do Deus invisível, foi o homem criado à imagem e semelhança do Criador. Em Cristo, Redentor e Salvador, a imagem divina, alterada no homem pelo pecado, foi restaurada em sua beleza original e enobrecida pela graça de Deus. É maravilhoso saber que temos a nossa imagem e semelhança divina restaurada por Jesus Cristo e enobrecida pelo Espírito Santo. Aqui, a formulação imagem do Deus invisível é uma particitação. Ela não apresenta nenhuma indicação que mostre de onde foi retirada, mas, as aspas de modalização autonímica revelam que se trata de uma formulação que vem de outro lugar. Entretanto, para saber a origem da particitação, o co- enunciador precisa retomar certa memória, fazendo emergir, portanto, do interior do interdiscurso 1111

católico, o texto bíblico. Vale salientar, contudo, que não é qualquer leitor desse excerto que fará a conexão com o texto bíblico, é preciso, para fazer essa ligação ser, de fato, um co- enunciador do discurso cristão- católico. Em outras palavras, para entender o excerto acima, é necessário fazer parte da comunidade dos que partilham do espaço discursivo no qual o discurso cristão- católico se constitui. CONCLUSÕES As análises mostraram que 1) a cenografia da pregação, aliada à cena validade da reunião familiar; 2) a necessidade de materializar a voz divina, por meio das aforizações e das particitações, a fim de validar o discurso do locutor; e 3) a presença constante de um hiperenunciador, também materializado pelas aforizações e pelas particitações, são formas de recorrer à memória do bom cristão, ou seja, do co- enunciador específico do posicionamento carismático. Dessa forma, os textos presentes no site da RCC materializam discursos que estão, de diferentes formas, vinculados ao campo religioso. Tais discursos podem ser identificados, como mostramos nas análises, por meio de diferentes indícios, tanto textuais, quanto discursivos. REFERÊNCIAS MAINGUENEAU, D. A cena de enunciação. In:. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza- e- Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001. p. 91-110. 1112

MAINGUENEAU, D. A noção de hiperenunciador. In:. Cenas da enunciação. Curitiba: Criar Edições, 2006. p. 92-110. MAINGUENEAU, D. Aforização enunciados sem texto? Tradução de Ana Raquel Motta. In: SOUZA- E- SILVA, M. C. P. de.; POSSENTI, S. (Org.). Doze conceitos em Análise do Discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. p. 9-24. SILVA, E. G. da. Os desencontros da fé: análise interdiscursiva de dois movimentos da Igreja Católica. Tese de Doutorado em Linguística. Campinas: Unicamp, 2009. 1113