Teologia e ecologia. capítuloum



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Transcrição:

capítuloum Teologia e ecologia Quando transbordou para além dos limites de seu leito judaico original, a torrente caudalosa do evangelho cristão não encontrou uma paisagem plana e sem história, mas o oposto. Aquela paisagem greco-romana também tinha seus leitos antigos, pelos quais convidava a correr as águas do evangelho. Portanto, para compreender as formas que a teologia cristã foi tomando naqueles primeiros séculos de nossa era, é necessário entendermos algo daqueles leitos antigos que contribuíram para canalizar a fé cristã em direção aos rumos que tomaria no final. Desde tempos imemoráveis, os gregos como todo grupo humano que busca subsistir no meio da natureza, se interessaram pelo mundo que os cercava. Alguns de seus filósofos mais antigos diziam que o mundo é feito de água; outros, de fogo; outros, dos quatro elementos água, fogo, ar e terra;

Desafios do século 21 para o pensamento cristão outros tratavam de explicar os movimentos do mundo e da natureza em termos dos princípios do amor e do ódio; outros diziam que tudo, inclusive os deuses, era composto de partículas ínfimas às quais chamavam de átomos. A todos estes esforços para descobrir a essência das coisas deu-se o nome de filosofia, cujo significado é amor ou gosto pela sabedoria. Finalmente, contudo, os grandes mestres gregos passaram deste interesse por conhecer a natureza das coisas para o interesse por conhecer a natureza do próprio conhecimento. Parece claro que quando um filósofo diz, por exemplo, que tudo é fogo, ele está ultrapassando os limites do puramente empírico, fazendo um juízo que vai além do que seus sentidos lhe dizem. Além disso, há casos nos quais os sentidos nos enganam, como quando os olhos nos dizem que um bastão se quebra ao ser introduzido na água. As coisas estavam neste pé quando chegou o grande florescimento da filosofia grega, com seus grandes mestres Platão e Aristóteles. Platão percebe não apenas que o conhecimento ultraspassa os limites do empírico, mas também que os sentidos nunca nos dão todos os dados necessários para chegar ao verdadeiro conhecimento. De fato, se o verdadeiro conhecimento for o conhecimento de realidades imutáveis, há uma descontinuidade radical entre esta meta e os dados que os sentidos nos proporcionam, referindo-se todos às realidades passageiras. Os sentidos me dizem que uma maçã é redonda, e a reconheço como tal, mas o certo é que nunca vi coisa alguma que seja pura e perfeitamente redonda. De onde então aprendi essa ideia de redondeza? Consideremos outro exemplo. Dois 16

Teologia e ecologia sentidos me dizem que duas maçãs mais duas maçãs são quatro maçãs, e que duas pedras mais duas pedras são quatro pedras. Porém, além das maçãs e das pedras, o intelecto me diz que dois e dois são quatro. De onde então aprendi que dois e dois são quatro? Com relação a essa pergunta, houve na Antiguidade duas respostas fundamentais respostas que são muito importantes para a questão ecológica e, sobretudo, para a questão do modo pelo qual a igreja e a fé cristã têm se relacionado com o mundo da natureza. A primeira destas duas respostas é a de Platão. Essencialmente, Platão diz que o verdadeiro conhecimento não vem das percepções que os sentidos nos oferecem, mas de outras realidades superiores e imutáveis. Há, então, dois níveis de realidade ou por assim dizer, dois mundos: o mundo dos sentidos, este mundo que vemos e que tocamos, mas que não pode nos dar conhecimento verdadeiro de realidades imutáveis, e o mundo das ideias, mundo de realidades imutáveis e inteligíveis, no qual está o verdadeiro conhecimento. Como sabemos, Platão explica nosso conhecimento desse mundo das ideias em termos da pré-existência da alma, de modo que se eu reconheço agora que essa maçã é redonda é porque naquela outra existência, antes de cair nesse mundo do sensível, vi a ideia pura da redondeza cuja sombra agora reconheço na maçã. Para nossos propósitos aqui, no entanto, o que nos importa enfatizar é o fato de que, dada essa cisão entre o mundo do material e o mundo do inteligível, e dada também uma cisão axiológica, de modo que supostamente aquele mundo das ideias vale muitíssimo 17

Desafios do século 21 para o pensamento cristão mais do que este mundo transitório das realidades materiais, não há por que se preocupar demais com a natureza que nos rodeia. O importante são as ideias, as realidades que estão por trás dessa natureza. Assim, há na tradição platônica uma forte tendência, se não antiecológica, de não dar muita importância à ecologia o que no final das contas vem a ser praticamente o mesmo. O mais famoso dos discípulos de Platão, Aristóteles, abordou o problema do conhecimento de um modo diferente. Aristóteles concorda com seu mestre que há uma diferença real entre os dados dos sentidos e o verdadeiro conhecimento. Porém, não concorda com o modo pelo qual Platão resolve o problema. Ao contrário; para Aristóteles, os sentidos desempenham um papel crucial no processo do conhecimento, que é um processo mediante o qual o intelecto abstrai dos dados dos sentidos os conceitos que constituem o conhecimento. Assim, por exemplo, embora nunca tenha visto a redondeza propriamente dita, à medida que vou vendo muitas maçãs e muitas pedras, e muitas outras coisas semelhantes, vou abstraindo de todas elas esse elemento comum ao qual chamo redondo. A ideia de redondo não existe em si mesma, em um mundo das ideias, como insinuava Platão, mas está nessa e naquela maçã, nessa e naquela pedra etc. Para o tema que nos importa, isto é, o interesse pela natureza, sua viabilidade e sua relação com a raça humana, parece claro então que a teoria do conhecimento que Aristóteles propõe é muito mais favorável ao nosso estudo e, portanto, tanto à exploração quanto à preocupação ecológica, do que a de Platão. 18

Teologia e ecologia Em resumo, voltando à nossa imagem do Evangelho como um rio que transborda em seu leito, quando este evangelho apresentou-se pela primeira vez ao mundo grego-romano, foram-lhe oferecido dois leitos antigos pelos quais a teologia cristã poderia correr. E um deles era mais favorável que o outro às preocupações com o mundo e a natureza. Isto no campo das ideias. Porém, ainda que Platão não tivesse gostado disso, o fato é que o ser humano nunca vive puramente no mundo das ideias. O ser humano vive também em um mundo de relações humanas, políticas, econômicas etc. Então, para entender aquela paisagem por onde se esparramaram as águas do Evangelho, é preciso recordar que Aristóteles tinha acabado de propor suas teorias quando boa parte do arcabouço do mundo grego antigo veio abaixo. Aristóteles foi mestre de um príncipe macedônio chamado Alexandre, a quem a posteridade conhece como Alexandre, o Grande. Em poucos anos, Alexandre e suas falanges apropriaram-se não apenas de toda a Grécia antiga, mas também de toda a bacia oriental do Mediterrâneo, inclusive a Ásia Menor, a Síria, a Palestina e até o Egito; e logo partiram em uma grande campanha de conquista em direção ao Oriente, onde se apoderaram do antigo império persa e chegaram às fronteiras da Índia. Ainda que o império de Alexandre não tenha durado muito, suas consequências perduraram por longo tempo e até recrudesceram com o passar dos anos. Onde antes existiram culturas e modos de ver a vida relativamente independentes uns dos outros, surgia agora uma cultura 19

Desafios do século 21 para o pensamento cristão cosmopolita em que se mesclavam pessoas e ideias de muitas origens e contextos diferentes. O grego tornou-se a língua comum do Mediterrâneo Ocidental é por isso que todo o Novo Testamento foi escrito em grego e junto com o idioma propagou-se também a cultura grega. Porém, essa cultura supostamente grega já não era a da antiga Atenas de Sócrates e Platão, mas uma cultura grega à qual se haviam adicionado elementos de tantas outras culturas quantas Alexandre e seus seguidores conquistaram. Além disso, as culturas antigas subsistiam todas elas subordinadas à cultura grega dominante, mas ao mesmo tempo guardando algo de sua identidade e suas práticas tradicionais. 1 Tudo isso cresceu com a expansão do poderio romano, que pouco a pouco foi ocupando o lugar dos sucessores de Alexandre em toda a bacia oriental do Mediterrâneo. Agora, além de uma cultura comum, havia um Estado comum. Deste Estado eram súditos tanto gregos quanto sírios, egípcios, judeus, trácios etc. Todos esses povos mesclavam- -se nas praças onde havia lugar de comércio, nos exércitos de tropas auxiliares que os romanos recrutavam onde quer que impusessem seu domínio e nas cidades que eram o orgulho do Império Romano. E aqui é importante mencionar o sentido original de uma palavra que sempre entra em jogo quando falamos de 1 Neste sentido e como uma reflexão preliminar acerca do tema de nosso quarto capítulo, cabe ressaltar o paralelismo entre o que se sucedeu no mundo antigo com as conquistas de Alexandre e o que sucedeu em nossa América com as conquistas ibéricas. Estas também pretenderam civilizar nossos antepassados indígenas, a quem se impuseram os idiomas, costumes e religião ibéricos. Por algum tempo, pareceu que as tradições ancestrais destas terras estavam a caminho de desaparecer. Porém, em épocas mais recentes temos visto o despertar das culturas, línguas e tradições antigas agora adaptadas aos desafios do mundo moderno, mas nem por isso menos arraigadas na Antiguidade pré-colombiana. 20

Teologia e ecologia ecologia: a palavra civilização. Originalmente, civilização era o mesmo que cidadificação. Para os romanos, como para os antigos gregos, a maior invenção humana era assim a cidade. Todo império, para subsistir, necessita de uma ideologia que justifique sua existência e suas ambições. Um dos modos pelos quias os romanos justificaram suas ambições imperialistas foi precisamente seu programa civilizador, ou seja, seu programa de construir e promover o crescimento e o embelezamento das cidades. Assim, em um dos elogios mais famosos ao Império Romano, o eloquente orador Élio Aristides declara: Tanto as partes costeiras quanto o interior se encheram de cidades, algumas recém-fundadas e outras aumentadas e melhoradas por vós.... Por todas as partes há ginásios, fontes, arcadas monumentais, templos, oficinas, escolas, e pode-se dizer que todo o mundo civilizado, que desde o princípio adoeceu, fora trazido pela ciência correta a um estado de saúde.... e por vossa, a celebração nunca acaba, como uma chama perene, mas avança de tempo em tempo e de população em população, demonstração de júbilo que se justifica pela felicidade de que todos gozam. 2 Contudo, o crescimento das cidades nem sempre era um sinal da felicidade de que falava Élio Aristides. Em muitos casos, o crescimento das cidades era devido mais aos fatores que dificultavam cada vez mais a vida no campo. Assim, por exemplo, tem se falado muito acerca do enorme crescimento da cidade de Alexandria, na desembocadura do Nilo. Essa 2 Oration rom. 4. 94, 97, 99. 21

Desafios do século 21 para o pensamento cristão cidade, de origem relativamente recente, pois havia sido fundada por Alexandre, o Grande no ano de 332 a.c., logo chegou a ser a segunda cidade do Império Romano, e a rivalizar em tamanho e em esplendor com a própria Roma. Seu farol era uma das maravilhas do mundo. E sua biblioteca e museu (que na realidade era mais parecida com uma universidade do que com um museu moderno) tornaram-na o principal centro intelectual de todo o Império Romano. O que muitas vezes se esquece é que o crescimento excessivo de Alexandria era paralelo ao empobrecimento campestre do egípcio. Visto que o clima do Egito é favorável à preservação de antigos papiros, existem dados que nos permitem comprovar o terrível impacto que as políticas civilizadoras ou cidadificadoras de Roma tiveram sobre as zonas rurais do Egito. Os impostos chegaram a tal nível que muitos camponeses tiveram de abandonar as terras porque não podiam pagá-los. Há registros de aldeias inteiras que se tornaram totalmente despovoadas no transcurso de uma geração. Enquanto isso, o governo, ao mesmo tempo em que tratava de embelezar Alexandria e de dotá-la de toda sorte de facilidades, promulgava decreto após decreto proibindo os camponeses de viver na cidade ainda que a própria existência de tais decretos mostrava sua ineficácia. 3 Tudo isto, que nos reporta a situações que todos conhecemos nos dias de hoje, significava que a população do Império Romano especialmente a urbana era uma população com um profundo sentimento de desarraigamento. 3 Há um estudo excelente desta situação no Egito, que provavelmente se repetia em outras províncias do Império Romano: Naphtali Lewis, Life in Egypt under Roman Rule (Oxford: Clarendon Press, 1983). 22

Teologia e ecologia O habitante típico de Alexandria, Éfeso, Antioquia ou Corinto já não tinha uma identidade própria. Do mesmo modo que a população judaica havia se espalhado por boa parte do mundo conhecido, ao que chamamos de Diáspora, assim também se espalharam os egípcios, os gregos e outros. Na própria Roma havia autores que se queixavam da entrada de outras culturas e tradições, enquanto os próprios autores romanos, mesmo os que escreviam sobre as maravilhas da vida no campo, viviam na cidade. Em síntese, o que isso tudo significa é que a população greco-romana do primeiro século, e especialmente a população urbana, era uma população em transição, afastada de suas raízes históricas, em dúvida acerca de suas religiões ancestrais, em busca de identidade própria e, portanto, alienada do mundo e da natureza. Destacando nosso objetivo, é necessário então ressaltar que quando a mensagem cristã transbordou para essa bacia do Mediterrâneo, o que encontrou foi uma população sedenta de sentido e de identidade, mas ao mesmo tempo uma população que ansiava acalmar essa sede bebendo de águas individualistas e ultramundanas. O habitante típico daquelas cidades helenistas onde se pregou o Evangelho nos primeiros séculos não queria que lhe falassem da natureza nem do mundo físico, acerca dos quais tinha bem poucas esperanças; queria antes que lhe falassem de sua alma, de sua salvação eterna, de seu destino individual. (E que seja dito de passagem, se pouco lhe interessava o mundo físico, muito menos o mundo político no qual sua opinião ou participação não servia para nada). 23

Desafios do século 21 para o pensamento cristão É por isso que o gnosticismo constituía um rival e uma ameaça tão grande para a igreja nascente. Bem se podia dizer que o gnosticismo se adaptava melhor às necessidades da época do que o cristianismo ortodoxo. O gnosticismo conferia sentido àquele mundo confuso do primeiro século, simplesmente cortando o nó cego e dizendo que, afinal de contas, o mundo não tinha nenhuma importância. Ao dizer que este mundo físico não é senão um obstáculo à verdadeira salvação, o gnosticismo expressava precisamente o que muitas pessoas queriam ouvir. Se o mundo é mau, se não é mais que um obstáculo à minha salvação, o fato de eu não ter encontrado meu lugar nele não é razão para me preocupar. Aqui não é o foro para uma ampla discussão das razões pelas quais a igreja antiga rechaçou o gnosticismo. Basta dizer que, apesar de seu atrativo, o gnosticismo parecia radicalmente incompatível com a fé cristã. O cristianismo afirmava que o Deus que conhecemos em Jesus Cristo é o mesmo Deus que no início criou todas as coisas e viu que eram boas; o cristianismo afirmava que entre as coisas boas que Deus criou encontra-se o corpo humano, que no final há de ressuscitar para a vida eterna; sobretudo, o cristianismo proclamava a encarnação de Deus em um ser humano de carne e osso. Tudo isso era contrário ao gnosticismo e, portanto, apesar de ter havido muitas tentativas de ligar intimamente as duas doutrinas, no final a igreja cristã se declarou totalmente oposta ao gnosticismo. Além do mais, pode-se dizer que tanto o Cânon do Novo Testamento quanto o Credo dos Apóstolos são, pelo menos 24

Teologia e ecologia em parte, resultado do desejo dos cristãos ortodoxos de deixar bem claro o contraste entre sua doutrina e a do gnosticismo. 4 Com relação ao que nos interessa aqui, parece fácil perceber que, ao rechaçar o gnosticismo, o cristianismo rechaçou uma doutrina que por sua natureza teria bem pouco a dizer quanto à preocupação ecológica. Se a realidade física é má por natureza, é de se esperar o fato de que ela vá mal, e não há por que nos preocuparmos. Todavia, apesar de todos os esforços antignósticos por parte dos líderes da igreja, as tendências da época não podiam deixar de afetar o modo como o evangelho era interpretado. Ao mesmo tempo em que levavam a cabo a grande campanha antignóstica, estes mesmos grandes mestres do cristianismo se achavam envolvidos em outra luta de iguais proporções para garantir um lugar para a fé cristã dentro da cultura greco-romana. Quanto aos modos empregados para obter este lugar falaremos em outra ocasião, quando discutirmos a questão da relação entre fé e cultura. O que nos interessa saber de imediato é que nesta campanha aqueles mestres do cristianismo encontraram nas doutrinas de Platão e de seus seguidores um grande aliado. Ao se defrontar com as pessoas mais educadas entre os críticos do cristianismo, os teólogos cristãos apelavam para várias doutrinas de Platão que pareciam coincidir ou ao menos render apoio aos ensinamentos cristãos. 4 Discuti este tema, mostrando como o credo precisa ser entendido deste modo, em Historia del pensamiento cristiano, volume 1 (Miami: Caribe, 1992), p. 143-54. 25

Desafios do século 21 para o pensamento cristão O que no principio foi um recurso apologético, pouco a pouco foi se convertendo parcialmente no próprio conteúdo da teologia cristã. E já para o fim do século 2, muitos dos teólogos cristãos mais distintos também eram platonianos. Cem anos mais tarde, no fim do século 3, a maioria dos teólogos pertencia a essa escola. Ao final do século 4, eram bem poucos os teólogos que propunham uma alternativa ao platonismo. E em meados do século 5, quando estas questões filosóficas se misturavam com o debate cristológico e as autoridades imperiais interviram para forçar o consenso neste debate, boa parte dos que sustentavam as teorias de Aristóteles teve de partir para o exílio, que era na época o império persa. O resultado de tudo isso é que durante os primeiros séculos da Idade Média os teólogos cristãos interpretavam a realidade em termos essencialmente platônicos. Desta perspectiva talvez seja necessário repetir o verdadeiro conhecimento não é obtido por meio dos sentidos, nem tampouco consiste em conhecer as coisas passageiras desse mundo. Seguindo uma adaptação ao platonismo clássico proposta por Santo Agostinho no final do século 4 e meados do século 5, pensava-se que o conhecimento verdadeiro fosse obtido mediante uma iluminação do Verbo eterno de Deus. Visto que o estudo dos objetos materiais pode nos ocultar essa iluminação, e no melhor dos casos não contribui para ela, tal estudo não tem nenhum lugar na vida da pessoa verdadeiramente sábia, o próprio Agostinho mostra-se muito dolorido e arrependido porque em certa ocasião se ativera por uns minutos a observar a conduta de 26

Teologia e ecologia uma lagartixa, quando na realidade deveria ter se ocupado das verdades eternas. Séculos mais tarde, Anselmo de Canterbury declarou que, porquanto o ser humano foi feito para a contemplação de Deus, se por apenas um instante afasta sua vista do Eterno, a fim de contemplar em seu lugar o mais formoso dos astros, não poderá em toda a eternidade pagar por tal pecado. Devido a tais preconceitos contra o conhecimento que se obtém por meio dos sentidos, não há de nos estranhar o fato de que durante os primeiros séculos da Idade Média a observação sistemática da natureza e de seu funcionamento e equilíbrios caíram em desuso. Certamente podemos imaginar que os camponeses ainda observavam o céu e os ventos para ver se iria chover ou se era uma boa época para plantar. As mulheres que assavam o pão também observavam como em épocas de calor o fermento levava menos tempo para levedar a massa em comparação ao inverno. Sem estas observações teria sido impossível viver. Porém, do ponto de vista das elites intelectuais, e certamente dos grandes mestres da religião, tudo isso era inferior, um empecilho à contemplação das verdades eternas. O efeito que tudo isso teve sobre o tema que discutimos é ambivalente. Por um lado, os avanços tecnológicos foram tão lentos que a questão da destruição do meio ambiente foi apenas ventilada. Uma sociedade como aquela, que não considerava o estudo das coisas materiais como digno de se empreender, não poderia produzir grandes inventos ou inovações. Provavelmente as duas invenções mais importantes, do ponto de vista do meio ambiente, foram 27

Desafios do século 21 para o pensamento cristão a invenção do arado de relha e dos arreios para cavalos. Com eles produziu-se um aumento na terra cultivada, o que, por sua vez, permitiu certo aumento da população em áreas anteriormente pouco habitadas. Os bosques foram reduzindo paulatinamente, ao ponto de a caça começar a escassear e os nobres começarem a reservá-la para si. Esse processo, porém, foi tão lento que quase ninguém percebeu e quem o percebeu não tinha os meios para constatar que o que via em seu ambiente local era parte de um processo geral. Por outro lado, devido à mesma falta de interesse na realidade física e natural, as mesmas mudanças ecológicas que estavam ocorrendo e puderam ser observadas passaram despercebidas. Quando ocorria de alguém percebê-las, não pensava que deveria ou poderia fazer grande coisa para combatê-las. Foi apenas nos séculos 12 e 13 que as coisas começaram a mudar. Por uma série de motivos, dos quais o mais importante foram as Cruzadas, cresceu o contato com o mundo muçulmano, tanto no Oriente Próximo quanto na Espanha e na Sicília. Como resultado desses contatos, a Europa Ocidental cristã voltou a conhecer muitas das obras de Aristóteles, que tinham sido esquecidas desde o século 5. Este redescobrimento de Aristóteles gerou uma verdadeira revolução filosófica e teológica. A princípio, as autoridades das igrejas, assim como quase todos os teólogos e professores de teologia, se opuseram à nova filosofia. Houve condenações e proibições de se estudar Aristóteles. Como se sabe, os que assumiram a vanguarda nos esforços por produzir uma teologia que levasse em conta a recém-descoberta filosófica de Aristóteles foram São Tomás 28

Teologia e ecologia de Aquino e seu mestre, Alberto, o Grande. No começo, a posição desses dois grandes mestres dominicanos encontrou forte oposição tanto entre a hierarquia eclesiástica quanto na comunidade teológica. Muitos foram os tratados escritos para condenar a nova filosofia e teologia tomistas. No fim, contudo, impôs-se a teologia de São Tomás, com sua forte dose de Aristóteles. Para o que nos interessa aqui, é importante recordar o que dissemos no início acerca do contraste entre o modo como Aristóteles entendia o conhecimento e o modo como seu mestre Platão o entendia. A reintrodução de Aristóteles na Europa Ocidental não trouxe somente uma nova filosofia ou um desafio a algumas das doutrinas até então tidas como tradicionais. O que Aristóteles levou à Europa Ocidental do século 18 foi uma maneira completamente nova de ver o mundo ou, melhor dizendo, um outro ângulo de ver o próprio ver e, portanto, uma nova atitude de aplicar o ver ao mundo das realidades físicas. Se o conhecimento se baseia, como defendia Aristóteles, no processo mediante o qual o intelecto abstrai os conceitos gerais dos casos particulares que os sentidos percebem, então é importante dedicar-se à observação destes casos particulares, destes objetos sensíveis que para o platoniano não passavam de obstáculo ao verdadeiro conhecimento. Embora os teólogos tenham dado a importância merecida a São Tomás e seu mestre e talvez até mais do que mereciam a história das ideias e da civilização ocidental não fez o mesmo. Foi a reintrodução de Aristóteles, cuja iniciativa foi tomada por esses dois mestres, que tornou 29

Desafios do século 21 para o pensamento cristão possível o grande despertar das ciências naturais que no final deu origem à explosão tecnológica que se tornou característica fundamental da civilização ocidental na Idade Moderna. Não foi por acaso que Alberto, o Grande, escreveu obras de astronomia, zoologia e botânica. Para Alberto e Tomás e graças a eles para as gerações posteriores a observação da natureza era campo próprio da atividade de sábios e de cristãos. Por outro lado, não se deve dar crédito demais a Aristóteles e nem às concepções filosóficas que eram discutidas nas universidades. Pouco antes de Tomás e de Alberto, São Francisco cantara para o irmão Sol, irmã Água e irmão Lobo. E antes ainda de São Francisco, São Bernardo de Claraval escrevera inúmeros poemas, sermões e meditações acerca da humanidade de Cristo algo que não ocorrera a São Anselmo, preocupado que estava com as realidades imutáveis e puramente intelectuais. Aconteceu que os séculos 12 e 13 foram épocas que, por diversas razões, levaram ao questionamento de boa parte da sabedoria tradicional, inclusive da interpretação platoniana da fé cristã. As cruzadas haviam aberto novos horizontes à Europa Ocidental. O crescimento das cidades e do comércio forçava as pessoas de inclinação mais prática, a se ocuparem das necessidades físicas da vida, organizando-as de maneira que até então não haviam sido necessárias. Até a construção das grandes catedrais góticas, obra fundamental da época, exigia que fosse prestada à pedra e à sua natureza uma atenção que elas não pareciam ter merecido antes. Foi neste ambiente que irromperam as obras de Aristóteles, 30

Teologia e ecologia à imagem e semelhança de Deus, um senhorio que se limita pelo amor. E percebemo-lo também na segunda narrativa, onde a liberdade do ser humano para explorar a natureza encontra limite simbólico na árvore proibida. A natureza com certeza o alimentará, mas o humano terá de respeitar certos limites. Isto é o que Gênesis nos diz a respeito dos propósitos de Deus para a criação. Porém, Gênesis nos diz mais. Depois da história da criação nos primeiros dois capítulos, o terceiro conta a história do pecado. Se a existência da árvore proibida no segundo capítulo nos fala dos limites do governo humano sobre a natureza, e dos limites no seu deleite dela, o comer dessa mesma árvore no terceiro capítulo nos fala da transgressão desses limites e suas consequências para a humanidade. Fala-se muito sobre o tema da queda e do pecado original. Porém, não se enfatiza o suficiente o caráter ecológico desse pecado. Ao estender a mão e pegar o fruto proibido, o homem e a mulher negam os limites que Deus colocou para seu governo e deleite da natureza. Gênesis 3 versículo 6 descreve as características dessa árvore proibida pelos olhos da mulher tentada. Diante da tentação, a árvore proibida é boa para se comer, agradável aos olhos e desejável para dar entendimento. Em outras palavras, transgredir os limites redundará em benefício próprio. Não é esta a tentação ecológica que nos levou à situação atual? Um empresário vê que uma ilha quase deserta, é boa para banhos de mar, agradável para tomar banho de sol, e desejável para se ganhar muitos milhões. Ele compra, toma posse dela e a transforma em um dos tantos falsos 45

Desafios do século 21 para o pensamento cristão paraísos que surgiram nas últimas décadas em nossas terras tropicais. E não apenas um empresário específico, mas toda sociedade baseada no que parece bom, agradável e desejável, aos próprios olhos, é também uma sociedade na qual não há limites para a contaminação atmosférica, o envenenamento das águas, a destruição da fauna e da flora. Porém, o Gênesis não se limita à transgressão dos limites. Determinadas consequências acompanham a transgressão. Muito poderia ser dito a este respeito. Mas, vamos nos ater ao que segue a partir do versículo 17. Ali Deus diz ao homem:...maldita é a terra por tua causa. O fato de transgredir os limites ecológicos comendo da árvore proibida não resulta em dano somente para o ser humano transgressor e para a árvore violada, mas para toda a criação. Maldita é a terra. Isto nos recorda o que vimos tantas vezes no âmbito da ecologia: o equilíbrio da natureza é tão precioso que, quando a violamos em um ponto, as consequências dessa transgressão vão muito além do que poderíamos imaginar. Queimamos as selvas amazônicas e causamos mudanças climáticas na África. Espalhamos pesticidas em nossos campos para melhorar as safras e destruímos não apenas os insetos nocivos, mas também seus inimigos naturais, de modo que temos de continuar desenvolvendo novos inseticidas. Porém, a maldição da terra afeta não apenas a própria terra, mas também o ser humano. Maldita é a terra por tua causa, com sofrimento comerás dela todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e ervas daninhas Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra... 46

Teologia e ecologia Em outras palavras. "A terra será não apenas maldita por tua causa, mas também maldita para ti. A terra que foi tua mãe, porque dela foste feito, estes animais feitos do mesmo pó que tu, e que, portanto, são teus irmãos, já não serão tua mãe e teus irmãos, mas te serão contrários, terás de lutar com eles para sobreviver; em certo sentido, serão teus inimigos. Do mesmo modo que haverá inimizade entre a mulher e a serpente, assim também haverá inimizade entre ti e toda a criação. Para completar as coisas, essa inimizade que introduziste entre ti e a terra, entre ti e o pó, será inimizade que chegará até ao mais profundo de teu ser. Porque pó eras e ao pó retornarás. Eras parte dessa terra que violaste, e por mais que te aches dono e senhor, tirano e explorador da natureza, transgressor impune de teus limites, és parte dela, e a ela retornarás". Por último, antes de sair deste capítulo 3 de Gênesis, é preciso perceber o que diz este livro logo depois da transgressão a respeito das consequências para a natureza e para a relação entre o ser humano e o restante do mundo natural. No versículo 20 lemos que Adão chamou à sua mulher Eva. Recordemos que esta foi a ajudadora idônea, companheira igual a ele, carne de sua carne e osso de seus ossos, à qual o homem se negou a dar nome, compartilhando com ela seu próprio nome, chamando-a mulher. Agora, como resultado da transgressão, a primeira coisa que o varão faz é reclamar seu direito de posse e de controle sobre outro ser humano, pondo-lhe um nome. A transgressão ecológica, o comer da árvore proibida, leva não somente à maldição da terra e das relações entre a humanidade e seu meio 47

Desafios do século 21 para o pensamento cristão ambiente, mas também à maldição das relações humanas, à objetualização do outro, à sociedade de domínio e exploração mútua. E também vemos isto na vida contemporânea. A exploração e violação da natureza não ocorrem sem a exploração e a violação das relações humanas. Visto que boa parte destas relações humanas constitui a fibra do que chamamos atualmente de economia, deixaremos esse tema para o próximo capítulo. Basta recordar que quando fazemos da natureza um objeto de exploração, quando transgredimos os limites de nossa relação com a natureza, já demos o primeiro passo para transgredir os limites de nossa relação com o próximo, que no final das contas também é parte da natureza. Do mesmo modo que a mulher tentada viu na árvore um objeto digno de desejo, porque lhe pareceu bom e agradável às suas vontades, na sociedade que carrega o selo da transgressão nós nos relacionamos uns com os outros com base no que o outro pode trazer de bom para nós. Até aqui vimos que as Escrituras nos apresentam uma visão bem real de nossa relação com a natureza, como as consequências são devastadoras quando essa relação se perverte. Porém, a Bíblia não fala apenas do pecado e de suas consequências. A Bíblia fala também de um Deus de amor que não abandona sua criatura, ainda que ela o abandone. A Bíblia fala de um Deus que se preocupa com sua criação, ainda que a transgressão a tenha corrompido. A Bíblia fala de um Deus de salvação. A Bíblia fala do Evangelho. Aqui é preciso ressaltar acima de tudo a continuidade entre tudo que acabamos de dizer acerca de Gênesis, e o 48