A viagem da palma (1961) Xilogravura de Gilvan Samico 37 x 37,5 cm Coleção Marcantonio Vilaça
Poemas Carlos Nejar Guitarra-homenagem para Marcantonio Vilaça Marcantônio, o tempo se acordou contigo. Acordou-se antes, fora dos sentidos. E quando dormias acordou-te longe. Nunca mais ouviste o rumor do mundo. Porque estás defronte a outro, resoluto. Muito mais secreto. De ondas e de trigo. Nesta espreita surda e na surda espera Poeta, romancista e ensaísta, desde o livro de poemas Sélesis (1960) publicou inúmeras obras, sendo as mais recentes: Os viventes (2000), Todas as fontes estão em ti (2000), Rio Pampa Moinho das tribulações (2000), Ulalume (2001) e O livro do peregrino (2002). 211
Carlos Nejar de Deus na janela de estares vivo. Fica mais um pouco sem que a terra ouça de teus pais o rouco sentimento. Tudo já não mais repartes, nem a dor é escudo entre ti e a arte. Sei, é longa a chama e é mais curta a morte. Curta esta camisa de tão puro corte que te veste. E as cinzas do fogo mais arde, onde não precisas. Fica mais um pouco. Conquistaste a vida, já tens o mercado mais silente. E os quadros que se acostumaram com o olhar vergado e o teu raciocínio mágico e preciso. Fica mais. Tão pouco teu viver. Soberbo o que foi teu. Força é acordar o tempo. Que ele te conserve cada vez mais verde 212
Poemas sob o céu e o campo. Toda a terra cobre o que, sendo eterno, nunca mais é o mesmo. Tudo o que é humano não quer pesar muito. Fica mais um pouco. Tercetos finais para Alberto da Costa e Silva Como teu pai, sou poeta. Como meu filho também Segues dos versos a lei. Espero mas nada sei que um dia chegue a esta Casa, tendo, talvez, senso e brilho como o teu, com as próprias asas. Seja do pai, miglior fabro, Fabrício, por onde acabo. O tempo é Deus na justiça e conhece sem cobiça meu coração. Se te escrevo, é porque percebo o peso de ter na poesia um filho: que te estima, como eu prezo 213
Carlos Nejar nossa amizade, de quando em Lisboa me hospedaste, junto ao Tejo. Vai voltando o tempo na curta haste. Passam vontades e mandos. Como do teu pai cuidaste, cuido eu do filho voando. Nada tenho, salvo a sorte De viver como quem parte. Viver nos fusos da arte; morrer só de amor amando, sem morrer da própria morte. Balada a Sadi José, o que partiu antes Desces à terra desces à terra desces e o peso é o mesmo extremo de apagado medo. Com as maçãs, tua pele singrará. Não vejo teu motivo, irmão, de ires mais cedo. Os negócios podem continuar. O empório de viver é lerdo. 214
Poemas Tuas causas pesam e o teu escritório já navega a esmo. Gordo é o teu mistério. O prazer na mesa. E tuas mulheres não dormem tão rentes, como agora, a terra. Porque os teus parentes todos são precisos no terno de vermes. Nem mais a cintura das calças te apertam. Tudo é luxurioso quando a tua pose madurar com as reses. Quantos laudos podes atulhar de números e os preceitos sólidos e os brocardos úmidos? Desces onde tudo: os botões, os vales, dormem, caem os fundos. Na casada terra, deitas e velejas, barcaça sem remos pela foz que desce sob o teu canteiro. E o timão floresce nos bramantes ossos: o tempo é o veleiro. 215
Carlos Nejar Dom Miguel de Unamuno, reitor de Salamanca A Espanha era eu. Tinha meu rosto cicatrizado. Era Miguel e os algozes sem nome, cúmplices do Estado. E nem isso. Foi-me tirada a reitoria de Salamanca e não pude apertar de uma pistola o dia, seu gatilho, o cão da arma contra os cães. E fui no exílio Espanha. Combati e não perdi a lâmina da alma. E eu era todos os meus mortos e os calados, postos sob o aceso pelotão. Eu era Espanha na mudez e no ferrão da pena, este punhal de chamas. Minha Espanha gemendo, tropeçada na discórdia civil, entre soldados tão encarniçados, que nenhum grão de pólvora deixou de ser meu rosto, entre 216
Poemas os escombros. Com os feridos feridos olhos, os ruídos de todo o meu povo atravessado. E as botas fumosas, as botas de escárnio de escárnio e chuva, negras balas. Não, a história sou eu, não eles. Eu, que resisti, que branco permaneço, inda com as negras balas. O que da névoa viu passar, sem Sancho, D. Quixote negro no galope. Se fui reitor, era em Paris Espanha. Era de Espanha, o mundo. De Espanha a Espanha: alma. Quando voltei não era mais Miguel de Unamuno, professor de quimeras e de versos. Era Miguel, o que não sabia o que fazer com a infância e nem teve merendas no colégio. 217
Carlos Nejar Era Miguel, com o rio Tajo nas costas E a inteligência intacta. Miguel, o que fazia força de ser pássaro e era um forasteiro de silêncios. Miguel, o que entortava suas lágrimas e não obedeceu ordem alguma da noite miliciana. Miguel, que não sabia nada. Nem viver ou morrer. Analfabeto de manhãs. Porque era Espanha. Lamento Mãe Mafalda jazes em madeira e pregos todos apertados. Não fixei teu rosto último e preciso. E se o ataúde se fechou: não pude recompor o riso. 218
Poemas Sob a terra ganhas tua meninice. Mãe Mafalda jazes lá por onde as aves ninhos já não fazem. Perdi a verdade que apenas tua morte vinha revelar-me. Mãe Mafalda jazes em madeira e pregos. Todos apertados. Junto à noite imóvel. De como Dante Alighieri responde a Brunetto Latini Não te preocupe a minha humanidade Que tormentosa julgas, mas a tua. Pois o mundo jamais será uma veia De tuas artérias secas, duras, nuas. Nem rima puxa rima na coréia Sem que o sentido brote como lua Do anoitecido texto. Nem se enleia O que a vida prepara na fundura. E se por designar vives perdido, Ou teu discernimento não perdura E apenas no dizer foi suspendido, 219
Carlos Nejar Com o dúbio disfarce da palavra, Nem sempre o perceber é o que nos salva. Mas quem não tem amor, não tem mais cura. Dante Alighieri responde a Guido Cavalcanti De demônios há muito estou liberto: Não meço o que não mede ou que me escreve. Até no fogo de varar, e eu servo Do vento, por que não irei mais leve? Irmão, por que não crês, se o que carrego É maior do que sou, mesmo tão breve? Até o fogo, o fojo, luz que vergo, Vergado, cardo ou flor, anjos me servem. Se tive enganos, fui na sorte grado. Se há gênio, preservo em desespero Mas canto, tão feliz no amor espesso, No amor que me perfaz e jamais cego. Por ser amor somente, quando espero, Dos mundos que se criam, fui criado. 220
Poemas clássicos Carlos Drummmond de Andrade Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. 221
Carlos Drummmond de Andrade O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu não me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo Soneto da perdida esperança Perdi o bonde e a esperança. Volto pálido para casa. A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre meu corpo. Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e da flora. 222
Poemas clássicos Não sei se estou sofrendo ou se é alguém que se diverte por que não? na noite escassa com um insolúvel flautim. Entretanto há muito tempo nós gritamos: sim! ao eterno. Confidência do itabirano Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público, Itabira é apenas uma fotografia na parede Mas como dói! 223
Carlos Drummmond de Andrade José E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? 224
Poemas clássicos E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, 225
Carlos Drummmond de Andrade sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? No meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. 226
Haicais japoneses Seleção e tradução de Ban ya Natsuishi e Casimiro de Brito Santoka Taneda (1882-1940) São as chuvas do Inverno. Estarei Desaparecendo? Organizadores de O Haicai no século XX Antologia. Coração vazio, assaltado por ondas furiosas Depois retiram-se Vários poetas 227
Vários poetas Hosai Ozaki (1885-1926) Caminhando na praia olho para trás nem uma só pegada Vou em volta até o fundo da pedra tumular Shuoshi Mizuhara (1892-1981) Crisântemo de Inverno apenas visitado pela sua fatigada luz Issekiro Kuribayashi (1894-1961) As ervas do Verão ardem depois da guerra nos fogões de cozinha 228
Haicais japoneses Bosha Kawabata (1897-1941) A magnólia perdeu as suas flores que será feito delas? 229