OPERAÇÃO OXÓSSI 102 PRESOS EM 6 PAÍSES UM NOVO PARADIGMA NO COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS Por: Alexandre Silva Saraiva, Delegado de Polícia Federal. Em março de 2009 é deflagrada a Operação OXÓSSI, pela Delegacia de Repressão aos Crimes Ambientais da Superintendência da Polícia Federal no Estado do Rio de Janeiro, com apoio da INTERPOL. 102 criminosos de lesividade extrema ao planeta foram presos na Suíça, Báli, Portugal, Espanha e República Tcheca, além do Brasil. Milhares de animais eram sistematicamente dizimados pelos criminosos, destruindo ecossistemas inteiros e contribuindo para a extinção de espécies selvagens, levando ao colapso ecológico de regiões inteiras. A mais significativa inovação da Operação OXÓSSI foi a correção da tipificação do tráfico de animais, sem a qual os criminosos teriam tido seus atos tipificados como crimes de menor potencial ofensivo e teriam sido colocados em liberdade com mero pagamento de cestas básicas ou prestação de serviços à comunidade. Com efeito, até então o tráfico de animais era erroneamente tipificado no artigo 29, da Lei n 9.605/98, ou seja, como crime de caça, portanto equiparado a pessoas que tivessem passarinhos em casa. A inovação foi plenamente acolhida pelo Poder Judiciário, sendo confirmada inclusive em instâncias superiores. Outros profissionais que atuaram no Processo chegaram a publicar artigos científicos copiando trechos inteiros de nossa autoria, constantes das Representações e Despachos da Operação OXÓSSI, deixando de mencionar a fonte e mesmo sem qualquer permissão. A APLICABILIDADE DO ARTIGO 180, 1º (RECEPTAÇÃO QUALIFICADA) DO CÓDIGO PENAL AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. O tráfico de animais silvestres é por muitos considerado a terceira atividade criminosa com maior movimentação financeira, perdendo tão-somente para o tráfico de drogas e o comércio ilícito de armas e munições. Entretanto, independentemente da posição que ocupe na escala econômica da criminalidade, ficou comprovado no decorrer da Operação Oxóssi, desenvolvida pela Polícia Federal em março deste ano, que o número de animais silvestres traficados alcança tranquilamente a casa dos milhões de espécimes todos os anos, certificando ainda que o mercado negro de animais silvestres e responsável pela extinção de diversas espécies animais, além de colocar em sério risco muitas outras. Entretanto, apesar da lesividade causada pelo tráfico de animais silvestres, não existe ainda na legislação pátria, um tipo penal específico para este tipo de crime na legislação ambiental vigente, porém tal prática criminosa é alcançada pela legislação penal geral insculpida no Código Penal. Desta forma, não é o caso de aplicação do Artigo 29 da Lei 9605/98, quando tratar-se de tráfico de animais silvestres, em razão das enormes diferenças da conduta
altamente lesiva e profissional dos traficantes de animais silvestres e a conduta de pessoas comuns, que meramente adquirem ou vendem um animal silvestre de forma isolada e pontual, esta última conduta sim, está enquadrada no Art. 29 e seus parágrafos da Lei 9605/98. Assim, não há que se falar em conflito aparente de normas entre o Art. 180 1º do CP e o Artigo 29 1º, III, da Lei 9605/98, vez que mesmo à luz do princípio da especialidade, nem sempre o dispositivo da legislação ambiental é o que melhor tipifica a conduta criminosa praticada em detrimento da fauna. O art. 180 do CP tem a seguinte redação: Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Receptação qualificada 1º - Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: Já o Artigo 29, 1º, III da Lei 9605/98 diz o seguinte: Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. 1º Incorre nas mesmas penas: (...) III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não
autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Podemos inferir da leitura do caput do Art. 29 que não constam ali os núcleos adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, vender, expor à venda, constantes do caput e do 1º do Artigo 180 do Código Penal. Estão descritos no caput apenas os seguintes verbos: Matar, perseguir, caçar, apanhar e utilizar espécimes da fauna silvestre. Assim, na verdade não há nenhum confronto entre o caput do Artigo 29 e o Artigo 180 do Código penal, vez que utilizar não é o mesmo que comercializar, tampouco o verbo utilizar pode ser equiparado a vender ou comercializar, no contexto do tipo penal constante do caput do Artigo 29 da Lei 9605/98, pois evidentemente se essa fosse a intenção do legislador esses verbos estariam descritos no caput o que não ocorreu. Poder-se-ia argumentar que isso não ocorreu em razão destes verbos (vender, transportar e comercializar) estarem previstos no inciso III deste artigo. Entretanto esse argumento carece de fundamento, uma vez que fica claro que o legislador quis tipificar situações completamente diversas, uma no caput para proteger a fauna e reprimir a caça, ou seja, refere-se apenas a animais retirados da natureza e, de outra ponta, no inciso III do mesmo Artigo, refere-se o legislador a animais provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão,.... Desta forma, a lei dos crimes ambientais, não contemplou a conduta daquele que comercializa animais silvestres oriundos da natureza, ou seja, a venda daqueles animais objeto de caça profissional ou amadora, pois isso não está escrito no caput do artigo. Ademais, duas evidentes diferenças surgem em uma primeira leitura comparativa entre os dispositivos legais supra: a primeira e mais importante é que o Art. 180 caput, tipificador da conduta criminosa denominada receptação faz a exigência de dolo direto, ou seja, só restará tipificada a receptação dolosa se demonstrado que o recebedor da coisa tinha pleno conhecimento de sua origem ilícita. Não é suficiente a dúvida quanto à origem da coisa (o que conforme o caso pode configurar a figura prevista no parágrafo terceiro receptação culposa) sendo necessária a absoluta ciência, no momento do recebimento, da origem criminosa da coisa apreendida. Nesta linha de raciocínio pode-se afirmar que o núcleo duro do tipo receptação é sem dúvida alguma, a consciência da origem criminosa da coisa, bem como seu efetivo recebimento.
Bem diferente é a essência do tipo previsto no Art. 29, 1º III, da lei 9605/98, é que nesse tipo penal o cerne do dispositivo é a consciência não da origem criminosa, mas a ausência de permissão, licença ou autorização para a guarda, venda, exportação ou depósito de espécimes da fauna silvestre, circunstância diversa daquela exigida no Artigo 180 do CP. Para mostrar essa distinção de forma clara vejamos a seguinte situação: Uma ave silvestre, sem licença é furtada de uma residência e, em seguida é comprada por pessoa que tem conhecimento da origem criminosa do animal. Seria o caso de aplicação, nesse caso muito mais gravoso que o anterior, do Art. 29, 1º III, da lei 9605/98? A nosso ver, teria nesta última situação inteira aplicação o artigo 180 do CP, diante da inequívoca origem criminosa dos animais. Uma situação é comprar o animal sabendo que o mesmo não dispõe de licença ou permissão, o que pode ser regularizado junto aos órgãos ambientais competentes, outra é adquirir um animal sabendo ser produto de crime mais grave e, portanto, insuscetível de regularização. Desta forma, responde pelo crime de receptação aquele que recebe animais oriundos de caça em unidade de conservação, caçados por profissionais (vez que os animais são caçados às centenas todas as semanas) associados em quadrilha, pois o tráfico de animais é atividade criminosa complexa envolvendo ampla rede de caça, transporte e distribuição. Veja-se que a caça profissional e realizada em unidade de conservação ou com emprego de métodos provocadores de destruição em massa, conforme parágrafos 4º e 5º do Art. 29 aumenta a pena da metade ( 4) e triplica ( 5º) em relação ao caput do artigo, assim, a pena máxima chegaria a quatro anos e meio, ultrapassando à pena prevista para o delito de quadrilha previsto no Art. 288 do CP, demonstrando a gravidade dessa conduta em relação a simples criação das espécies sem autorização onde, aí sim, tem aplicabilidade o Art. 29, 1º III, da lei 9605/98. Desta forma, no caso vertente, temos a caça profissional como o crime antecedente do crime de receptação. Então, ao se aplicar, sem maiores considerações, o princípio da especialidade, aquele que adquire um animal silvestre oriundo de furto, roubo ou caça profissional, ficaria absurdamente sujeito às mesmas penas que aquele que tão-somente adquiriu um pássaro da fauna silvestre desprovido de regularização, mas de origem lícita, por exemplo, animal nascido de casal de pássaros registrados, mas ainda sem registro (anilha). Certamente não foi a intenção do legislador da Lei 9605/98 A Lei dos Crimes Ambientais, por alguns denominada A lei da vida, piorar a situação da preservação do meio ambiente, como ocorre diante da não aplicação de delitos mais graves feitos para condutas evidentemente mais graves, sob o simples e corriqueiro argumento de aplicação do princípio da especialidade!
Chega a ser absurdo pensar que um criminoso, no mais das vezes como demonstra nossa experiência diária, atuando em verdadeira quadrilha, consubstanciada de diversas quadrilhas interligadas, esses malfeitores que capturam animais às centenas, muitos reincidentes, sejam agraciados com uma tipificação penal que foi dirigida aqueles cidadãos que, infelizmente movidos por uma triste tradição ainda em vigor em nossa sociedade, possuem em sua residência pássaros da fauna silvestre. A conseqüência de um entendimento diverso é o recrudescimento dos crimes ambientais e, in casu, contra a fauna, ante a absoluta ausência de uma resposta efetiva do Estado à grave situação vigente, a nosso ver, não por falta de lei, mas por um descuido por parte dos operadores do direito, em não fazer uma análise mais pormenorizada dos dispositivos da Lei 9605/98, talvez porque se viciou o pensamento em associar os crimes contra ao meio ambiente a crimes menores. Talvez por isso se encontre tão poucas lições jurisprudenciais sobre crimes ambientais, vez que poucos casos alcançam os tribunais, pois os delitos são quase sempre resolvidos à luz da Lei 9.099/95 e acabam em meros TCO s, ainda que o criminoso, seja membro de quadrilha e tenha já diversos antecedentes. O INCISO III DO PARÁGRAFO PRIMEIRO DO ART. 29 IMPÕE A APLICAÇÃO DO MESMO APENAS NOS CASOS DE ANIMAIS RETIRADOS DA NATUREZA. O Art. 29, 1º, III, menciona animais oriundos de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente não tendo também por isso este inciso III, aplicabilidade no caso vertente, uma vez que os animais apreendidos com traficantes, por seu grau de stress e agressividade, não foram evidentemente retirados de qualquer criadouro, mas diretamente da Natureza, fato muito mais grave e fora da abrangência do artigo em comento. Em sentido contrário, está o argumento de que o legislador no caput do artigo 29, alcançou também a caça, atividade que evidentemente, só poderia ser feita na natureza e não em criadouros. Entretanto, nos parece que o legislador quis, propositalmente, melhorar a situação do caçador, por ser normalmente pessoa pobre e, na maioria das vezes, moradora no meio rural de escassas possibilidades educacionais e que não caça comercialmente. Diferentemente da figura do traficante de animais, que em parceria com caçadores profissionais, captam animais da natureza como meio de auferir grandes lucros. Estes sim, OS TRAFICANTES, verdadeiros incentivadores da caça e do comércio de animais silvestres são os destinatários dos tipos penais mais gravosos previstos no Código Penal. A OCORRÊNCIA DE CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO DA UNIÃO
Por fim tendo em vista ser o delito de receptação um crime contra o patrimônio, não se pode esquecer que os pássaros e outros animais reiteradamente caçados têm valor comercial, tanto que são vendidos em feiras, em atividade bastante lucrativa. Ademais, há que se considerar que, em muitos casos, os caçadores são vizinhos próximos de diversas unidades de conservação federal, e os animais eventualmente, subtraídos de unidade de conservação federal são patrimônio da união. Entretanto, ainda que os animais, continuamente negociados no mercado negro, não tenham sido capturados no interior de uma unidade de conservação federal, ainda assim, subsiste o fato de que os animais silvestres são patrimônio da União, eis que ultrapassada a concepção existente sob a égide do Código Civil de 1916, segundo a qual eram considerados res nulius, ou seja, coisa de ninguém, mesmo quando estavam dentro de uma propriedade privada. Assim, conforme os artigos 592 a 602 do Código Civil de 1916, no título referente à propriedade, dentro do capítulo III, denominado Da Aquisição e Perda da Propriedade Móvel o animal selvagem solto na natureza, pertencia ao caçador que o capturasse. Sobre esse entendimento ultrapassado o ilustre professor Luís Paulo Sirvinskas em seu Manual de Direito Ambiental, ensina que: A ocupação se dava com a propriedade da coisa abandonada ou sem dono anterior, incluindo os animais bravios encontrados na natureza, os mansos e domesticados que perderam o hábito de retornar ao lugar onde anteriormente viviam, os enxames de abelha não reclamados imediatamente pelo proprietário anterior, os animais arrojados às praias pelo mar. A caça podia ocorrer nas propriedades públicas ou particulares. Nestas últimas, haveria a necessidade da autorização do seu proprietário. Assim, pertencia ao caçador o animal por ele apreendido. Se o animal ferido adentrar em propriedade particular, a perseguição poderá concretizar-se com a autorização do proprietário. Caso este não permita a entrada em sua propriedade murada ou cercada, deverá entregar ou expelir o animal. E se o caçador adentrar na propriedade alheia sem a autorização perderá a caça sem prejuízo dos danos causados. A pesca podia também ocorrer nas propriedades públicas ou privadas. Nas propriedades privadas, a pesca só poderia ocorrer mediante autorização do seu proprietário. Pertencia ao pescador o peixe por este pescado ou apreendido. Aquele que pescar em propriedade alheia perderá a pesca e responderá pelos danos causados. Se o rio atravessar vários terrenos, cada proprietário poderá pescar às margens de sua propriedade até a metade (SIRVINSKAS, 2006, p. 276)
Mas com a evolução da questão ambiental e dos direitos dos animais, tudo mudou e a revogada Lei de Proteção à Fauna, de 3 de janeiro de 1967, nº 5.197/67, capitulou fauna silvestre em seu artigo 1º nos seguintes termos: Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha (Grifos nossos). Na mesma linha a Lei 6938/81 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente preceitua em seu artigo 3º, inciso V, que: Artigo 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989) (Grifos nossos) Desta forma, nosso legislador determinou expressamente que a fauna é um dos recursos ambientais. E não podia ser diferente, vez que a fauna, tem se mostrado um recurso econômico riquíssimo, tanto quanto os recursos minerais, por exemplo, no caso de determinados venenos extraídos de várias espécies de répteis e anfíbios, os quais já são utilizados pela indústria farmacêutica, para os mais variados tipos de medicamentos, proporcionando enormes lucros a essas empresas. Entretanto, segundo o doutrinador Paulo Affonso Leme Machado1, a fauna se constitui em um "bem público pertencente à categoria de bem de uso comum do povo, não constituindo bem do domínio privado da Administração Pública" ou "bem patrimonial, do qual a União possa utilizar-se para praticar atos de comércio". Este mesmo autor ensina que: A União reservou para si o domínio eminente da fauna silvestre. Desta forma alterou-se, em profundidade, a característica de que a fauna silvestre era coisa sem dono. A fauna silvestre é inconfundivelmente, como também seus ninhos, abrigos e criadouros naturais, bem público. Aplica-se à matéria o ensinamento do Dês. Mário Mazagão: observe-se que o fato de pertencerem ao Estado não implica em serem todos os bens públicos, objeto de direito pessoal ou real no sentido das leis civis. Muitos desses bens pertencem-lhe no sentido de que são por eles administrados, no interesse coletivo (MACHADO, 2007, p.771) (Grifos nossos) 1 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 15.ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Malheiros, 2007.p.769.
Destarte, nos parece tranqüila a tese de que a fauna é indubitavelmente um bem do Estado Brasileiro, sendo indiferente se bem de uso comum do povo ou não. Isso não faz diferença para a questão que ora se coloca, que é a indubitável natureza patrimonial dos animais silvestres retirados da natureza pelos traficantes de animais, circunstância que sujeita todos aqueles que praticam qualquer ato de mercancia com esses animais, conscientes de sua origem ilícita, ao delito previsto no Artigo 180 1º do Código Penal e não no Artigo 29, 1º da Lei 9605/98. Trazemos a lume, à guisa de conclusão, a decisão judicial proferida pelo Excelentíssimo Juiz Federal Iorio Siqueira D Alessandri Forti, a qual demonstrou brilhante concisão ao analisar a questão da tipificação, contida no bojo do pedido de prisão preventiva dos traficantes da vida silvestre brasileira, vejamos:...é correta a argumentação (adiante sintetizada) feita pelo Delegado da Polícia Federal Dr. ALEXANDRE SILVA SARAIVA no sentido de demonstrar a inaplicabilidade do art. 29 da Lei 9.605/98 aos fatos narrados em sua representação: i) o caput do art. 29 da Lei 9.605/98 ( Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida ) se destina apenas aos crimes cometidos com relação a animais RETIRADOS DA NATUREZA LIVRE, mas apresenta rol restrito de verbos: não contém os verbos vender, expor à venda, ter em depósito, adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar ; ii) o inciso III do 1º do art. 29 da Lei 9.605/98 ( quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente ) tem um rol mais extenso de verbos, mas sua incidência é restrita aos crimes cometidos contra ANIMAIS PROVENIENTES DE CRIADOUROS (acrescento um argumento: não é possível a interpretação segundo a qual este inciso seria complementar ao tipo do caput como se a menção a provenientes de criadouros não se aplicasse a todos os verbos, mas fosse mera especificação de produtos e objetos dela oriundos : se assim fosse, a parte inicial do inciso estaria a repetir a conduta utiliza espécimes da fauna silvestre, já prevista no caput motivo pelo qual a interpretação mais acertada parte da premissa de que a lei não contém palavras inúteis nem pleonasmos); iii) os referidos verbos verbos vender, expor à venda, ter em depósito, adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar não constam do caput do art. 29 da Lei 9.605/98 mas constam todos da descrição típica do art. 180 e seu 1º do Código Penal; iv) o art. 29 da Lei 9.605/98 se destina a punir conduta de pessoas comuns, que meramente caçam, adquirem ou vendem um animal silvestre de forma isolada e pontual; a própria pena cominada (baixa), bem como o limitado número de verbos empregados, mostra
sua inadequação à conduta altamente lesiva e profissional de quadrilha envolvida com tráfico de animais; v) o verbo utilizar, empregado no caput do art. 29 da Lei 9.605/98 não pode ser lido como sinônimo de vender ou expor à venda pois tais verbos são de conhecimento do legislador (tanto que ele os empregou no inciso III do 1º do mesmo artigo), o que aponta no sentido da melhor adequação do art. 180 do Código Penal; vi) como conclusão, o art. 29, caput, da Lei dos Crimes Ambientais não contemplou a conduta daquele que comercializa animais silvestres oriundos da natureza: aquele que recebe animais oriundos de caça proibida em unidade de conservação (esta, sim, prevista no art. 29, 4º e 5º), caçados e distribuídos por caçadores profissionais (vez que os animais são caçados às centenas todas as semanas) associados em quadrilha, comete o crime de receptação; conclusão diversa autorizaria enquadrar no mesmo tipo penal quem adquire um animal silvestre oriundo de furto, roubo ou caça profissional e quem tão-somente adquiriu um pássaro da fauna silvestre desprovido de regularização, mas de origem lícita (por exemplo, animal nascido de casal de pássaros registrados, mas ainda sem anilha): certamente não foi a intenção da Lei 9605/98 piorar a situação da preservação do meio ambiente, sujeitando os responsáveis pela morte continuada de centenas de animais a crime com penas irrisórias da competência dos Juizados Especiais; Há uma observação a acrescentar aos argumentos declinados pelo Delegado: o comércio de animais encontrava tipificação suficiente no art. 27, caput ( Constitui crime punível com pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos a violação do disposto nos arts. 2º, 3º, 17 e 18 desta lei ) e 5º ( Quem, de qualquer maneira, concorrer para os crimes previstos no caput e no 1º deste artigo incidirá nas penas a eles cominadas ) c/c art. 3º ( É proibido o comércio de espécimes da fauna silvestre e de produtos e objetos que impliquem na sua caça, perseguição, destruição ou apanha ) da Lei 5.197/67; mesmo que alguém quisesse sustentar que a conduta de comerciar animais passou a ter enquadramento no art. 29 da Lei 9.605/98 (o que, repita-se, não é correto, como demonstrado acima), revogando a Lei 5.197/67, tal revogação seria inconstitucional, pois a liberdade do legislador de definição da escala penal não é tanta que possa transformar um crime significativo, de impacto ambiental relevante, em uma conduta punida com mera detenção e pena inferior a um ano, sujeita ao rito dos Juizados Especiais: fosse assim, haveria violação frontal ao art. 225, caput, 1º, III e VII, e 3º, da Constituição, porque caracterizada a afronta ao princípio da vedação ao retrocesso social.
De ressaltar que esta tese, desenvolvida no bojo da Operação Oxóssi, foi muito bem recebida por membros do Ministério Público Estadual e Federal, com várias denúncias feitas com base nesta tipificação penal para o tráfico de animais (Art. 180, 1º do CP) e, na maioria das vezes, a denúncia foi recebida sem alteração pelo Judiciário.