INTRODUÇÃO À VIRTUDE NA ÉTICA A NICÔMACO DE ARISTÓTELES



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RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 INTRODUÇÃO À VIRTUDE NA ÉTICA A NICÔMACO DE ARISTÓTELES Elis de Aguiar Bondim Ribeiro de Oliveira Graduança em Filosofia da UFRJ Resumo: Este artigo visa abordar, introdutoriamente, a virtude na Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Para tanto, julga-se importante, na introdução, o esclarecimento de alguns conceitos gregos antigos cujas conotações se modificaram ao longo do tempo. No restante do trabalho são abordados aspectos da virtude e do bem da Ética a Nicômaco, com o foco não no simples conhecimento do que é o bem, mas sim da compreensão deste objetivando a sua prática, a ação; a necessidade de se desejar o bem para que se seja virtuoso, não bastando conhecê-lo; e seu pensamento de que ser virtuoso é necessário para a felicidade, mas não suficiente. Considera-se necessário deixar claro que o objetivo desse trabalho é introdutório e expositivo. Palavras-chave: Filosofia Antiga, Aristóteles, Ética a Nicômaco, Virtude, Bem, Eudaimonia. Abstract: The aim in this article is to approach the virtue of the Nicomachean Ethics of Aristotle. For this purpose, that is necessesary, in the introduction, the explanation of some greek ancient concepts which had their meanings changed with time. At the rest of the work, there will be approach aspects of the virtue and good from Nicomachean Ethics. I don't simply focus in the meaning of what is good, but also its knowledge objectifying its practice, its action; the necessity of desire good to be virtuous, not only knowing it; and the though that being virtuous is important to be happy, but not enough. It is importante to say that the objective of this work is intorductory and expositive. Keywords: Antique Philosophy, Aristotle, Nicomachean Ethics, Virtue, Well, Eudaimonia. 50 É relevante dizer que a Ética a Nicômaco não é a única obra aristotélica de caráter ético, havendo também a Ética a Eudemo e a Magna Moralia e, em certa medida, a Política. Para esse presente artigo, como o objetivo era uma introdução a temas da Ética a Nicômaco especificamente, não se abordou as demais. 83 Introdução Aristóteles conduz a Ética a Nicômaco 50 não para o simples conhecimento do bem ou da virtude areté), mas sim para, a partir de tal conhecimento, a prática do bem

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 agathon) e da virtude, distinguindo sabedoria prática phronesis) de sabedoria teórica sophia). Em relação a esse tema, são colocadas questões, sobre as quais Aristóteles reflete, como as sobre o que é o bem, o que é ser virtuoso e o que é necessário à felicidade eudaimonia). Mas será que a virtude é garantia de felicidade na ética nicomaquéia aristotélica? Esta parece ser a questão principal que permeia o presente artigo. O objetivo do presente artigo, assim, é o de uma introdução expositiva ao tema da virtude na Ética a Nicômaco de Aristóteles, o qual se relaciona com os temas do bem, do desejo e da felicidade, esta constituindo a questão principal do artigo. Apresentando os temas dos artigos, acima introduzidos, o artigo se divide em três partes. Na primeira, são apresentados alguns princípios aristotélicos considerados fundamentais à compreensão de sua obra. A segunda introduz importantes conceitos na ética aristotélica, que são o de bem, de desejo e de virtude, e como estes se relacionam. A terceira e última parte, por fim, apresenta a tese aristotélica de que, apesar da virtude ser fundamental à felicidade, ela pode não ser suficiente. Para finalizar o trabalho, breves considerações finais. Abaixo o restante da introdução apresenta melhor as partes do trabalho. As reflexões de Aristóteles parecem objetivar não apenas que o seu leitor também reflita sobre tais temas a virtude, o bem, a felicidade, o desejo), como se disse acima, mas também conduzir cada indivíduo para a ação 51, para a prática do bem. A prática do bem diz respeito a cada um e, ao mesmo tempo, a todos. E o estudo da ética pode ser assim definido: é o estudo do estar com os outros, mas sem perder de vista o cada um. É pensar o indivíduo em sua relação com os demais. Nesse contexto é que se insere a importância da política a qual, para os gregos, está intrinsecamente relacionada com a ética. A política como ação é toda atividade humana relacional. O ser humano é um ser político justamente porque é um ser que vive em relações com os demais. A política como ciência é a estruturação do bem. Assim, a prática política é a atividade humana capaz de resumir todas as outras, pois apesar de não ser o bem supremo 52, a política é a atividade que visa a esse bem supremo o que 51 É interessante considerar o que Hardie diz acerca do conceito de ação em Aristóteles: A palavra ação pode ser utilizada de modo amplo, como o é em Política, de modo a incluir a reflexão contemplativa. Mas o que a passagem assinala como função própria do ser humano é claramente mais abrangente que a atividade teórica e inclui atividades que exibem inteligência prática e virtude moral. Hardie, 2010:45). 52 O conceito de bem supremo será tratado mais adiante. 84

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 as outras atividades, separadamente, não necessariamente visam. Partindo da consideração de que a ética é o estudo do bem considerando tanto cada indivíduo como todos também e a prática política é toda atividade humana relacional, Aristóteles considera que o bem político é o bem humano. A finalidade da ciência política é a finalidade suprema, e o principal empenho desta ciência é infundir um certo caráter nos cidadãos por exemplo, torná-los bons e capazes de praticar boas ações E.N., I, 1099b, 26-29). Na busca pela definição do bem e da virtude, Aristóteles apresenta alguns princípios, não no sentido de normas de ação e sim no sentido de noções fundamentais, os quais serão apresentados na primeira parte. Lembrando que Aristóteles é um filósofo que parte tanto dos princípios amplamente aceitos a doxa, que é a opinião comum, do vulgo quanto do que pensam os sábios, os pensadores que já refletiram sobre o assunto tratado chamado por Aristóteles de endoxa, é preciso ter em mente também que bem, para os gregos antigos, não é carregado de contexto moralizante 53 ; para eles, bem é excelência, ou seja, é a melhor realização possível seja do que for 54, o que será abordado melhor na segunda parte, juntamente com a conceitualização de virtude e da abordagem acerca da necessidade do desejo da qual Aristóteles fala. Aristóteles, diferentemente de outros filósofos gregos, considera que ser virtuoso não é suficiente para que se seja feliz, sendo preciso também que aspectos externos ao indivíduo, e independentes dele, permaneçam bem tal aspecto do pensamento aristotélico será abordado na terceira e última parte. A felicidade, nesse contexto grego antigo, é considerada o bem supremo ou fim último da vida humana, e Aristóteles questiona o que de fato é a felicidade, o que a constitui. É importante lembrar, ainda, que felicidade eudaimonia -, para os gregos, não é uma emoção fugaz como geralmente se pensa hoje, mas sim um estado de espírito, uma prática de toda a vida. I PRINCÍPIOS ARISTOTÉLICOS Um dos princípios aristotélicos é o da razão, a qual tem aqui o sentido muito claro de 53 Para fins de esclarecimento, ressalta-se aqui que o termo moralizante foi inserido com fins de melhor explicação, porém é importante lembrar que o termo moral não existia ainda em grego, só tendo aparecido mais tarde em latim em Cícero, De Fato I, 1) como mores. 54 Hoje é costume apresentar-se um conceito cristão de bem, mas é preciso lembrar que a Grécia Antiga é pré-cristã. 85

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 aplicação às práticas e atividades humanas e não o de pensamentos ordenados como deduções ou silogismos. Para Aristóteles não há apenas um raciocínio lógico universal, aplicável a tudo, mas também um raciocínio específico para cada atividade humana, o que se reflete em sua teoria acerca do bem, visto que, segundo ele, não há também um bem universal e fundamental, mas sim o que é o bem em cada situação, o que é o melhor a ser feito de acordo com as circunstâncias. A razão, em Aristóteles, é o modo de pensamento próprio a cada atividade. Outro princípio é o desejo. Aristóteles diz que há coisas às quais se visa por elas mesmas, como a saúde e bons amigos, por exemplo. E há coisas às quais se visa através de atividades, como sendo as suas finalidades. Para se direcionar a algo, em todo caso, é preciso desejar este algo. Arte techné) não tinha para os gregos o sentido que recebe hoje, se aproximando mais da ideia do artesão, o que inclui tanto trabalhos como o de um escultor quanto de um marceneiro, por exemplo; por isso o termo techné é traduzido tanto pelo termo arte quanto pelo termo técnica, podendo ser considerados arte, por exemplo, uma espada ou um sapato, de acordo com a técnica especializada do ferreiro que fizer a espada e do sapateiro que fizer o sapato. Nesse contexto, Aristóteles distingue atividades que visam a uma obra de atividades que visam a si mesmas. Quando Aristóteles fala do primeiro caso ele se refere às atividades que desde o seu ínício visam a um fim específico. 'Obra' refere-se a cada etapa da atividade a ser realizada, sendo "completas" as atividades que visam a uma obra, com todas as suas partes concluídas. Já o segundo caso, das atividades que visam a si mesmas, representa as atividades que não têm um fim específico nem visam produzir algo, como por exemplo tocar uma flauta; era algo que os gregos faziam apenas pelo bem de tocar e ouvir música 55. Para as atividades que visam a uma obra, a obra é mais importante do que a atividade. O objetivo não é apenas a atividade, mas sim a realização da obra que a atividade produz. É importante lembrar deste conceito grego de arte porque compreender o princípio de hierarquia entre as artes que é apresentado por Aristóteles é crucial para a compreensão do bem na Ética a Nicômaco lembrando mais uma vez que bem para os gregos é excelência. Tal hierarquia não se dá no sentido de umas serem melhores que as 55 Lembrando que a música não era um produto comercial como é hoje. 86

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 outras, mas sim no sentido de haver uma coordenação entre elas. Por exemplo, se alguém quer aprender a caçar com arco-flecha a cavalo: para este alguém realizar o bem entenda-se, a excelência - de caçar com arco-flecha a cavalo é preciso que antes um outro alguém faça o bem de adestrar o cavalo e ainda que um outro fabrique o arcoflecha para, então, mais alguém ensine este a caçar com arco-flecha a cavalo. Tal princípio de hierarquia entre as artes apresenta o pensamento de que o bem, como excelência, está presente em todo e qualquer tipo de ação: um ferreiro fazer o bem é construir com excelência, ou seja, o melhor possível, os instrumentos que produz; um sapateiro fazer o bem é construir com excelência os sapatos que produz; um tocador de flauta fazer o bem é tocar a sua flauta da melhor forma possível. Tal princípio define que toda atividade deve se conduzir ao bem, ou seja, à excelência; e de que, assim, algumas atividades dependem de outras para que possam, de mesmo modo, se conduzir ao bem. Para que alguém possa caçar bem a cavalo utilizando-se de arco e flecha, como já se disse antes, é preciso que uma série de outros indivíduos tenham feito o bem a excelência) de construir o arco e flecha, adestrar o cavalo e ensinar tal indivíduo a caçar a cavalo utilizando-se de arco e flecha. Este princípio, como é possível perceber, apresenta cada atividade ao mesmo tempo em que apresenta todas também, do mesmo modo como se definiu a ética. A partir do entendimento disso é possível compreender melhor o bem aristotélico, sobre o que se falará agora, na parte seguinte. II O BEM, O DESEJO E A VIRTUDE EM ARISTÓTELES Aristóteles distingue filosofia teórica de filosofia prática, sendo a primeira a que deve resultar em conhecimento e a segunda a que deve resultar em ação: [...] há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução por isto ela requer experiência e tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito. [...] quanto às várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tornando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos [...] E.N., II, 1103ª, 1-27). Segundo Aristóteles, estuda-se o que é a ética não para se conhecer o que é bom ou o que é o bem, mas para se tornar bom. É preciso entender, aprender, refletir sobre o que é a virtude o bem), mas o fim da ética vai além: é a ação, é o tornar-se virtuoso bondoso). Assim, é preciso tanto a excelência intelectual quanto a excelência moral, 87

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 sendo que esta só se obtém na ação, no hábito. Além disso, é preciso compreender e desejar o bem; nem só um, nem só o outro. [...] o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência, e se há mais de uma excelência, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas. [...] tal exercício ativo deve estender-se por toda a vida E.N, I, 1098 a, 82-86). A Ética de Aristóteles não se baseia em um princípio fundamental. Como já se disse, para ele, não há um bem único, mas sim o bem em cada situação, as próprias pessoas engajadas na ação devem considerar em cada caso o que é adequado à ocasião E.N., II, 1104a, 19-20). Assim, o melhor a ser feito o bem varia de acordo com a situação em que se estiver. Às vezes uma atitude pode não ser boa em uma determinada situação, porém em outra pode ser a melhor atitude a ser tomada. É necessária uma [sic] percepção educada, uma capacidade que vá além a aplicação de regras gerais, para dizer o que requer a prática das virtudes em circunstâncias específicas. [...] A ênfase deve estar em saber, a respeito de ações específicas, que são nobres e justas em circunstâncias específicas BUMNYEAT, 2010: 159). Outro ponto essencial à compreensão do bem aristotélico é o de que Artistóteles pensa toda ação como um encaminhamento para o bem. Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito, visam a algum bem; por isto foi dito acertadamente que bem é aquilo a que todas as coisas visam E.N., I, 1094a, 1-5). O homem fabrica, cria, investiga, decide, julga, deseja e age tendo em vista o bem. A partir de tal pensamento, tem-se a questão: o homem realmente deseja sempre o bem, de modo a se direcionar a ele? Segundo Aristóteles, é possível enganar-se a respeito do que é o bem, de modo a se pensar ser o bem algo que não o é, de modo que é possível desejar algo que não é o bem por ignorância, por se estar enganado a respeito do que se é o bem. Justamente para que isso não ocorra é necessário que se compreenda corretamente o que é o bem e, para tanto, é preciso uma boa educação, que ensine não só a boa compreensão acerca do bem como também acerca do que se deve desejar ou não. Com efeito, a excelência moral se relaciona com o prazer e o sofrimento; é por causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa do sofrimento que deixamos de praticar ações nobilitantes. Daí a importância, assinalada por Platão, de termos sido habituados adequadamente, desde a infância, a gostar e desgostar das coisas certas; esta é a verdadeira educação E.N., II, 1104b, 8-13). Só ao se compreender corretamente o bem, ao se desejá-lo verdadeiramente e colocá-lo em prática é que se será virtuoso: a pessoa investida de sabedoria prática 88

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 possui uma concepção verdadeira do fim que lhe é melhor, bem como possui a capacidade de planejar a realização desse fim de maneira eficaz Hardie, 2010: 43). Desse modo, percebe-se que o bem, o desejo e a virtude ser virtuoso estão intrinsecamente ligados na concepção de Aristóteles. [...] se os atos condizentes com as várias formas de excelência moral têm uma certa qualidade em si, isto não quer dizer que eles foram praticados justamente ou moderadamente; o agente também deve estar em certas condições quando os pratica; em primeiro lugar ele deve agir conscientemente; em segundo lugar ele deve agir declaradamente, e ele deve deliberar em função dos próprios atos; em terceiro lugar sua ação deve provir de uma disposição moral firme e imutável. E.N, 1105a, 16-23) O conhecimento do bem visa ao melhoramento das ações, hábitos e conduta. Aristóteles, contudo, põe em questão se o conhecimento é o bastante para que o bem seja de fato praticado. Para ele, é necessário também que se deseje o bem. Aristóteles, assim, direciona a sua ética a uma compreensão dos princípios o que constitui o bem, a virtude e, paralelamente, a uma educação adequada dos desejos. Para que se seja virtuoso é preciso compreender corretamente e desejar aquilo que se compreende corretamente. A educação dos desejos é um hábito, é uma prática. Aristóteles descreve a deliberação, o raciocínio do ser humano sábio, como um processo que começa pela concepção de um fim e retrocede, numa direção que inverte a ordem causal, até a identificação dos meios Hardie, 2010: 49). Assim, é preciso saber fazer uma apreensão geral e saber apreender também cada caso particular, sendo a primeira necessária para a segunda e sendo necessária também uma faculdade que realize essa passagem. Esses são os dois tipos de conhecimento que ele apresenta: a apreensão geral e a capacidade de conversão do geral para o particular, através do discernimento. É preciso discernir o bem em cada situação e ser moderado. A excelência moral, portanto, é algo como a equidistância, pois...) seu alvo é o meiotermo....) É por isto que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o meio-termo é uma característica da excelência moral E.N., II, 1107a, 56-63). A doutrina do meio-termo é muito importante, pois se relaciona intimamente com a necessidade de deliberação acerca dos meios disponíveis para se chegar ao fim desejado, visto que não é porque se deseja algo que se pode tomar qualquer atitude para se chegar a este fim. O fim tem de ser bom e os meios também: o agente talvez tenha que considerar a bondade, ou a maldade, inerente aos meios propostos, bem como sua eficiência na promoção de um fim bom Hardie, 2010: 50). 89

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 Há figuras contrárias, segundo Aristóteles, ao compreender bem e desejar bem: aquele que compreende mal e, por isso, deseja mal; como, por exemplo, quando alguém compreende que ser feliz é ser rico e, para tanto, faz qualquer coisa para ganhar dinheiro - aquele que compreende bem, mas ainda assim deseja mal, como quando alguém compreende que não é saudável comer em demasia, mas ainda assim o faz; e aquele que compreende bem, mas deseja o mal e o faz. O primeiro caso é o do intemperante 56 ; o segundo caso é o do akrático akratés), que é aquele que sabe como deveria agir em direção ao bem, mas apesar de sabê-lo age de outra maneira, como, por exemplo, quando se sabe que não se deve comer algo, mas ainda assim come-o, sendo o akrático o moralmente fraco; e o terceiro caso é o do kakós, que é o perverso, que realmente deseja o mal e tem prazer com ações nesta direção. O que acontece no segundo caso, segundo Aristóteles, é que o indivíduo não foi bem educado - lembrando que uma boa educação, aqui, significa aprender a ter prazer com o que se deve ter prazer e desgosto com o que se deve ter desgosto. Nesse contexto, precisamos abandonar o sentido fraco de aprender segundo o qual ter aprendido que esquiar é prazeroso é simplesmente ter adquirido a informação, independentemente da experiência pessoal Burnyeat, 2010: 165). Quando o indivíduo não é educado de acordo com isso pode ocorrer de sentir prazer com o que deveria ter desgosto, mesmo que compreenda isso e, assim, desejar algo que não é o bem. Compreender o que é bom, o que é virtuoso, não significa desejar. Pode-se conhecer o que é o melhor, o correto, e desejar o oposto. Por isso a importância da educação, visto que aquilo em que tem prazer o homem virtuoso...) é a prática das virtudes, empreendidas em razão delas mesmas Burnyeat, 2010: 166). Nesse contexto, um elemento complicador são as paixões: fazer o que se quer, mesmo que se saiba não se estar querendo o melhor. Assim, os jovens não são bons juízes 57, segundo Aristóteles, pois não tiveram ainda tempo de adquirir o conhecimento de critérios de julgamento que dependem de experiência, sendo escravos de suas paixões, aproximando-se dos 56 A temperança, em Aristóteles, é a virtude moral da capacidade de discernimento. O intemperante é aquele que conhece mal e, por isso, age mal achando que está agindo bem. Este ainda pode reconhecer o seu erro e mudar o seu modo de agir, passando a agir bem, diferentemente do vicioso. 57 O conceito dos termos julgar e juízo não são bem definidos na Filosofia Antiga, apresentando, assim, sentido amplo: o de dar significado à realidade, de cernir, discernir; cerne, discernimento. 90

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 akráticos 58. 58 O akrático é aquele que é incapaz de ter critérios, sem critérios. É aquele que se formou assim e, por isso, não se pode afirmar que os jovens sejam akráticos, pois eles ainda estão em formação. 59 Vide a primeira citação dessa parte do trabalho. 60 Quando Aristóteles diz virtude natural ele não está querendo dizer algo como uma virtude com a qual o homem já nasce, que o homem têm naturalmente. A virtude moral, lembrando mais uma vez, é sempre adquirida pelo hábito. Ao dizer natural, Aristóteles refere-se ao fato do ser humano ter por natureza a capacidade de receber as virtudes, e essa capacidade é aperfeiçoada justamente pelo hábito. Assim, Aristóteles distingue a virtude moral natural da virtude moral própria, sendo a primeira a não acompanhada de razão e a segunda a que é acompanhada de razão, ou seja, a virtude moral própria é a do indivíduo que conhece as razões que fazem de uma ação a melhor, que compreende por que tal ação deve ser realizada nota do autor). 91 A virtude é o modo adequado de se realizar uma ação em sua ambiência. Por exemplo, pode-se ter uma ação justa por um motivo injusto. A virtude é ter uma ação justa e realizá-la de modo justo, por motivo justo. É preciso compreender a situação, o que é justo e injusto de acordo com a situação e realizar a ação que for justa. E o mais importante: realizar a ação justa apenas pela promoção da justiça e não por qualquer outro motivo que não seja esse. Uma ação justa que tenha algum interesse como motivação não é uma ação virtuosa. Aristóteles não está simplesmente a fazer a observação ociosa de que a virtude exige prática. Antes, a prática possui poderes cognitivos, já que é a maneira pela qual aprendemos o que é nobre e justo. [...] O objetivo último a que visa a prática do iniciante é que ele se torne o tipo de pessoa que faz coisas virtuosas com pleno conhecimento daquilo que faz, escolhendo fazêlas em razão delas mesmas, agindo com base em um estado assentado de caráter BURNYEAT, 2010: 161). Segundo Marco Zingano, não há somente virtudes morais; há também, por exemplo, virtudes das funções reprodutivas da alma, que não são levadas em consideração pela análise moral Zingano, 2008: 80). Segundo a interpretação do autor, as virtudes podem ser ou naturais, ou adquiridas pelo hábito ou obtidas através do uso da razão. A virtude moral é sempre adquirida pelo hábito 59, dividindo-se entre aquelas que apenas foram adquiridas pelo hábito e entre as que, além disso, são acompanhadas pela razão. Toda virtude moral tem de poder ser acompanhada de razão. E, assim... Mediante tal virtude [a virtude moral acompanhada de razão], o homem faz o que deve ser feito. Mas o homem não faz somente o que deve ser feito; ele o faz também de um certo outro modo, isto é, sabendo e escolhendo por deliberação o que está fazendo. A diferença reside não no resultado da ação, mas no modo de agir. [...] Nossas qualidades morais são adquiridas de um certo modo naturalmente, isto é, pelo hábito, a partir de uma capacidade naturalmente presente, mas [...] há também um outro modo de ser destas qualidades. Quando se apreende a razão do porquê isto deve ser feito, uma diferença ocorre no agir: no seio da mesma disposição, a virtude que antes era natural 60 é agora virtude própria ZINGANO, 2008: 81, 82).

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 A virtude total é aquela na qual a virtude intelectual age no interior da virtude moral a virtude própria), enquanto a virtude imperfeita é a virtude moral natural que, sempre podendo aceitar razões, não sabe, contudo, dar ou estabelecer razões Zingano, 2008: 96). Por fim, as virtudes morais aperfeiçoam o modo do indivíduo agir, conduzindo suas decisões: o que eu posso fazer, eu posso deixar de fazer. Pelo hábito de agir assim e não de modo contrário eu aperfeiçoo se agir assim for virtuoso) ou deturpo se agir assim for um vício) minha capacidade de agir. Assim, a virtude moral é um aperfeiçoamento da minha capacidade natural de agir Zingano, 2008: 83). Resumindo, tudo se encaminha para o bem, porém ter uma atitude boa não significa ter uma atitude virtuosa. O bem varia de acordo com a situação e só o hábito, o qual constitui uma boa educação, proporciona as experiências necessárias à excelência intelectual de discernimento e escolha do que é o bem em cada caso escolha refletida: proairesis), de modo a se atingir a excelência moral. A excelência moral é a virtude total: a de desejar o bem, fazer o bem e saber por que cada ação é o bem, variando com a situação. III SER VIRTUOSO NÃO É SINÔNIMO DE SER FELIZ Aristóteles persegue em sua Ética qual é o bem supremo ou fim último da vida humana e o define como sendo a felicidade eudaimonia) 61. A definição de tais conceitos, porém, diferem-se: A eudaimonia é definida como uma certa atividade em oposição a um estado psicológico ou a uma simples disposição do sujeito; o bem supremo é definido como o fim último desta atividade. [...] O fim último é aquele em vista do qual todos os outros são perseguidos, ele mesmo contudo não podendo estar em vista de outro fim. Como bem supremo, ele tem de poder englobar todos os outros bens Zingano, 2008: 89). Geralmente não se tem problemas quanto ao nome felicidade como bem supremo ou fim último da vida humana, mas tem-se muitos problemas quanto a definição do que é a felicidade. Eudaimonia é o termo grego do qual o termo atual felicidade mais se aproxima. Aquele, porém, tem o sentido de completude, de plena 61 Aristóteles fala de três candidatos ao bem supremo ou fim último: o prazer, a honra e a contemplação. Isto, porém, não será abordado aqui por não ser necessário ao objetivo do trabalho, sendo inserido nessa nota apenas para, talvez, motivar o leitor a pesquisar sobre. 92

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 realização na/da vida, diferentemente do sentido que se tem hoje de felicidade. Para os gregos, a felicidade era um estado de espírito, uma prática, não sendo, assim, algo fugaz, como geralmente se pensa hoje. A vida perfeita parece o ser no sentido de completa não se tem eudaimonia por um pequeno lapso de tempo, mas sua temporalidade estende-se ao longo da vida Zingano, 2008: 94). Talvez seja melhor compreender eudaimonia não como felicidade, mas sim como vida feliz, no sentido de se tornar pleno e de se direcionar da melhor forma possível à vida. [A felicidade] [...] é uma certa atividade da alma conforme à excelência. Dos bens restantes, alguns devem ser preexistentes como pré-requisitos da felicidade, e outros são naturalmente coadjuvantes e instrumentais E.N., I, 1099b, 22-25). Independentemente das possíveis conclusões acerca do que é a felicidade, podese aferir que ela, certamente, não é apenas a virtude. Para Aristóteles, ser virtuoso é necessário à felicidade, porém, não é suficiente. Estar bem com a própria alma é fundamental, mas o que cerca o indivíduo também tem de estar bem. Não adianta, por exemplo, ser honesto, justo e bom e ficar órfão precocemente ou assistir à morte de todos os filhos que se tiver. [...] a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios. Em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político como instrumentos, e há certas coisas cuja falta empana a felicidade boa estirpe, bons filhos, beleza pois o homem de má aparência, ou malnascido, ou só no mundo e sem filhos, tem poucas possibilidades de ser feliz, e tê-las-á ainda menores se seus filhos ou amigos forem irremediavelmente maus ou se, tendo tido bons filhos e amigos, estes tiverem morrido E.N., I, 1099a-1099b, 70-78). Aristóteles busca uma felicidade que dependa o máximo possível de cada indivíduo. Mas nem por isso dispensa os fatores externos ao indivíduo, e também não os coloca como fundamentais a eudaimonia: dá a eles o papel de acessórios. Ao buscar uma felicidade que dependa o mínimo possível de outros fatores que não o próprio indivíduo, Aristóteles não diz que é possível à felicidade depender apenas do próprio indivíduo, mas sim que é possível que ela dependa principalmente e majoritariamente do próprio indivíduo. Voltando à citação primeira dessa parte do artigo, de Marco Zingano, o bem supremo é aquele que tem de poder englobar todos os outros bens Zingano, 2008: 89). Ou seja, a felicidade não depende da posse de todos os bens existentes, mas apenas de poder englobá-los: para cada caso em consideração, a quantidade necessária de bens é aquela que dá ao sujeito a auto-suficiência. Obviamente não só não implica que uma vida feliz exija a totalidade de bens ou tudo aquilo que vale 93

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 a pena conseguir, como varia numericamente a cada caso Zingano, 2008: 91). Ainda segundo Zingano, Aristóteles distingue três tipos de bens que são necessários à felicidade em maior ou menor grau: os bens da alma as virtudes), causas próprias da felicidade, os bens do corpo e os bens exteriores, causas coadjuvantes Zingano, 2008: 90), sendo estes os bens do corpo e os bens exteriores necessários apenas até o ponto em que o indivíduo atinja a autossuficiência. Por exemplo, em EN 1 10, ele [Aristóteles] admite que a conquista efetiva da felicidade, a atividade virtuosa, está, em grande parte, fora do controle humano. Um grande número de grandes eventos, se resultarem em realizações positivas, farão a vida mais feliz; caso contrário, esmagarão e lesarão a felicidade, pois tanto causam dor como impedem muitas atividades 1100b25-30). Ele acrescenta que, mesmo quando acometido pelo desastre, a nobreza resplandece quando o homem é capaz de suportar resignadamente tremendos e numerosos infortúnios, não por insensibilidade à dor, mas por ter uma alma grande e nobre 1100b30-33). [...] A doutrina de Aristóteles do bem final é uma doutrina a respeito daquilo que é próprio do ser humano, isto é, a capacidade de refletir a respeito de seus desejos e habilidades, conceber e escolher para si uma forma de vida satisfatória HARDIE, 2010: 63). A autossuficiência talvez não seja simplesmente não precisar de nada ou não se desejar e lutar por mais nada, tendo-se já tudo que se quiser. Mas sim, talvez, autossuficiência seja a capacidade de se deliberar acerca das decisões a se tomar em cada situação, de se discernir as circunstâncias de modo a sempre se ter a melhor ação possível, tendo pensamento próprio. E, assim, não depender de nada mais para se ser feliz, pois ao se conseguir lidar com os infortúnios e ao se tomar sempre a melhor decisão acerca deles e do que se fazer com eles, pode-se desenvolver a prática da felicidade: ser feliz sabendo lidar com o que acontecer e se encaminhando sempre para o bem. Mas se a pessoa sofre infortúnios e não consegue superá-los, apesar de agir virtuosamente, então é porque os bens que têm em sua vida não lhe conferem a autossuficiência. E, por isso, pode-se ser uma ótima pessoa, que aja corretamente, mas que seja azarada, ou muito feia, ou que essa pessoa sofra alguma tragédia pessoal ou que viva na miséria. Essa pessoa é virtuosa, mas não é feliz. Assim, para se ser verdadeiramente feliz é preciso que se seja virtuoso, porém, é preciso também ter certos bens os quais variam de acordo com o indivíduo tanto em qualidade quanto em quantidade, de modo a se atingir a autossuficiência. CONSIDERAÇÕES FINAIS O bem varia de acordo com a ocasião. A capacidade de discernir o que é o bem em cada 94

RevistaAproximação Segundosemestrede2014 Nº8 ocasião é fundamental à virtude. Aquele que pratica uma boa ação sem compreender o que faz dessa ação boa e por que ela é a melhor ação a ser realizada de fato pratica uma boa ação, porém não uma ação virtuosa. A virtude se caracteriza pela comunhão entre a prática, a compreensão e o desejo do bem. É condição à felicidade a virtude, porém são precisos também bens como a riqueza, a família, a saúde, os amigos, variando de acordo com a situação e o indivíduo até o ponto em que se seja autossuficiente. Não se adquire a virtude apenas praticando boas ações, é necessário também que se compreenda por que tais ações são boas e que de fato se deseje tais ações. Ao se fazer isso tem-se a excelência moral. Quando um indivíduo não atinge a autossuficência com os bens que têm em sua vida, então, por mais que seja virtuoso, pode não conseguir ser feliz: pode ser solitário, viver na miséria ou sofrer de alguma doença terrível. A felicidade é o conjunto de tudo que constitui a vida do indivíduo, dependendo majoritariamente do próprio modo do indivíduo de lidar com o que lhe acontece, ou seja, da sua capacidade de superar e aceitar, mas não apenas disso; depende também de fatores externos, que são acessórios, como riqueza, família, saúde e amizade. Referências: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco in Coleção Os Pensadores. Tradução publicada sob a licença da Edunb Editora Universidade de Brasília. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1996. BURNYEAT, M. F. Aprender a ser bom segundo Aristóteles. Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles: Textos Selecionados. Coordenação de Marco Zingano. São Paulo: Odysseus Editora, 2010. HARDIE, W. F. R. O Bem final na Ética de Aristóteles. Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles: Textos Selecionados. Coordenação de Marco Zingano. São Paulo: Odysseus Editora, 2010. ZINGANO, Marco. Eudaimonia e Bem Supremo em Aristóteles. Estudos de Ética Antiga. Coleção Philosophia/Analytica. Direção de Guido Antônio de Almeida e Fátima Regina Rodrigues Évora. Porto Alegre RS): Unisinos, 2008. 95