Mestranda e bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz/ Casa de Oswaldo Cruz.



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AIDS no século XXI: novos desafios e estratégias de prevenção à doença pós coquetel. Lissandra Queiroga Ramos * Introdução: Devido ao grau de complexidade do debate acerca da AIDS, pensar as representações sociais desta doença é relevante para a compreensão de novos arranjos sociais que se constituem na sociedade contemporânea, tendo por pressuposto que o surgimento desta epidemia, no início de 1980, revelou mudanças sociais a partir dos desdobramentos advindos da nova realidade que se apresentava como a morte anunciada aos pacientes soropositivos e das incertezas do que seria viver com AIDS. Após três décadas de seu início, a epidemia de AIDS apresenta um panorama diferente. A introdução de medicamentos antirretrovirais, no ano de 1996, no tratamento dos pacientes soropositivos prolongou a expectativa de vida de indivíduos, que, anteriormente, recebiam a notícia do diagnóstico positivo para o HIV como uma sentença de morte. A melhoria da qualidade de vida dos indivíduos soropositivos é uma das múltiplas facetas trazidas com o desenvolvimento do tratamento antirretroviral. Como afirmou Le Goff, as doenças pertencem à história (LE GOFF, 1997) e por esta razão, partimos de uma análise que considera relevante o tempo, lugar e sociedade em que se enquadram as doenças. Adotamos o pressuposto de Rosenberg, em Framing Disease (ROSENBERG, 1997), que afirma que as doenças estão inseridas no contexto da sociedade que as nomeia, e em contrapartida, as sociedades significam as doenças a partir dos aparatos culturais, econômicos, políticos e sociais de seu tempo. Com isso, nosso trabalho considera que o conhecimento científico sobre a AIDS e a representação social desta no início da epidemia em 1980 não é a mesma do que se pode observar nos dias atuais. Mas qual seria o elemento chave que possibilitou esta mudança? O uso dos medicamentos antirretrovirais pode ser decisivo no horizonte desta explicação. A partir da adesão ao tratamento, a fase aguda da AIDS foi sendo eliminada e com isso observou-se uma mudança, não apenas no aspecto clínico, mas nas estratégias de prevenção e da própria imagem da doença frente à sociedade. * Mestranda e bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz/ Casa de Oswaldo Cruz.

No Brasil, a dinâmica que envolveu ativamente os indivíduos soropositivos na busca por respostas acerca da AIDS e diversas questões que se colocaram a respeito da prevenção, contaminação, estigma e preconceito, no período inicial da epidemia, pressionou a opinião pública e o Estado para construção de aparatos jurídicos-legais e médicos, conforme o desvelamento da doença, permitindo ampliar ações em prol de políticas públicas de saúde em relação à AIDS. Neste trabalho, pretendemos verificar o deslocamento do sujeito do debate em questão, antes, priorizado nas narrativas dos próprios doentes de AIDS e militâncias acerca da doença, no início da epidemia, em 1980 (NASCIMENTO, 2005), para um discurso que se utiliza da eficácia do tratamento de AIDS, observado atualmente, para retomar a ideia da necessidade da prevenção à doença, recolocando o debate sob olhar médico, a exemplo da proposta de Herzlich (2004), o que têm sido negligenciado no século XXI e evidenciar a necessidade de uma releitura sobre os efeitos da epidemia de AIDS após três décadas de seu início. Como avaliarmos a evolução e fazer um balanço da situação atual? É o momento de perguntar: a Aids mudou de fato as relações entre o público e o privado no campo da saúde? Terá ela mudado irreversivelmente o relacionamento das pessoas com a medicina?(herzlich, 2004. p: 390) As questões que podemos debater atualmente são: o controle da doença através do coquetel (combinação de medicamentos antirretrovirais) é o estágio final desta epidemia no Brasil? No século XXI a AIDS não é mais um problema de todos? As campanhas de prevenção à AIDS têm acompanhado estas mudanças? Partindo do modelo proposto por Rosenberg ao observar epidemias e avançando para além do esquema estruturado por ele e problematizando a questão de representação social das doenças proposta por Herzlich, pretendemos oferecer um caminho. A cara viva da morte: a ressignificação da imagem da AIDS. Senhoras e senhores Trago boas novas Eu vi a cara da morte E ela estava viva 1. 1 Trecho da música Boas Novas, de autoria de Cazuza.

O roqueiro carioca nascido há 31 anos com o nome de Agenor de Miranda Araújo Neto definha um pouco a cada dia rumo ao fim inexorável. 2 Esta é a descrição dada ao cantor Cazuza, pela revista Veja, em trecho da entrevista concedida por ele na edição de 26 de abril de 1989 que o trazia na capa estampando a fragilidade de apenas 40 quilos e o semblante abatido e doente em decorrência da AIDS. A entrevista trouxe vários aspectos da vida do cantor e principalmente das mudanças ocorridas após seu diagnóstico positivo para HIV. A cara da AIDS exposta na capa da revista Veja, intitulada Cazuza uma vítima da AIDS agoniza em praça pública, e na debilidade física do cantor Cazuza trazia à tona a face terminal de uma doença ainda em estudo científico e que apresentava muitas incertezas acerca da transmissão e desenvolvimento de outras doenças associadas à imunodeficiência apresentada pela presença do HIV. O discurso da revista, de caráter apocalíptico, revela a tônica da imagem que se vivenciou, na década de 1980, no tocante ao enfrentamento da AIDS na sociedade brasileira. A doença inicialmente denominada de praga gay ou câncer gay, observado nas primeiras notícias desde a comprovação clínica dos primeiros casos no Brasil 3, trouxe em torno de sua existência o teor estigmatizador revelado na associação direta entre os homossexuais e a AIDS. Esta associação acabou por culpar esta parcela da sociedade pelo surgimento de uma moléstia que viria a ser considerada a praga do século XX, conforme a pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento apresentou no livro As Pestes do Século XX: tuberculose e Aids no Brasil, uma história comparada. A contínua marcha da doença e as pesquisas científicas que se debruçavam em aprimorar os conhecimentos acerca da AIDS permitiram chegar à informação sobre as formas de contágio e transmissão desta. O que se comprovou foi a transmissão a partir do sangue e do esperma, restringindo as maneiras de contaminação, mas ampliando os chamados grupos de risco, que passaram a incluir além dos homossexuais, que permaneceram com o estigma de serem promíscuos e por isso mais suscetíveis a se contaminar, os hemofílicos e os usuários de drogas 2 3 Disponível em Veja Online. Edição nº: 1077 de 26 de abril de 1989. Brasil já registra casos de câncer gay, Jornal do Brasil, 12/06/1983, p.26.

injetáveis devido ao contato com sangue contaminado. Pode-se dizer que a ideia da existência de grupos de riscos já foi superada por conta da contradição do perfil epidemiológico da doença, e hoje se entende que exista o comportamento de risco, ou seja, qualquer pessoa pode ser exposta ao HIV, caso não tome as precauções corretas (NASCIMENTO, 2005). O uso da camisinha nas relações sexuais se tornou item obrigatório nas gerações que vieram após o aparecimento da AIDS, por exemplo, e medidas educativas acerca da prevenção tem sido a estratégia mais utilizada na tentativa de combater a doença e seu avanço que atinge a população de maneira indiscriminada. A pesquisa de BRITO, CASTILHO & SZWARCWALD (2001) apresenta este avanço e o entendimento de que a AIDS é uma epidemia multifacetada e um problema de todos. A morte como efeito imutável após a infecção representou o grande medo da geração que vivenciou o início da epidemia de AIDS e este receio foi sendo substituído pela possibilidade de viver mais com AIDS com o uso correto dos medicamentos. Coquetel: a revolução das cápsulas. O ano de 1996 é o marco inicial do tratamento mais eficaz para AIDS. Segundo Mário Scheffer no livro, Coquetel. A incrível história dos antirretrovirais e do tratamento da aids no Brasil, observa-se entre 1996 e 2012 três estágios diferentes do uso dos antirretrovirais. Entre 1996 e 2002, ocorre a era da terapia altamente ativa, onde a combinação de medicamentos mostra-se eficaz no tratamento e é possível observar a cronificação da doença. Entre 2003 e 2007, ocorre a terapia de resgate que significou a busca por novos medicamentos úteis para pacientes com insucesso na terapia anterior. E por fim de 2008 aos dias atuais, observa-se o tratamento como prevenção que tem evidenciado que alguns medicamentos antirretrovirais reduzem a transmissão do HIV, podendo combinar o tratamento com a prevenção. A eficácia do coquetel é notória, mas é preciso levar em consideração que o caminho até este tratamento não foi trilhado sem disputas políticas, econômicas e sociais. Do início da epidemia, em 1980, até o ano de 1996 os milagrosos medicamentos antirretrovirais foram submetidos a uma série de testes e experiências. Experiências estas que incluem, com certeza,

grupos de pessoas que participavam de testagens da indústria farmacêutica e de centros de pesquisa, o que gerou polêmicas e discussões acerca da questão ética envolvida nessas pesquisas. Em 3 de julho de 1985, Samuel Broder 4 administrou pela primeira vez o AZT 5 em um doente de AIDS e deu início aos estudos para determinar sua melhor posologia, Diante da eficácia confirmada e da tolerância satisfatória, passou-se a um estudo controlado ao acaso, duplo cego, coordenado por Margaret Fischl: 145 pacientes com AIDS receberam AZT e 137 apenas placebo. O estudo foi interrompido precocemente em 20 de setembro de 1986, pois foi considerado antiético manter um grupo tomando placebo ante a eficácia do medicamento. No momento da interrupção, 19 pacientes que recebiam placebo já haviam morrido, contra apenas uma morte no grupo do AZT. (SCHEFFER, 2012. p.40) A partir do exemplo acima, podemos refletir sobre tensões existentes a respeito da implantação do tratamento contra a AIDS. Mesmo o coquetel, ou seja, o medicamento, sendo o grande responsável pelas mudanças nesta fase da epidemia da doença, é preciso levar em consideração que os atores políticos, sejam das indústrias farmacêuticas, sejam os próprios indivíduos soropositivos que participaram dos testes de medicamentos, são elementos ativos na construção desse saber científico que revolucionou o tratamento contra a AIDS. Como podemos observar, a era do coquetel foi possível devido à junção de diferentes conjunturas entre a doença e a sociedade do período. O que nos permite problematizar a epidemia da AIDS, utilizando o esquema explicativo de Rosenberg que divide a epidemia em quatro atos. Segundo Rosenberg, uma epidemia tem seu lado dramatúrgico. E nele podemos observar quatro estágios que o autor denominou de atos, fazendo uma metáfora ao teatro. O primeiro refere-se à negação da epidemia, o segundo a busca por explicações sobre, o terceiro as muitas negociações coletivas para propor respostas à mesma e, por fim, um olhar retrospectivo sobre o evento epidêmico e as lições aprendidas e medidas de prevenção. Se observarmos o período posterior ao uso dos medicamentos antirretrovirais, a qual fase corresponde o coquetel dentro da epidemia de AIDS no Brasil? Seria possível afirmar que atualmente vivenciamos o último estágio, onde a sociedade olha para a doença de maneira retrospectiva e sem novas surpresas? O coquetel é a reposta final, sem controvérsias ou novas questões? 4 5 Presidente do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos em 1984. Designação atual da azidotimidina.

Acreditamos que para além do esquema de Rosenberg, a epidemia de AIDS no Brasil revela um debate complexo e ainda não acabado. Isto inclui a política pública de distribuição gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) dos medicamentos e das escolhas feitas pelo estado na seleção destes. Inclui ainda o debate sobre o direito de participação do público-alvo nas escolhas destes medicamentos, pois é necessário levar em consideração a individualidade pertinente a resposta ao tratamento de cada indivíduo soropositivo. Segundo Scheffer, Novos desafios, novas práticas. O desafio está posto e consiste em conciliar as convenções internacionais vigentes com a defesa da soberania nacional, em fixar novas práticas de acordo com as necessidades de saúde de um povo, e não apenas com interesses de comércio e de lucro, em alavancar os direitos humanos e a vida a patamares civilizatórios mais elevados. (SCHEFFER, 2012. p. 185) No século XXI, novos desafios tem se colocado no que tange ao enfrentamento da AIDS. As mudanças decorrentes do uso do coquetel na vida dos indivíduos soropositivos e na imagem da doença para a sociedade foi discutido anteriormente. Resta pensar, para compor o debate aqui proposto, quais estratégias de prevenção têm sido utilizadas nos dias atuais para conter a epidemia de AIDS. Segundo dados do Boletim Epidemiológico HIV-AIDS/2013, fornecido pelo Ministério da Saúde, foram notificados cerca de 40.000 casos de AIDS no Brasil em 2012, sendo este valor estável nos últimos cinco anos. As estatísticas têm demonstrado que a epidemia de AIDS está sob controle, mas isso não significa que ela esteja superada. Registrou-se 11.896 casos de óbitos por causa da AIDS em 2012 no Brasil e registrou-se no mesmo ano cerca de 720 mil indivíduos vivendo com HIV-AIDS. Morre-se de AIDS no Brasil no século XXI e convive-se com ela também. Mas como alertar a sociedade para a prevenção da doença após a introdução do coquetel e do esvaziamento da imagem da morte súbita que acompanhava a doença no início da epidemia? No que diz respeito às práticas de prevenção e combate a AIDS o trabalho de AYRES (2002) discute a necessidade do uso de novas estratégias educativas, depois de duas décadas de epidemia, uma vez observada a continuidade da doença. Por isso, se o controle da epidemia do HIV em nossos dias depende, em alto grau, da eficácia dos antirretrovirais e de uma assistência à saúde de qualidade, é impossível

não considerar que esse controle também depende radicalmente da construção de uma cultura preventiva ainda mais universalizada, sustentada, plural e versátil para o conjunto da sociedade. (AYRES, 2002. p.14) Não é novidade a existência de pesquisadores (HIDELBRAND, 1995 & BARATA, 2006) que se debruçaram sobre questões acerca da imagem da AIDS na mídia televisiva e ratificaram o alcance que a televisão teve na divulgação de informações acerca da doença. Mas o recorte temporal destes trabalhos foi anterior ao uso do coquetel e, com isso, o enfoque das estratégias operou com a ideia anterior a cronificação da doença, ou seja, do seu caráter fatal. Para um debate sobre a fase atual da epidemia de AIDS podemos observar, por exemplo, a maneira encontrada pelo Ministério da Saúde em explorar, nas campanhas de prevenção, a própria imagem do tratamento de AIDS e salientar que viver com a doença não é algo fácil. O vídeo veiculado no ano de 2013 como campanha de prevenção à AIDS trazia o slogan: A vida é melhor sem AIDS. Tendo como foco o aspecto incurável da doença e de seu rigoroso tratamento. Após apresentar diferentes situações em que é possível evitar acidentes ou doenças, inclusive a AIDS, o vídeo ratifica que todas as outras situações ou doenças têm solução, menos a AIDS com a frase: Mas com a AIDS não é fácil. Você vai ter que conviver a vida inteira. Com o enquadramento final da imagem de um homem sentado à mesa, com quatro potes de medicamentos, simbolizando a combinação de antirretrovirais necessários ao tratamento da AIDS. A estratégia observada nesta campanha ratifica o deslocamento da narrativa sobre a doença, ocasionado pela introdução do tratamento com antirretrovirais. Conforme discutido, a eficácia da medicina no prolongamento da vida dos soropositivos trouxe uma série de mudanças no foco da prevenção. Alterando o cenário de militância e da voz dos soropositivos, do momento inicial da epidemia, para o cenário das políticas públicas consolidadas em relação à doença e da imagem medicalizada do soropositivo, atualmente. Considerações finais: A história das doenças é um dos caminhos para se compreender uma sociedade. (NASCIMENTO, 2005). A AIDS não acabou. O coquetel não trouxe a cura. Ele ressignificou a imagem do doente e recolocou o controle da doença nas mãos da medicina. O indivíduo se

medicaliza, aceita o tratamento, insere-se no contexto das políticas públicas de saúde ao aderir ao tratamento. Mas a prevenção à doença continua dependente da ação direta e individual de cada membro da sociedade uma vez que o comportamento de risco é determinante na infecção. Por isso, podemos pensar na afirmação de Herzlich que diz: De fato, a doença está hoje nas mãos da medicina, mas ela permanece sendo um fenômeno que a ultrapassa. (HERZLICH, 2005. p. 64). Observa-se assim, que no momento em que a medicina e a indústria farmacêutica se colocam em um patamar vitorioso com a estagnação da epidemia de AIDS, pelo uso de antirretrovirais, mantêm-se a necessidade de prevenção, pois a infecção não parou. Pode-se dizer que no século XXI a AIDS, ainda, é um problema de todos. Referências AYRES, José Ricardo Carvalho Mesquita. Práticas educativas e prevenção de HIV/Aids: lições aprendidas e desafios atuais. In: Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v6, n11, p.11-24, ago 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v6n11/01.pdf. Acesso em outubro de 2013. BARATA, Germana. O Fantástico apresenta a AIDS ao público (1983-1992). In: Uma História Brasileira das Doenças, v.2 / Dilene Raimundo do Nascimento, Diana Maul de Carvalho, Rita de Cássia Marques (orgs.); autores Ana Beatriz de Sá Almeida... [ et al.]. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. BRASIL. Boletim Epidemiológico HIV-AIDS. Ano de 2013. Ministério da Saúde. Disponível:http://www.aids.gov.br/sites/default/files/anexos/publicacao/2013/55559/_p_boleti m_2013_internet_pdf_p 51315.pdf. Acesso em abril de 2014. BRITO, Ana Maria de; CASTILHO, Euclides Ayres de & SZWARCWALD, Célia Landmann. AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. [online]. 2001, vol.34, n.2, pp. 207-217. Acesso em outubro de 2013. HERZLICH, Claudine. Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência privada e a esfera pública. In: PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, Vol.14, n 2,

2004., Claudine. A Problemática da Representação Social e sua Utilidade no Campo da Doença. In: PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(Suplemento): 57-70, 2005. HIDELBRAND.L. Comunicação oficial brasileira sobre a AIDS: um percurso pelas linhas e entrelinhas da telinha da TV. São Paulo: ECA/USP, 1995.Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, 340p. LE GOFF, Jacques. As doenças têm história, Lisboa, Terramar, 1997. NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. As pestes do século XX: tuberculose e aids no Brasil, uma história comparada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2005. ROSENBERG, Charles E. & GOLDEN, Janet. (ed.) Framing Disease: Studies in Cultural History. New Brunswick; Rutgers University Press, 1997., Charles E. Explaining Epidemics and other studies in the History of Medicine, Cambridge University Press, Cambridge, 1995. SCHEFFER, Mário. Coquetel: A incrível história dos antiretrovirais e do tratamento da aids no Brasil. São Paulo: Hucitec: Sobravime, 2012. 216p. (Saúde em Debate, 227)