Simbolismos, mitos e ritos das águas no cristianismo: Uma abordagem sob a. the perspective of Mircea Eliade

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Transcrição:

Simbolismos, mitos e ritos das águas no cristianismo: Uma abordagem sob a perspectiva de Mircea Eliade André Luiz Bernardo de Oliveira * Resumo O artigo propõe refletir sobre o simbolismo das águas no cristianismo. Para isso abordará a perspectiva de Mircea Eliade. Utilizaremos conceitos importantes de sua obra, como as hierofanias, que se desdobram em mitos, símbolos e ritos. A parte inicial trabalhará com a conceituação dos termos para, em seguida, aplicá-los nos simbolismos das águas, presente na prática e nos textos do cristianismo. Palavras-chaves: Mircea Eliade; hierofanias; mito; ritos; símbolos. batismo. Symbolisms, myth, and water rites in christianity: the perspective of Mircea Eliade Abstract This paper proposes a study on the symbolism of water in the Christianity. It will develop Mircea Eliade s perspective on this subject. We will approach some important concepts such as hierophanies, myth, symbol, and rites. Frist and foremost, we will work on this conceptualization. In the sequence, we will apply them in the symbolism of water symbolisms in the Christianity practices and texts. Keywords: Mircea Eliade; hierophany; myth; symbols; baptism; rites. Introdução O simbolismo das águas está presente no cristianismo, observamos sua presença em símbolos e ritos, dessa religião, destaca-se entre esses ritos, a prática do batismo. Mircea Eliade em sua obra aborda esses simbolismos e ritos. No livro Tratado de História das Religiões todo * Teólogo e mestrando do Programa de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

162 André Luiz Bernardo de Oliveira um capitulo é dedicado aos simbolismos das águas, com abordagem dentre outras religiões ao cristianismo 1 ; em Imagens e Símbolos, no capítulo Simbolismo e História um tópico é dedicado exclusivamente ao batismo, diluvio e simbolismo aquático. 2 Nessas abordagens, além de discutir os simbolismos cristãos, destaca porém que, este simbolismo tem desdobramentos anteriores ao cristianismo e revela, apesar de suas ressignificações com o passar do tempo, a presença de seu sentido primordial, o seu mito de origem. Fenômenos religiosos complexos não são possíveis de observação em seu estado puro e original, o que pressupõe uma longa evolução histórica. Por isso Eliade, propõe o estudo comparativo das religiões, comparando seus fatos sagrados. Cada um desses fatos sagrados pode ser considerado como hierofania 3, isto é, um fato sagrado que manifesta o sagrado a sua maneira e no seu estado do decorrer da história. Portanto, hierofanias são fatos, documentos históricos, que de acordo com o momento histórico adquirem o significado que expressa nesse momento no tempo e espaço. É por isso que hierofanias, durante o decorrer da história mudam de significado e podem até perder seu caráter hierofanico, pois, param de trazer alguma doação de sentido para aqueles que entram em contato com este documento ou fato em seu momento histórico. Hierofanias também em um mesmo momento histórico, podem trazer diferentes doações de sentido para aqueles que entram em contato com ela, por isso deve ser compreendida através de uma avaliação total e heterogênea, isto é, numa determinada religião, pode haver a classe sacerdotal e os leigos que são o povo, e neste exemplo que ocorre em várias religiões, vemos que a significação que ela traz para cada uma dessas classes pode ser diferentes, diante disso, o que é proposto é que, o que ela traz como significação, para, o povo deve ser considerada e a significação que ela traz para a classe sacerdotal também deve ser considerada. São estas diferenças de percepções que trazem a totalidade das modalidades do sagrado. 1 2008, p. 153. 2 ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. 10 Ed. São Paulo. Martins Fontes, 1991. Fenômenos religiosos: hierofania 3 2008, pg.08.

Simbolismos, mitos e ritos das águas no cristianismo: Uma abordagem sob a perspectiva de Mircea Eliade 163 Mitos ou símbolos tornam evidente essas modalidades, já o rito não pode manifestar todas as modalidades, mas o universo mental dos mundos arcaicos não chegou até nós dialeticamente nas crenças explicitas dos indivíduos, ele se conservou nos mitos, nos símbolos e costumes, que apesar das mudanças no decorrer da história, apesar do passar do tempo que acabam por ressignifica-los, eles deixam ver ainda o seu sentido primordial 4. Expressa o arquétipo de um sentido religioso primitivo. O real é maior daquilo que enxergamos. O mito do eterno retorno e o rito Entramos aqui em uma característica essencial de Mircea Eliade em sua obra: o tempo. Em toda sua obra o tempo se mostra essencial para a reflexão, mas uma obra em especial sistematiza a preocupação de Eliade com o tempo: O mito do eterno retorno. 5 Esta reflexão se baseia na questão que, existe uma negação do tempo profano, isto é, nosso tempo do dia a dia, da existência da nossa vida, este tempo que é linear, uma vida com começo, meio, e fim. Essa negação origina uma busca por um tempo não linear, portanto um tempo cíclico, onde o fim não é a meta, mas, sim a origem. Por isso, a concepção de fim, esta sempre ligada a um recomeço, ao inicio de um novo período e assim segue repetidamente, periodicamente e eternamente, um eterno retorno. E nesse ciclo o ritual, leva o ser humano a outro tempo, um tempo onde o ato leva ao inicio deste circuito, e após o ato, novamente após um período de tempo, ele é repetido, e assim subsequentemente. Por isso esse rito tira o ser humano do tempo Cronos, que é esse tempo humano e lógico. O rito é o ato que inicia a volta a ao transcendente, ao tempo sagrado primordial. Rito traz para hoje um tempo que já passou. É um tempo de outro tempo. Ele para o tempo Cronos, profano e remete a um tempo Kairos, sagrado. É a repetição de um gesto arquetípico realizado no principio da história. 4 Id., ibid., p. 16. 5 ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. São Paulo. Martins Fontes, 1981.

164 André Luiz Bernardo de Oliveira Esse gesto arquetípico é a narrativa da origem da hierofania, que é o mito, o rito apenas traz a vivencia para o homem desse tempo original. Por isso abaixo discutiremos o que dá significação a esses ritos: o mito Mito O mito, em sua condição criadora de sentido, apresenta-se como narrativa original de uma percepção temporal pensada, cíclica ou linearmente, e aberta diante de um mundo possível. 6 Ele é um acontecimento primordial, a partir dele, algo passar a existir na história, no tempo e passa também a ser paradigma para o tempo que se segue a partir dele. O mito tem função primordial de fixar os modelos exemplares de todos os ritos e ações humanas significativas, mesmo fora do ambiente religioso. O mito não é uma projeção fantasiosa de algum acontecimento natural, mas, sim uma projeção que a partir de um momento se revela na experiência sagrada, torna-se uma hierofania. É uma projeção do espírito e não do natural, que em dado momento passa a ser doador de sentido, a partir dai começa a existir no tempo e espaço como hierofania. O sagrado invoca uma experiência original, que pretende ser criadora e doadora de sentido. O Êxodo bíblico ilustra a passagem de um modo de vida para outro; a transcendência espiritual ou a emancipação social. O aspecto da centralidade do mundo, oriundo da heterogeneidade do profano, comunica a hierofania e instaura cosmogonias. 7 Simbolismo Para Eliade, as mais profundas manifestações do sagrado e do mito nascem e estão no inconsciente. 8 O sagrado esta presente no nível da inconsciência. Citamos aqui a inconsciência, pois, Eliade entende que os símbolos, do qual iremos tratar agora e os mitos e ritos já descritos anteriormente, tem sua estrutura e significados, presentes e permanentes dentro do inconsciente do ser humano. 6 SOUZA, Vitor Chaves. A intuição do tempo sagrado: o princípio de um pensamento cósmico. In: Notandum. (USP), v. XVIII, p. 61-72, 2015) 7 Id., ibid. 8 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Martins Fontes, São Paulo. 2001, p. 170.

Simbolismos, mitos e ritos das águas no cristianismo: Uma abordagem sob a perspectiva de Mircea Eliade 165 O símbolo religioso, seguindo esta lógica, guarda em si um acumulo de sentidos através da história. Qualquer mito e ou rito, tem seu sentido através do simbolismo que ele carrega e transferência de sentido que ele traz para o ser. O símbolo é a linguagem da religião. O mito é simbólico e símbolos são a linguagem do mito. 9 A partir do inconsciente, através do mito se dá vida a uma hierofania, mas a propagação se dá através do símbolo e o rito, rito esse que sempre traz um simbolismo por trás de si. O Simbolismo cristão Após todas estas conceituações feitas até este ponto do artigo, prosseguiremos agora utilizando elas, para, entender seus desdobramentos no cristianismo, em especial no simbolismo contido nos textos e ritos relacionados à água. Hierofanias aquáticas: Sentido primordial As águas simbolizam fons et origo diz Eliade em seu Tratado da história da religião 10, isto quer dizer, que, elas simbolizam a fonte e a origem, as águas simbolizam a substância primordial da qual nascem todas as formas e para a qual voltam, por regressão ou cataclismo. Elas foram, no principio, e elas voltarão no fim do ciclo cósmico ou histórico. Elas existiram sempre, mas, nunca só, pois ela forma algo, gera vida, ela é interdependente, das formas, ela existe para algo vir a existir. Por isso seu simbolismo associado a vida. Elas também dissolvem as formas, para gera-las de novo e isso se exemplifica nos ritos aquáticos, pois, neles estão incrustrados o simbolismo do desaparecimento das formas, e seu reaparecimento, sendo isso de uma forma cíclica. Este é sentido primordial colocado por Eliade. Todo este sentido primordial por trás do caráter hierofanico, expõe- -se em expressões de mitos, sejam mitos de cosmogonia e ou mitos de hilogenias. também expõe-se por seu simbolismo de cura de enfermidades, local de epifanias e divindades aquáticas e de relação com os mortos. Explicaremos cada um desses simbolismos a seguir. 9 SOUZA, Vitor Chaves. Mircea Eliade e o pensamento ontológico arcaico. Factash, 2014, p.161. 10 2008, p. 155.

166 André Luiz Bernardo de Oliveira Cosmogonias aquáticas É a tradição das águas primordiais, a narrativa de origem do mundo através das águas. Estes mitos se encontram em grande número de variantes nas cosmogonias arcaicas e primitivas. Hilogênias 11 Pelas águas serem a substância primordial da origem dos mundos e das formas, naturalmente elas também estão presentes nos mitos de formação do ser humano ou de uma raça particular. Fontes miraculosas e oraculares Esta multivalência simbólica da água dá origem a vários cultos e ritos concentrados a volta de fontes, rios e riachos. E isto independe se houve também alguma epifania local nessa água ou não, ela por si só mantem seu caráter curativo, miraculoso, sagrado. Também vemos no cristianismo, essa expressão no texto da cura do paralitico de Betesda no evangelho de João, capítulo 5, principalmente no verso 4, onde se afirma que quando as águas do tanque eram agitadas pelo anjo, ela curava o primeiro que ali entrasse. 12 Epifanias aquáticas e divindades aquáticas Das águas, emerge também sua hierofania de ser, curativa, rejuvenescedora e fonte de vida eterna, por isso, alguns mitos onde o caminho para se chegar a esta água é guardado por monstros, demônios, ou divindades, sendo necessário enfrentar um difícil caminho, com provas e ou consagrações. Por consequência desses simbolismos, vários cultos e ritos estão ligados ao elemento aquático, nas diversas religiões podemos verificar na história epifanias aquáticas e divindades das águas. No cristianismo utilizando o mesmo texto citado acima do evangelho de João, podemos usar de exemplo, para, epifania, pois, o anjo aparecia sempre no tanque de água. 13 11 2008, p. 156. 12 BIBLIA SAGRADA. Revista e corrigida. Sociedade Bíblica do Brasil. São Paulo 1995. 13 Id., ibid,.

Simbolismos, mitos e ritos das águas no cristianismo: Uma abordagem sob a perspectiva de Mircea Eliade 167 A relação com os mortos A água também apresenta um simbolismo funerário, o que está relacionado com seu simbolismo curativo, mágico e cosmogônico já exemplificado até aqui. Na maioria das concepções de morte, o morto não tem sua condição humana totalmente abolida, por exemplo, nas concepções onde há punições e sofrimentos, portanto, se há sofrimento e punição não houve o fim da existência. Nesta perspectiva, o sofrer e ser punido pós morte expressa-se pela falta de água, o que também por sua vez expressa-se pela sede do morto. Isso acontece em vários povos, a se destacar principalmente os povos de clima árido. E assim temos no cristianismo um texto que traduz essa questão, o texto do evangelho de Lucas, capitulo 16, onde na parábola se expressa o sofrimento do homem rico, que estava morto, mas, no Hades, ainda tem consciência e pede que lhe molhe a língua, por estar atormentado pelo calor e sede. 14 Mesmo neste aspecto a água expressa o sofrimento, e a necessidade, portanto, de haver um fim, novamente então, seu caráter de dissolução das formas, pois, o morto ainda não se tornou informe e a necessidade de água, mesmo após a morte, para isso acontecer. Vemos isso também nas libações aos mortos, utilizado pelos gregos, mesopotâmios, egípcios dentre outros povos, sobretudo de lugares quentes e áridos. 15 O batismo O batismo é um rito, importante e presente no cristianismo, por isso dentre as hierofanias aquáticas, destacaremos aqui seu simbolismo para o cristianismo e o simbolismo incrustrado por trás do simbolismo cristão, o acumulo de sentidos contido nele. O batismo é um simbolismo, segundo Eliade, imemorial e ecumênico. 16 Entendo isto como sendo não rastreável através de sua evolução 14 BIBLIA SAGRADA. Revista e corrigida, Sociedade Bíblica do Brasil. São Paulo 1995. 15 2008, pp. 161-162. 16 2008, p. 159.

168 André Luiz Bernardo de Oliveira histórica. Também no seu caráter originário é ecumênico, isto é não originário e exclusivo de uma religião ou povo. No cristianismo ele foi aceito e ressignificado, mas, o sentido mítico da dissolução e formação permaneceram em todas as suas modalidades, sobretudo no batismo por imersão. A imersão na agua leva ao simbolismo da dissolução da forma e abolição da história, tudo que era antes da imersão se dissolve, deixa de existir. Num plano antropológico, significa a morte e num plano cósmico é o cataclismo. Mas, ao mesmo tempo, que dissolve e finda a existência, a água é formadora e assim a imersão dela traz o simbolismo da nova vida, nova história, nova forma ou de um novo mundo. Um dos entendimentos do cristianismo sob a imersão, foi o de imersão como morte e a emersão como ressureição, a exemplo da morte e ressureição de Jesus Cristo, vemos este aspectos nos escritos paulinos da carta aos Romanos, capítulo 6, Verso 3, assim morre o homem para o pecado e ressuscita um novo homem para uma novidade de vida através das águas. 17 Vemos também este sentido só que em um aspecto soteriologico, isto é de salvação da alma no batismo de João, onde as águas, mediante o arrependimento do individuo que entra em contato com ela, recebe perdão dos pecados. O arrependido toma contato com a água o que causa o fim da existência dos seus pecados, o fim de sua história e após o contato com a água uma nova história começa, um novo individuo vem à existência, com sua alma merecedora agora de um novo destino, isto é salva para esse novo Reino, pós-morte. Simbolismo cataclísmico: O diluvio Temos outro simbolismo das águas no cristianismo que, só que este esta em um sentido hilogênico. Este mito e seu simbolismo esta na narrativa do diluvio. Cosmogonicamente, Eliade afirma que as culturas têm em seus mitos, um cataclismo, isto é um fim do mundo, e quase todas relacionam esse cataclismo a destruição pela água, onde o mesmo aspecto de dissolução e formação cíclica se apresenta, pois, a humanidade acaba ou os pecadores dessa humanidade, mas, uma nova ou purificada humanidade 17 BIBLIA SAGRADA. Revista e corrigida. Sociedade Bíblica do Brasil. São Paulo 1995.

Simbolismos, mitos e ritos das águas no cristianismo: Uma abordagem sob a perspectiva de Mircea Eliade 169 surge, e assim se mantem essa concepção cíclica do simbolismo. 18 É isso que vemos isso no mito judaico adotado pelo cristianismo, do diluvio, onde somente Noé e sua família se salvaram da catástrofe cataclísmica, e deram origem a uma humanidade nova, descendente dele, onde todos os pecadores foram exterminados. Com isso terminamos aqui a exposição de alguns simbolismos das águas no cristianismo. Faremos agora uma consideração final. Conclusão Todos estes mitos, ritos, símbolos que fazem referências ás águas, mantém uma coerência, uma essência, mesmo ressignificados dentro do cristianismo. Não é possível conter, seu simbolismo primordial, mesmo que este esteja por vezes oculto. Eliade expõe esse simbolismo, seja nos mitos de origem, ou de cataclismo, seja nas hilogênias, rito batismal, relação com os mortos, cura, ou epifanias. Este simbolismo primordial segundo Eliade é o de que a água é uma substância que dá origem, que da forma onde não há forma, e que dissolve o que tem forma, para novamente formar, purificar, curar, regenerar. De qualquer modo, ela sempre é a substancia que precede a geração ou a regeneração. E a partir deste momento o que se gera ou o que se regenera passa a existir e a contar sua história e seu tempo. Por isso segue-se assim um caminho de degeneração, que somente pelas águas pode ser quebrado. A água quebra essa relação linear histórica e temporal e assim mantem o tempo cíclico. Referências BIBLIA SAGRADA, Revista e corrigida, Sociedade Bíblica do Brasil. São Paulo 1995. SOUZA, Vitor Chaves. A intuição do tempo sagrado: o princípio de um pensamento cósmico. In: Notandum. (USP), v. XVII, p. 61-72, 2015. SOUZA, Vitor Chaves. Mircea Eliade e o pensamento ontológico arcaico. Factash, 2014. ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. 10 Ed. São Paulo. Martins Fontes 1991. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Perspectiva. São Paulo, 1972. 18 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Perspectiva. São Paulo. 1963, p. 54

170 André Luiz Bernardo de Oliveira ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo, 2001. ELIADE,Mirce. O Mito do eterno retorno. São Paulo. Martins Fontes, 1981. ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. 30 Ed. São Paulo. Martins Fontes, 2008.