UMA HISTÓRIA INDÍGENA DE LONGA DURAÇÃO NA AMAZÔNIA ANTIGA: PRÁTICAS FUNERÁRIAS DA FOZ DO RIO AMAZONAS

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UMA HISTÓRIA INDÍGENA DE LONGA DURAÇÃO NA AMAZÔNIA ANTIGA: PRÁTICAS FUNERÁRIAS DA FOZ DO RIO AMAZONAS LETÍCIA SANTOS NASCIMENTO* 1 AVELINO GAMBIM JÚNIOR** 2 RESUMO Desde o século XIX tem sido registrado para a foz do Rio Amazonas sítios arqueológicos com a presença de cemitérios indígenas. Os registros destes tipos de sítios arqueológicos possibilitam atestar as diferentes formas dos povos indígenas lidarem com a morte. Como objetivo inicial, esta apresentação visa fazer um survey na historiografia sobre as práticas funerárias junto a Foz do Rio Amazonas. Nesta abordagem historiográfica levamos em conta como fonte os relatos de cronistas europeus, dados levantados pela etnografia e antropologia e os dados materiais gerados pela arqueologia. Tais dados iniciais servirão para contribuir para escrever uma história indígena de longa duração levando em conta o estudo de caso de um antigo cemitério indígena registrado pelo CEPAP no residencial Villa Tropical. Palavras-chave: Foz do Amazonas. História indígena. Práticas funerárias. INTRODUÇÃO Os registros sobre os costumes funerários das sociedades ameríndias estão presentes nas etnografias e os relatos de cronistas desde o alvorecer do século XVI até os dias de hoje. Igualmente os registros arqueológicos também atestam a presença de sepultamentos ameríndios, já citados desde o século XIX para a foz do rio Amazonas. * Graduanda do Curso de História UNIFAP, bolsista de Iniciação Científica/CEPAP-UNIFAP ** Curso de História UNIFAP, mestre em Arqueologia UFRJ e arqueólogo do CEPAP/UNIFAP

2 Jean Pierre Chaumeil (1997) tem chamado atenção para a relação entre memória e esquecimento na América do Sul, em especial a região amazônica, o autor afirma que foi criada uma visão generalista de esquecimento e distanciamento em relação aos mortos, observado, por exemplo, em diferentes etnografias como as de Manuela Carneiro da Cunha (1978) entre os Khraó, os Araweté com Viveiros de Castro (1986) e os Wari com Aparecida Villaça (1998). Podemos observar através dos relatos etnográficos do século XVI ao XIX, que ao contrário do que as práticas relatadas diziam, a relação entre erradicação e memória dos mortos coexiste, e que somente com estudos contextualizados desses dados arqueológicos articulados com a História e Antropologia, será possível distinguir as diferentes formas de lidar com os mortos. Chaumeil (1997, 2007) mostra com vasta documentação que ao nos voltarmos aos relatos etnográficos e descrições de viajantes e cronistas dos séculos XVI ao XIX percebe-se que muitas das praticas relatadas parecem mostrar a presença de cemitérios propriamente ditos e sepultamentos localizados em praças ou ao lado de casas nas aldeias atestando a memória em relação aos mortos e cultos aos ancestrais. 2 Figura 1 Prática funerária descrita por Thevet no século XVI no Rio de Janeiro à esquerda, e cemitério de urnas funerárias descrita por Crevaux no século XIX na Venezuela à direita. Fonte (Thevet, 1558 e Crevaux, 1883) Além disso, Chaumeil (1997, 2007) mostra ainda que em alguns casos pelo menos, os mesmos relatos de cronistas que normalmente seriam usados como correlatos de esquecimento dos mortos podem ser utilizados justamente para contradizer tal visão, como

3 por exemplo, a preservação dos ossos de parentes nos telhados das casas e usos de partes dos esqueletos em cerimônias. Porém ao olharmos o registro arqueológico, vemos que desde a Amazônia Antiga, com sítios arqueológicos datados do século X AD até por volta do século XVIII AD, podemos observar gestos funerários e tratamentos funerários que podem ser entendidos como erradicação do morto, de sua memória e individualidade, mas temos igualmente casos onde se atesta individualização, memorização e culto aos ancestrais. Somente o estudo contextualizado desses dados arqueológicos pode permitir distinguir as diferentes formas dos vivos lidarem com os mortos e com a morte. Como Chaumeil (1997; 2017) alerta teríamos espaço para as duas modalidades convivendo ao mesmo tempo, tanto aqueles casos onde os mortos viram um coletivo anônimo, onde há esquecimento das individualidades dos mortos e uma relação de alteridade aos mesmos e igualmente aquela relacionada ao culto aos ancestrais imortalizados nas práticas funerárias, seja na preservação dos ossos dos familiares e tratamentos funerários distintos certamente variando de sociedade para sociedade. Os exemplos trazidos a seguir procuram mostrar, inicialmente, somente sítios arqueológicos na costa atlântica e costa estuarina de onde hoje é o estado do Amapá e da foz do rio Amazonas, representados aqui pelos sítios localizados na região Calçoene, para a região do Igarapé do Lago, junto ao arquipélago do Marajó e junto à cidade de Macapá, a presença de diferentes modos de lidar com a morte e com os mortos. 3 O REGISTRO ARQUEOLÓGICO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS AMERÍNDIAS As escavações sistemáticas feitas por Meggers e Evans (1957) na ilha de Marajó, apresentam no Sítio Monte Carmelo, no Teso Guajará, sepultamentos em níveis superiores com a presença de cinzas e ossos cremados, e nos níveis mais abaixo apresentam ossos em diferentes estados de conservação. Alguns remanescentes ósseos estavam associados a pratos, vasilhas, tangas, ossos de animais, e a presença de alguns ossos pintados com pigmentação vermelha, tanto em humanos quanto em animais. Percebe-se pelos registros arqueológicos que estarmos diante não de uma área de cemitério possivelmente familiar, e não demonstra um esquecimento e distanciamento, mas traz uma ideia de ancestralização vista nos tratamentos dados aos corpos e nos acompanhamentos funerários (SCHAAN, 2001; 2003).

4 Denise Schaan (2004) realizou escavações na ilha do Marajó, e segundo interpretações dela geradas, o Teso M-17 poderia ter sido uma área de habitação junto a uma área de cemitério, sendo interpretado como sítio cerimonial. Sheila Mendonça de Souza (Schaan, 2004) identificou sepultamentos secundários e primários em urnas com a presença de acompanhamentos. Schaan (2004) sugere, devido aos dados obtidos em campo, que os sepultamentos estariam protegidos por uma estrutura com telhado, inspirando-se no exemplo etnográfico dos Jivaro, levantando a possibilidade dos vasilhames serem depositados dentro das casas para depois serem enterrados abaixo do piso, novamente levando a um entendimento de prática de ancestralização, culto aos mortos e memória (Schaan, 2003; 2004). 4 Figura 2 Croqui mostrando a localização dos sepultamentos no Monte M-17 (Fonte: Schaan, 2004) Em expedições pela região do Calçoene no Estado do Amapá (LIMA GUEDES, 1897; GOELDI, 1905) foram encontrados sítios interpretados como cerimoniais e cemitérios (grutas e megalitos), em alguns deles temos os famosos megalitos formados por placas de granito inclinadas, como o sitio AP-CA-18/Rego Grande I (SALDANHA & CABRAL, 2008) que marcavam poços artificiais que lembram o formato de uma bota. No interior desses poços funerários havia urnas antropomorfas e zoomorfas com pinturas, dentro dos quais apresentavam também remanescentes ósseos humanos com diferentes tratamentos funerais, mostrando através dos gestos de deposição uma ideia de ancestralidade e memória atestada pelas datações que mostram uma longa duração (SALDANHA E CABRAL, 2010; 2016).

5 5 Figura 3 - Poço com Câmera lateral (Goeldi, 1905). O setor costeiro Estuarino Amazônico no Amapá possui um potencial arqueológico pesquisado desde o século XIX (FERREIRA PENA, 1877; LIMA GUEDES, 1897; GUAPINDAIA, 2001; 2008; NIMUENDAJÚ, 2004; FARABEE, 1921; MEGGERS e EVANS, 1957). Betty Meggers e Clinford Evans (1957) identificaram vários sítios cemitérios e habitação na região abaixo do rio Araguari, os sítios, sendo estes habitação e cemitério, são ligados à fase cerâmica Mazagão, com sepultamento secundário em urnas, com a ocorrência de contas de vidro dentro de algumas. Nas pesquisas de Vera Guapindaia (2001) onde coordenou o projeto na região do rio Maracá, no Igarapé do Lago, observou que havia um padrão funerário com sepultamentos secundários em urnas antropomorfas não enterradas, um aspecto interessante que foi observado é a presença de representações de indivíduos do sexo masculino e feminino sentados em bancos, que poderia indicar que as mulheres desempenhavam papel social

6 importante. Um aspecto a ser levado em consideração é que os ossos foram remexidos com o tempo, alguns apresentam sinais de que foram limpos e algumas urnas foram restauradas, que levou a interpretações, novamente, quanto à ancestralização, memória e aproximação com os mortos (SOUZA; CARVALHO; GUAPINDAIA, 2001). Figura 4 - Gruta das Caretas (Fonte: Souza, Carvalho e Guapindaia, 2001; Acervo Goeldi). O sítio Curiaú Mirim I, localizado na APA do Curiaú em Macapá, continha evidências de áreas domésticas onde também foi observada a presença de estruturas funerárias. O sítio apresenta ossos depositados em urnas e diretamente no solo, apresenta também poços com câmaras laterais semelhantes as da região do Calçoene descritos por Goeldi (1905), alguns poços revelaram a presença de vasilhas de cerâmica e artefatos líticos. Gambim Júnior (2016) aponta para uma fluidez entre a vida e a morte, observando que possíveis estruturas domésticas e funerárias estavam bem separadas no sítio junto a outras estruturas que parecem se tratar de deposições cerimoniais. Tais contextos desse sítio, seja um sítio habitação com áreas de cemitério, seja um sítio cerimonial, ou antiga aldeia ou cemitério reocupado, igualmente levam a pensar numa ideia de culto aos mortos, ancestralização e memorializaçao (GAMBIM JÚNIOR, 2016). 6

7 7 Figura 5 - Sepultamentos do sítio Curiaú Mirim I (Fonte: Gambim Júnior, 2016). O sítio Vila Tropical, foi identificado no ano de 2009 através de um Levantamento Arqueológico pelo CEPAP, está localizado na Rodovia JK, onde seria construído o Condomínio fechado Villa Tropical. A escavação apresentou material arqueológico em duas quadras, A2 e B3, localizadas em sedimento de cor amarelada, argilo arenoso.

8 Figura 6 - Sepultamentos em urnas do sítio AP-MA-Vila Tropical (Fonte: Nunes Filho, 2014; Acervo CEPAP/UNIFAP). 8 Segundo Nunes Filho (2014) a quadrícula A2 apresentava 09 peças, sendo 03 vasilhames e 06 urnas funerárias, duas de formato simples e quatro antropomorfas. Na quadrícula B3 foram coletadas 06 urnas funerárias, sendo cinco com antropomorfismo. As pesquisas voltadas para o contexto funerário presente no sítio Vila Tropical ainda estão em andamento, no entanto já podemos apontar algumas semelhanças com os casos arqueológicos já descritos, como os sepultamentos secundários em urnas, a cerâmica semelhante ao estilo Caviana também encontrado no sítio Curiaú Mirim I, bem como a forma intencional de deposição e uma aparente diferença na localização das estruturas funerárias, já que não foram encontradas evidências de possíveis áreas de habitação no sitio Vila Tropical, talvez demonstrando uma relação entre a vida e a morte diferente quando comparada ao sítio Curiaú Mirim I e M-17 em Marajó por exemplo, porém semelhante à todos os casos apresentados possivelmente estamos diante de um culto aos mortos e memorialização. Em relação ao sítio AP-MA-Vila Tropical esses são dados muito iniciais, embasados principalmente em informações de campo. O arqueólogo Martjin Van den Bel (2015) ao se referir aos contextos funerários e habitacionais indígenas onde hoje é a Guiana Francesa,

9 chama a atenção para a necessidade de mais dados contextuais, lembrando-se da condição de palimpsesto próprio do registro arqueológico, e que tais questões poderão ser elucidadas mais seguramente com mais escavações em áreas amplas, maior quantidade de datações absolutas, estudos de formação de sítio e maior investimento nas analises de laboratório dos mais variados vestígios cerâmicos, lítico, ossos humanos, fauna, etc. pra compreender o processo de ocupação dos sítios nas sociedades da Antiga Amazônia. CONCLUSÃO De acordo com o exposto, diferente de algumas etnografias recentes que apontam para um distanciamento da morte, o que se propõe através de dados empíricos é uma variabilidade de culto aos mortos e ancestrais, que encontram ressonâncias junto a dados etnohistóricos conforme se pode ver em documentações fornecidas por cronistas desde o século XVI conforme bem lembra Chaumeil (1997). Portanto o estudo de caso do Sítio Vila Tropical é importante no que tange a uma construção de uma história indígena de longa duração, buscando levantar dados e interpretações articuladas aos relatos etnográficos a respeito das práticas culturais na Foz do Amazonas. 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEL, M.van den. Archaeological investigations between Cayenne Island and the Maroni river : a cultural sequence of western coastal French Guiana from 5000 BP to present. Tese de doutorado, Universidade de Leiden. Sidestone Press, Leiden, 2015. CHAUMEIL, Jean-Pierre. Entre la memoria y el olvido. Observaciones sobre los ritos funerarios en las tierras bajas de América del Sur. Boletín de Arqueología PUCP 1:207-232. 1997.. Bones, flutes, and the dead: memory and funerary treatments in Amazonia. Time and memory in indigenous Amazonia: Anthropological perspectives, p. 243-283, 2007. CABRAL, M.P. & SALDANHA, J.D. Paisagens Megalíticas na Costa Norte do Amapá. Revista de Arqueologia SAB, Belém, v. 21, 2008.

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