88 A gente da cidade, aquele dia, Da partida (Uns por amigos, outros por parentes, Outros por ver somente) concorria, curiosos Saudosos na vista e descontentes. E nós, co a virtuosa companhia O Gama e sua tripulação De mil Religiosos diligentes, Em procissão solene, a Deus orando, Pera os batéis viemos caminhando. Pequenos barcos 89 Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam, As mulheres cum choro piadoso, Os homens com suspiros que arrancavam. Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Amor mais desconfia, acrescentavam A desesperação e frio medo De já nos não tornar a ver tão cedo. O Amor merece desconfiança por ser fonte de sofrimento
88 Qual vai dizendo: «Ó filho, a quem eu tinha Fala de uma mãe Só pera refrigério e doce emparo consolo Desta cansada já velhice minha, Que em choro acabará, penoso e amaro, Porque me deixas, mísera e mesquinha? Infeliz e digna de pena Porque de mi te vás, o filho caro, A fazer o funéreo encerramento Onde sejas de peixes mantimento?» Ser devorado pelos peixes Qual em cabelo: «Ó doce e amado esposo, Fala de uma esposa Sem quem não quis Amor que viver possa, O Amor não permite que eu possa viver sem você Porque is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha e não é vossa? A vida daqueles que amamos passa também a nos pertencer Como, por um caminho duvidoso, Vos esquece a afeição tão doce nossa? A esposa sente-se trocada por uma aventura 89 Nosso amor, nosso vão contentamento, Todo o afeto esta sendo jogado pelos ares Quereis que com as velas leve o vento?» aliteração em V
92 Nestas e outras palavras que diziam, De amor e de piadosa humanidade, Os velhos e os mininos as seguiam, Em quem menos esforço põe a idade. As crianças sofrem menos Os montes de mais perto respondiam, prosopopeia Quási movidos de alta piedade; hipérbole A branca areia as lágrimas banhavam, Que em multidão com elas se igualavam. as lágrimas banhavam a branca areia e, em quantidade, a elas (as areias) se igualavam 94 Mas um velho, d' aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, Cum saber só d' experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: Aspecto respeitável Vasco e a tripulação Atitude de reprovação hipérbole Experiente, conhecedor
95 O Velho, em sua fala, usa de um recurso da retórica a apóstrofe. Dirige-se à Glória de Mandar. Desta forma, ele criticará a ambição, a vaidade e a cobiça dos navegantes. «Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça A ambição é uma ilusão Cũa aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça A Glória de Mandar Fazes no peito vão que muito te ama! impõe vários castigo Que mortes, que perigos, que tormentas, àqueles que a amam Que crueldades neles experimentas! 96 Toda esta estrofe se refere à Glória de Mandar Dura inquietação d'alma e da vida, ansiedade Fonte de desamparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios! Consumidora de riquezas Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo dina de infames vitupérios; Apesar de chamar-te Glória, és digna de infames xingamentos Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana! Fama e Glória são nomes usados para enganar o povo ignorante
A essência do discurso proferido é ÉTICA e condena os desvios morais da empresa. Revela a contradição entre o que deveria ser e que o realmente acabou sendo. Camões, antena de sua época, pressentiu a decadência de sua pátria: oito anos após a publicação de seu poema (1572), Portugal caiu nas mãos da Espanha União Ibérica. Vejam caráter profético de Camões: "Enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei de morrer nela, mas com ela.